Migalhas de Peso

A questão da violência

Dizer que a sociedade perdeu seu equilíbrio emocional é pouco. O fundo da questão é outro, não de natureza psiquiátrica, mas humana e social.

16/1/2013

Havia em São Paulo um famoso colecionador de armas, residente nos Jardins. Era conhecido como “Gravatinha” porque só usava gravata borboleta. Certo dia foi visitado por um assaltante, aparentemente desarmado, que ficou parado, fascinado por tamanha variedade de revólveres, punhais, pistolas que viu nas paredes das salas.

O dono da casa percebeu a visita de longe, mas disfarçou, sem esboçar a menor reação, mas concebendo em silêncio um ardil para surpreender a visita indesejável. Em vez de lançar mão de alguma das armas de fogo ao seu alcance, lubrificadas e prontas para o uso, o Gravatinha pegou uma câmara fotográfica. Pé ante pé, aproximou-se do invasor, de costas para ele. Quando chegou mais perto, assustou-o com um chamado em voz alta. O ladrão virou-se, apavorado. Seu rosto apareceu com nitidez na foto. Em seguida, como estava perto de uma janela, pulou para o jardim e fugiu. Ato seguinte,

a vítima dirigiu-se à delegacia de polícia, com a foto na mão. O marginal foi identificado e preso.

Tudo isso para dizer que a campanha contra a posse de armas é providência duvidosa e de discutível eficácia na repressão à violência. Arma é cultura. Na fundação e proteção dos Estados as armas legitimam a força bruta elevando-a à instância superior do “poder”, emprestando-lhes prestígio simbólico irresistível. A posse de armas é garantida pela Constituição dos USA. Durante muito tempo, várias gerações se sucederam nos Estados Unidos sem que houvesse aumento da criminalidade, nem que os massacres coletivos virassem moda anual na terra de Tio Sam. De repente, a partir da segunda metade do século XX, a situação se altera, e os atentados com dezenas de vítimas, em grande número crianças e adolescentes, não param de ocorrer. Culpa das armas? Ou de uma sociedade doente que perdeu seu equilíbrio emocional a ponto de cultivar o homicídio sem motivo, só porque o outro é o outro?

Dizer que a sociedade perdeu seu equilíbrio emocional é pouco. O fundo da questão é outro, não de natureza psiquiátrica, mas humana e social. Se indagarmos sobre qual é o fator que mantém a sociedade unida enquanto sociedade, a resposta se resume a uma só palavra: concórdia. Não se trata de simples consenso, uniformidade e harmonia de opiniões, o que nunca existe entre os homens. A concórdia significa outra coisa, a saber: a vontade de viver junto, não obstante as diferenças e os conflitos das opiniões, das raças e das classes. A concórdia é o cimento que empresta coesão e solidez ao conjunto de diversidades e oposições que fermenta na sociedade.

Pois bem, a concórdia social está abalada em todos os países, no mundo inteiro. A sociedade tende a degenerar no seu oposto, a di-sociedade. O todo social é substituído por grupos isolados entre si, em luta uns com os outros, e o indivíduo se volta contra a sociedade inteira.

Daí que a violência mude de caráter e de lugar. A violência de nossos dias é um fenômeno difuso, assim como a poluição ambiental, e surge onde não costumava aparecer: nas escolas, nos cinemas, nos centros de recreio e lazer (como a praia da Noruega na qual foram friamente liquidadas mais de uma centena de vítimas).

Mas nem tudo está perdido. Parte da juventude se perde no crime e na autodestruição, mas outra parte cultiva senso de justiça social, engaja-se em voluntariados, como as Ongs, os médicos sem fronteira, etc. É a chamada “Geração Y”, que quer mudar o mundo na esfera ecológica, nas relações entre trabalho e lazer, e na ética profissional.

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* Gilberto de Mello Kujawski é procurador de Justiça aposentado, escritor e jornalista





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