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Breves apontamentos sobre Comissões Parlamentares de Inquérito

A atual conjuntura política-jurídica nacional trouxe à baila uma série de debates e indagações concernentes a temas vinculados a escândalos políticos-partidários, pagamento de verbas a grupos aliados, suspensão de membros de partidos políticos, cassação de mandatos, enfim, toda turbulência divulgada diariamente pelos nossos mais diversos meios de comunicação vincula-se a um tema central tão difundido e citado, mais que por vezes padece de esclarecimentos e especificações, que são as comissões parlamentares de inquérito (CPIs).

14/10/2005


Breves apontamentos sobre Comissões Parlamentares de Inquérito


Igor Martins Sufiati*


A atual conjuntura política-jurídica nacional trouxe à baila uma série de debates e indagações concernentes a temas vinculados a escândalos políticos-partidários, pagamento de verbas a grupos aliados, suspensão de membros de partidos políticos, cassação de mandatos, enfim, toda turbulência divulgada diariamente pelos nossos mais diversos meios de comunicação vincula-se a um tema central tão difundido e citado, mais que por vezes padece de esclarecimentos e especificações, que são as comissões parlamentares de inquérito (CPIs).


Precipuamente, mister se faz situar referido instituto no âmbito da clássica doutrina da separação dos poderes do Estado.


Consoante as idéias de Montesquieu, o Estado realiza seus fins através de suas três funções, legislativa, executiva e jurisdicional, sendo certo que nenhum destes “poderes” estatais exerce de modo exclusivo as funções a ele correspondente.


No âmbito legislativo é de assinalar que tal poder não esgota suas funções na atividade única de legislar, representando papel fundamental no moderno Estado Democrático de Direito ao direcionar suas funções a atividades de fiscalização e controle, valendo-se, para tanto, das comissões parlamentares de inquérito.


Presentes na Constituição de países de tradição no cenário político-jurídico mundial como Alemanha, Itália e Espanha, o instituto surge expressamente no âmbito nacional somente na Constituição de 1934, envolto a uma grande turbulência nacional, primeiramente com a renúncia forçada do presidente Washington Luís e posterior ascensão de Getúlio Vargas em 1930, sendo regulamentada somente de 1952 pela Lei 1.579.


No que tange às CPIs, foi nesta Carta que após uma série de debates e reflexões em torno da questão, em 1935 o Senado fazia previsão em seu regimento interno da criação de tais comissões a requerimento de qualquer senador com a aprovação da maioria, inaugurando a tradição respeitada até a atual Constituição no que se refere à necessidade de fato determinado justificador da apuração e à necessidade de

requerimento de um terço dos membros da Casa congressual para a proposição da instauração das comissões parlamentares de inquérito.


Instituto característico do Estado Democrático de Direito, o qual tem por meta principal o bem comum, as comissões de inquérito não devem ser consideradas como meros instrumentos de informação ou auxiliares das Câmaras representativas, mas sim como forma de participação do povo no controle democrático do processo político. Desta forma, em tese, a própria opinião pública sente-se melhor representada por essa instituição do que por outras que se sujeitam a tramitações formalistas e inadequadas para as apurações pretendidas.


A atual Carta Magna difusamente contemplou ao longo de seu texto os poderes investigatórios do Legislativo, manifestando-se modo expresso no inciso X do art. 49, cuja dicção é a seguinte:

“Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional”:


X – fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta.”

Nada obstante, dispõe ainda a Constituição em norma específica contida no § 3º do art. 58:

“ Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.

(...)

§ 3º As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pelas Câmara dos Deputados e pelo Senado federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.”

Nosso ordenamento jurídico pátrio, bem como o Regimento Comum do Congresso Nacional consagra a existência tanto de comissões permanentes quanto de temporárias, classificando-se no âmbito destas as comissões parlamentares de inquérito.


Depreende-se desse último dispositivo em tela que é competente a requerer sua criação qualquer uma das Casas do Congresso Nacional, nos termos de seus respectivos regimentos internos. Vislumbra-se, todavia, a possibilidade da criação de comissões mistas e parlamentares de inquérito, que na atualidade têm merecido relevante destaque ante a instauração das conturbadas e polêmicas CPIs dos

Correios e a do “Mensalão”.


Ainda na exegese desse dispositivo, é notória a gama de poderes conferidos as CPIs, todavia, embora amplos não são irrestritos. Vale salientar que para sua instauração é indispensável a observância de certos requisitos, quais são, de forma (requerimento de um terço dos membros da Casa Legislativa), de tempo (há de ser por prazo certo), e por fim, de substância (apuração de fato determinado); no mais, há de se anotar ainda as limitações de tais comissões no que tange às suas competências.


Como é cediço, incontestável que as CPIs devem se enquadrar no elenco de atribuições do Legislativo, assim, fugiria da esfera de competência do Congresso a investigação concernente a processos criminais ou a litígios judiciários. Tampouco pode ter caráter policial ou substitutivo da atuação de outros órgãos do Poder Público sob pena de violação ao princípio da separação dos poderes e da independência da Magistratura. Somente a título exemplificativo, quando dos trabalhos da “CPI do Judiciário” no ano de 1999 o Supremo Tribunal Federal deferiu habeas corpus exonerando um desembargador de prestar depoimento acerca de ato praticado no exercício de sua jurisdição. Eis a síntese do acórdão:

“O Tribunal, considerando que, no caso, busca-se investigar decisões judiciais do magistrado e não por atos administrativos por ele praticados, deferiu o pedido para que não seja o paciente submetido à obrigação de prestar depoimento, com base no art. 146, b, do Regimento Interno do Senado Federal (“Art. 146. Não se admitirá comissão parlamentar de inquérito sobre matérias pertinentes:...b) às atribuições do Poder Judiciário;”), norma esta decorrente do princípio constitucional da separação e independência dos Poderes.”

Em acréscimo, a atuação das CPIs há de restringir-se à esfera de estrito interesse público, sendo defeso inferir na autonomia individual e das entidades privadas, todavia, o tema ainda enseja aprofundamento doutrinário, uma vez que os domínios públicos e privados encontram-se, na atual conjuntura jurídica, marcados pela inter-relação de suas normas, eis que as relações privadas estão gradativamente sendo marcadas pela introdução de normas de ordem pública.


Em suma, aspectos da vida privada das pessoas, bem como negócios estritamente particulares não são passíveis de investigação por comissões parlamentares de inquérito, salvo os casos que tenham direta e relevante ligação com o interesse público.


Alude o § 3º do art. 58 da Constituição Federal quanto a poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, contudo, merece cautela a exegese de tal disposição, pois, faz-se precipitada a conclusão em se afirmar que a vontade do legislador constituinte era conceder poderes jurisdicionais às comissões de inquérito.


O que se pretendeu com a inclusão da referida expressão foi tão somente dar um caráter de obrigatoriedade às determinações das comissões, tais como a condução coercitiva em caso de convocação e não comparecimento e imposição às testemunhas de dizer somente a verdade.Todavia, mesmo estas imposições são eivadas de restrições visto que não são auto-executáveis pelas comissões.


Esta limitação à auto-executoriedade é explicada pelo fato de que toda e qualquer ato de investigação na esfera individual, resguardada constitucionalmente, é carecedor de prévia determinação judicial. Assim, embora a vontade da lei seja de atribuir um caráter de imperatividade e coercibilidade à norma, não se pode transpor as garantias constitucionais conferindo legitimidade às comissões de inquérito afim de se intervir na esfera individual do(s) investigado(s) sem prévia determinação judicial.


É bem de ver que os poderes intrínsecos de investigação das comissões de inquérito não se confundem com competências jurisdicionais em sentido material, não podendo em qualquer hipótese dizer o direito no caso concreto nem praticar atos coercitivos ou determinar providências acauteladoras, tais como decretar a prisão de investigados ou mesmo tornar indisponíveis bens sem prévia e competente ordem judicial.


Isto significa que elas não produzem decisões de conhecimento, sejam condenatórias, constitutivas ou declaratórias nem de execução, sendo necessário, para tanto, encaminhamento de requisição de tais providências à autoridade judiciária, mediante a apresentação articulada da pretensão e seus fundamentos.


Presentes os requisitos formais e materiais suficientes para fundamentar determinada pretensão poderá o Judiciário deferir o pedido seja ele busca domiciliar, quebra de sigilo bancário, decreto de prisão ou qualquer outro direito individual protegido constitucionalmente.


Referida necessidade de que o Judiciário intervenha para a prática de atos em relação aos quais exista reserva constitucional de jurisdição não inibirá a atuação das CPIs. As autoridades judiciárias deverão ser deferentes com os requerimentos encaminhados apenas não podendo abrir mão de seu dever de guardar a Constituição e de controlar a legalidade.


Atendo-se ainda ao princípio constitucional da reserva de jurisdição merecem realce questões concernentes à inviolabilidade domiciliar, busca e apreensão e a quebra dos sigilos bancário, telefônico e fiscal, aqui abordadas apenas superficialmente.


No que atine à inviolabilidade de domicílio, expressa a tutela dada pela Constituição Federal em seu art.5°, inciso XI:

“Art. 5°...........................................................................


XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.”

Nesses termos, somente será legítimo penetrar em um domicílio, sem o consentimento do morador, nas hipóteses de flagrante delito, desastre, prestação de socorro e, durante o dia, por determinação judicial. Observa-se que neste breve rol taxativo, não se incluem a busca e apreensão por CPI, necessitando, para tanto, determinação judicial.


De igual sorte são competentes as CPIs para, entre outros poderes, promover diligências, requisitar documentos e certidões, todavia, se houver a necessidade de valer-se de busca e apreensão para obtê-los, necessário faz-se a atuação do Judiciário.


A propósito do tema, averbou com habitual clareza lapidar José Alfredo de Oliveira Baracho, in verbis:

“Os meios para assegurar, de modo coercitivo, a produção de informações, a detenção, a busca e apreensão e outras medidas de caráter formalmente judiciário só podem ser utilizados mediante a intervenção da autoridade judiciária competente.”

Por fim, os fundamentos aplicáveis quanto à busca e apreensão são também válidos quanto à pretensão de quebra de sigilo telefônico, bancário e fiscal, quais sejam: a efetivação de atos que importem em restringir direitos se submete à reserva constitucional de jurisdição.


Em síntese: as comissões parlamentares de inquérito devem cingir-se à esfera de competências do Congresso Nacional, sem invadir atribuições de outros Poderes, não podendo legitimamente imiscuir-se em fatos da vida privada nem investir-se na função de polícia ou perseguidor criminal, bem como usurparem funções de competência exclusiva do Judiciário.
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BIBLIOGRAFIA


BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral das comissões parlamentares: comissões parlamentares de inquérito. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

BONAVIDES, Paulo.Curso de direito constitucional. 9.ed..São Paulo: Malheiros, 2000.

FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de.O espírito das leis: as formas de governo: a divisão dos poderes. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992.

SANDOVAL, Ovídio Rocha Barros. Cpi ao pé da letra. Campinas: Millennium, 2001.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

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*Advogado





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