Migalhas de Peso

A qualificação do porto organizado como bem público

A nova qualificação do porto como bem público implica a impossibilidade de sobrevivência da exploração puramente privada das instalações nele situadas.

31/1/2013

O art. 2º, I, da MP 595 definiu o porto organizado como “bem público construído e aparelhado para atender a necessidades de navegação, de movimentação de passageiros ou de movimentação e armazenagem de mercadorias, e cujo tráfego e operações portuárias estejam sob jurisdição de autoridade portuária”.

A diferença em relação à definição anterior, constante da lei 8.630/93, revogada pela MP 595, é precisamente a qualificação do porto organizado como um “bem público”.

Seriam possíveis duas interpretações para essa expressão. Se tomada em um sentido econômico, não jurídico, poderia significar que o porto organizado consiste em um conjunto de elementos que realizam uma finalidade de interesse coletivo. Assim, ainda que composto por bens integrantes do patrimônio particular, o porto organizado teria uma destinação pública. Isso confirma que as concessões e arrendamentos – ou, em tese, quaisquer outras formas de exploração que fossem admitidas – no âmbito do porto organizado somente poderiam ter como finalidade interesses coletivos. Seria a confirmação de que, no âmbito do porto organizado, não têm lugar terminais de uso privado ou outros instrumentos para a realização de interesses privados no setor portuário.

A MP 595 reservou o porto organizado como referência geográfica para a prestação dos serviços públicos portuários. É inegável que a MP 595 tentou afastar-se da noção de serviço público portuário ao eliminar qualquer alusão a terminais de uso público ou privado – ou seja, não mais definindo os terminais a partir de sua destinação ou missão, mas de sua localização e titularidade da área em que são instalados. Pode-se supor que haverá interpretação, equivocada em face dos arts. 22, XII, “f”, e 175 da Constituição Federal, no sentido de que a MP 595 extinguiu o serviço público portuário. No entanto, com todo o respeito aos seus possíveis defensores, essa interpretação ignoraria uma premissa fundamental da Constituição Federal. Nos termos do art. 22, XII, “f”, os portos são explorados mediante autorização, concessão ou permissão. A MP 595 deixa claro que o regime de autorização se aplica aos terminais fora do porto organizado, como os terminais de uso privado (art. 8º), submetendo a exploração nos portos organizados à concessão ou arrendamento. Portanto, o regime geral aplicável às atividades portuárias no âmbito do porto organizado é o de concessão ou, eventualmente, permissão de serviços públicos. Ambos são instrumentos de prestação de serviços públicos, na forma do art. 175 da Constituição Federal. Ademais, a MP 595 não elimina (nem poderia) a vinculação direta entre a atividade portuária e finalidades e valores fundamentais da Constituição; jamais poderia conduzir à eliminação da responsabilidade estatal sobre a realização dos serviços portuários – que é precisamente o que significa a condição de tais serviços como públicos. Assim, a conclusão de que o serviço público portuário foi extinto seria apressada e não daria a devida atenção às determinantes constitucionais que estabelecem as bases do marco regulatório do setor portuário.

De volta à interpretação da previsão de que o porto organizado é um “bem público”, se tomada essa expressão em seu sentido jurídico, a expressão tem consequências que vão muito além do estabelecimento da finalidade pública do porto organizado. A qualificação legal de um bem como público implica a sua incorporação ao patrimônio estatal. Em grande parte, os bens que integram os portos organizados já são bens públicos federais, especialmente terrenos de marinha (art. 20, VII, da Constituição Federal), ocupados pela União ou cujo uso é outorgado a particulares mediante enfiteuse (aforamento). Mas outros são particulares, objeto de domínio privado. No regime da Lei nº 8.630, aludia-se expressamente à existência de bens privados no porto organizado. Sob a MP nº 595, essa possibilidade não existe mais.

Não existe nenhuma razão para não se compreender o art. 2º, I, da MP nº 595 em seu sentido jurídico. Assim, é razoável concluir que o dispositivo tornou públicos todos os bens existentes no âmbito do porto organizado destinados às finalidades previstas no dispositivo legal.

Como já tive a oportunidade de afirmar em artigo publicado na edição Migalhas nº 3.030, do dia 3 de janeiro de 2013, a MP 595 baseou-se fortemente na noção de porto organizado, reconhecendo-o como um centro de referência para os serviços portuários. Fundou nesse conceito a distinção entre os terminais públicos, arrendados ou concedidos no âmbito do bem público “porto organizado”, dos terminais de uso privado. Por isso, o bem público só se pode destinar ao uso “não privado” – vale dizer, ao “uso público”, expressão evitada pela redação da MP 595 mas cujo conteúdo está traduzido na definição legal de porto organizado.

A qualificação do porto organizado como “bem público” confirma e aprofunda essa conclusão.

Sem se levar em conta a possível invalidade da MP 595 pela ausência de relevância ou urgência na matéria por ela veiculada, esta espécie legislativa pode ser o instrumento adequado para essa publicização de bens. Trata-se de instrumento com força de lei. A desapropriação de bens deve ter fundamento em lei e ser baseada numa declaração realizada por meio de lei ou decreto. Sob esse ângulo, a MP nº 595 não parece insuficiente.

Também não tem relevância o fato de a definição da área do porto organizado (art. 2º, II, da MP 595) ser realizada por ato do Poder Executivo (decreto). Nas desapropriações em geral, o ato expropriatório é veiculado por decreto.

Assim, a qualificação de “bem público” dada ao porto organizado pode implicar a expropriação das áreas particulares nele existentes, a fim de que sejam incorporadas ao patrimônio público e exploradas por particulares apenas mediante algum dos atos de atribuição desse direito.

Ao mesmo tempo em que declara o caráter público do bem consistente no porto organizado, a MP 595 prevê que os instrumentos para a habilitação de particulares para nele desenvolver atividades são a concessão (do porto) e o arrendamento (de instalações portuárias). Ambos os instrumentos pressupõem a natureza pública do bem a que se referem. Confirmam que o porto organizado somente pode ser um bem público.

No artigo já referido, examinei o conteúdo dos arts. 50 e 51 da MP 595, especialmente no que se refere à adaptação de terminais autorizados hoje situados na área do porto organizado. Indiquei que a interpretação desses dispositivos não permite concluir que haja garantia legal de continuidade de funcionamento de tais terminais, inclusive diante da ineficácia do art. 51 da MP 595. Em especial, afirmei que “Com relação aos terminais de uso privativo existentes dentro dos portos organizados, a adaptação possível poderia ser a licitação do terminal, para que seja submetido ao mesmo regime dos demais terminais arrendados dentro de cada porto organizado – como já referido em tópico anterior. O art. 50 da MP 595 não parece permitir a mera aceitação dos terminais de uso privativo existentes dentro das áreas do porto organizado, com a possibilidade de uma sucessão ilimitada de prorrogações por 25 anos” (item 2.17, parte final).

Essa conclusão é também confirmada pelo caráter de bem público do porto organizado. Não se concebe que o uso de um bem público possa ser detido indefinidamente por um particular. O princípio republicano impede a eternização do desempenho de funções públicas ou da exploração de um bem público por um particular. E a clara definição das finalidades públicas do porto organizado impede o desvio de destinação para atender a interesses puramente privados de um particular que venha a explorá-lo.

Assim, a nova qualificação do porto organizado como bem público implica a impossibilidade de sobrevivência da exploração puramente privada das instalações nele situadas. No caso das instalações integralmente situadas em terreno de marinha, objeto de enfiteuse, não há mudança relevante quanto à titularidade do bem. Mas há quanto à sua destinação, já que não mais se admite – após a qualificação do porto como bem público – a exploração para finalidades estritamente privadas. No caso de instalações total ou parcialmente situadas em áreas privadas, a mudança é tanto de destinação quanto de titularidade.

Evidentemente, essa declaração da qualificação do porto organizado como bem público não elimina o direito dos particulares, proprietários de imóveis situados na área do porto organizado, à justa e prévia indenização em dinheiro, segundo o mesmo regime aplicável à desapropriação. Também se pode cogitar de mecanismos para a submissão de tais instalações a uma adaptação (na forma do art. 50 da MP 595) mediante sua licitação para exploração em regime de arrendamento – com os prazos, direitos e obrigações pertinentes à exploração do bem com a finalidade pública que a MP 595 lhe pretendeu atribuir. Em uma licitação realizada para esse fim, pode-se prever que o vencedor (novo arrendatário) indenizará o antigo proprietário pela expropriação produzida pela MP 595. Será um modo de promover a adaptação de tais instalações ao novo regime (de arrendamento) aplicável à exploração de instalações portuárias dentro do porto organizado. Uma vez que o instrumento típico de exploração de tais áreas privadas é a autorização, sujeita às alterações normativas supervenientes na forma do art. 47 da lei 10.233, não se cogitaria de algum direito adquirido à exploração em si. Porém, cabe ressalvar que, havendo direito adquirido, este não poderá ser atingido pela lei nova por força do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal. A aplicação da nova regra não elimina a necessidade de respeito à propriedade e ao direito adquirido.

Em conclusão, percebe-se que a previsão do art. 2º, I, da MP 595 tem múltiplas implicações. Confirma a destinação pública do porto organizado. Assegura os instrumentos para que essa finalidade pública não seja uma declaração vazia, mas possa ser efetivamente perseguida e possibilite a uniformização do regime de exploração de instalações portuárias no âmbito de cada porto organizado.

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* Cesar A. Guimarães Pereira é sócio do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados

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