Notícias diárias divulgam e festejam ordens do Judiciário ou dos tribunais de contas dirigidas ao Executivo. As intenções quase sempre são louváveis, enquanto análise isolada. Pode ser um fornecimento de serviço ou bem, a suspensão de um procedimento ou até a cassação de uma licença. A consequência desta prática de intervenção tem um aspecto ruim: o encolhimento da autonomia e poder inerentes ao cargo público executivo pela dominância do poder oriundo de cargos públicos investidos da função de julgar, defender ou controlar. É uma disfunção que compromete o sistema republicano e a harmonia dos poderes, exigindo racionalização e reflexão.
Julgar, administrar, legislar, defender e controlar são ações que sintetizam as grandes competências delegadas pelo povo brasileiro ao Estado. A teoria política clássica prevê três poderes. O Estado Brasileiro é composto de cinco poderes: Judiciário, Executivo, Legislativo, Ministério Público e Tribunais de Contas. A realidade inova o Direito. A Constituição Federal não reflete atualmente a amplitude do fenômeno que ela gerou.
Os agentes públicos do Judiciário e do Ministério Público estão tomando para si atribuições inerentes aos cargos do Poder Executivo. O fenômeno é novo, apresenta frequência microfísica e gera consequências relevantes para a Sociedade. Em algum grau, este fenômeno também ocorre no âmbito dos tribunais de contas. Trata-se de intervenção de um poder em outro.
Qual o resultado desta intervenção? A ação administrativa pública se torna mais lenta, caótica e o espaço de autonomia de trabalho do agente executivo limitado. Este controle e intervenção produzem quatro efeitos: a) perda do sentido de finalidade da ação estatal (controle é meio; não é fim); b) aumento da burocracia; c) embotamento da iniciativa do responsável; d) complexidade da execução da ação. Este é o prejuízo, pouco valorizado ou percebido como notícia de jornal.
O primeiro efeito é o mais grave: a perda do sentido de finalidade.
A ação administrativa tem natureza complexa e está sempre determinada pela finalidade. O fim depende de meio, o que implica em recursos e organização. Não é fácil atingir o paraíso do bem-estar social. Quem realiza predominantemente esta ação é o Executivo. A intervenção dos outros poderes nesta estrutura gera modificação no regime de autonomia administrativa que perturba a ordem republicana. Esta consequência decorre da unidade lógica que compõe o cargo público: finalidade, competência dever, poder, autonomia e responsabilidade.
A teoria costuma valorizar a noção de poder, mas este é derivado. O agente público é competência orientada pela ideia primeira da finalidade. A relação entre competência e finalidade gera o dever. O que se valoriza como poder é muito mais dever a quem se delega poder. O poder é instrumento e meio que serve ao dever de agir segundo a regra de competência. E mais, a regra de competência pressupõe responsabilidade, o que decorre do exercício da autonomia e do poder.
A noção de dever é muito importante e nem sempre é clara. Muitas vezes é confundida com obrigação. A melhor forma de refletir sobre o dever é perceber sua origem como motivação para agir. Vontade é emoção e razão para satisfazer desejo. Interesse é proveito para si. Dever é imposição para agir a partir de determinado sentido para a ação. Por exemplo, criar filhos é essencialmente dever. A função de síndico de condomínio é essencialmente dever. Cargo público é dever porque dirigido para uma finalidade supraindividual e com conteúdo coletivo. O agente público não possui vontade ou interesse, ele apenas cumpre dever, a partir da regra de finalidade que lhe impõe o esquema abstrato da norma.
Esta noção de dever é percebida subjetivamente pelo agente público como algo existencial. O juiz, o promotor, o auditor estão imbuídos de certo sentido de finalidade que lhe coloca o mundo nas mãos. O cargo público dá sentido às ideias e à vida das pessoas. É mais do que sobrevivência. É oportunidade de modelar o espaço em que vive segundo certa visão e ideia.
O segundo efeito relevante é o aumento da burocracia.
Burocracia significa aqui o domínio da forma sobre o conteúdo e predomínio do meio em relação ao fim. A ação administrativa é sempre dirigida para um objetivo. Qualquer ação que desrespeite e subverta esta direção tem potencial burocrático. A proliferação de procedimentos administrativos, a perda de foco dos agentes por conta de interferências de controle e, por fim, a tentativa de suspender e barrar as ações administrativas gera burocracia com elevado custo para a Sociedade, ainda que ela não consiga quantificar este ônus.
O terceiro efeito é o embotamento da iniciativa do agente público.
A competência gera compromisso entre a ação e o sentido para esta ação. Esta relação entre ação e sentido é dever. O dever gera poder e autonomia. Os agentes executivos não são intermediários da função controle. Eles são titulares da ação comprometidos com a finalidade. Não é fácil planejar e executar a ação administrativa e o controle não pode ser algoz do gestor; nem contribuir para a inação ou embotamento da autonomia. A Sociedade perde muito com a proliferação de conflitos e intervenções; ainda que a Imprensa se lambuze e se alimente da denúncia e da notícia negativa.
Este aspecto talvez seja o mais sutil e complexo. Em que medida o interventor age para impor a sua visão “eu acho”. A realidade é super complexa, mas o indivíduo é capaz de afirmar sua compreensão imediatamente. É uma questão com forte conteúdo de ego, onde impor sua visão é imaginar que cumpre o seu dever. Esta falta de humildade diante do outro; esta falta de respeito para com a ação e competência do outro é um sério distúrbio com graves sequelas na autonomia administrativa. Este fato gera condutas autoritárias com suporte na compreensão limitada da realidade.
Cumprir o dever significa, muitas vezes, permitir que os outros realizem o seu destino e ação.
O quarto efeito é o aumento da complexidade da ação administrativa decorrente das múltiplas intervenções potenciais.
A proliferação das intervenções de controle torna a ação administrativa muito mais complexa. Algo que já é muito difícil, pois, envolve comunidades de cidadãos, torna-se mais e mais difícil, o que resulta em paralisia.
Julgar, controlar e defender são ações de interpretação do que acontece no mundo. Administrar é ação de realizar no mundo. Contratar uma obra, administrar orçamentos, tombar imóveis, fornecer serviços de saúde são ações inerentes à administração. A realidade de administrar é muito complexa e quem está diante dela é o agente público executivo. Ele tem a atribuição, o dever, a autonomia, o poder e a responsabilidade. Como tal, o poder e a autonomia não podem ser sutilmente capturados pelos cargos públicos relacionadas com o controle.
O Executivo realiza a finalidade do governo no que tange à função administrar. Ele é o síndico. O Judiciário, o Tribunal de Contas e o Ministério Público não administram. O Judiciário não pode intervir no mérito do ato administrativo porque isto implica em desequilibrar a estrutura de competência. O máximo permitido é o controle da legalidade e ainda assim com muita prudência para não prejudicar a autonomia necessária do cargo. O Judiciário não é instância de recurso para o ato administrativo. O Ministério Público não é definidor de ação administrativa. Ele atua como defesa da coletividade, mas jamais a ponto de interferir na ação de administrar.
Quem julga, controla e defende não tem o ônus de administrar, não foi eleito para administrar e não tem o dever de administrar. A realidade complexa da ação de administrar se sobrepõe ao esquema abstrato dos direitos pela razão de que o Estado é único e as competências não se misturam. Quem julga, não administra. Quem controla, não administra.
A ordem republicana exige a criação de prerrogativas de defesa da autonomia do gestor executivo. No passado, a ordem jurídica criou as prerrogativas de defesa da autonomia do Juiz, do promotor e do advogado. A lógica foi proteger o exercício da competência do cargo contra agente executivo demasiadamente poderoso. Hoje, aparentemente houve certa inversão e a Sociedade precisa seriamente refletir sobre a proteção da autonomia do agente da ação administrativa. Isso para que cada agente exerça bem o seu cargo e cumpra apenas o seu dever e não o dever do outro.
O Baghavan, antigo texto indiano, destaca: “É melhor cumprir com o próprio dever, ainda que sem méritos, do que com o dever de outro, ainda que seja perfeito; é melhor morrer cumprindo seu próprio dever; é perigoso seguir o dever de outro”. Este belo preceito religioso tem forte conteúdo republicano e merece ser invocado em nossas preces diárias para que seja observada a boa ordem neste confuso Estado Brasileiro.
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