O novo quarto Poder - A associação mídia & Ministério Público
Ranieri Mazzilli Neto*
O que causa grande apreensão, entre os verdadeiramente comprometidos com o estado democrático de direito, é a aparente legalidade das medidas que agridem, na essência, às garantias fundamentais que são cláusulas pétreas de nosso ordenamento constitucional.
A utilização corriqueira da excepcionalíssima medida da prisão provisória, as buscas e apreensões genéricas (“fishing expeditions”) dentro de escritórios de advocacia e residências, o emprego de algemas sob a luz dos holofotes; tais medidas vêm sendo tomadas com o respaldo de ordens judiciais que, embora formalmente sejam legais, são material e substancialmente inconstitucionais e ilegais.
Sob este prisma, é atualíssima a advertência do patrono das liberdades públicas no Brasil, o grande Rui Barbosa, ao anotar que de todos os inimigos do regime democrático “o pior é o fetichista, que, a poder de lhe admirar a forma, que não é nada, cada vez mais lhe perderá de vista a substância, que é tudo.” 1
As alegações feitas em defesa das espetaculosas medidas, de que são precedidas de autorização judicial – e, portanto, cobertas de legalidade - não impressionam; ao contrário, ao trazer à colação o ensinamento de Rui, torna-se patente que isso não é suficiente para respaldar as arbitrariedades. É preciso ter em conta a dimensão das cláusulas constitucionais e seu escopo garantista.
Entendia o eminente Rui – e, nesse momento de risco, em que se busca a flexibilização do que, por ser pétreo, não admite relativismos, é preciso invocar o seu nome o mais das vezes, pelo exemplo e pelo saber -, ao apresentar o princípio de superioridade da Constituição, trazendo como exemplo a antológica decisão do Justice Marshall, proferida em Marbury ‘versus’ Madison, que qualquer ato, inclusive os judiciários; qualquer medida, inclusive as leis, que desrespeitar preceitos constitucionais, é, em sua essência, nula.
É extremamente preocupante a pouca disposição que vem se aguçando, de parte de autoridades judiciárias que, ao revés de enfrentar as pressões de cunho autoritário sobre elas exercida já há algum tempo, têm aderido ao autoritarismo. Sempre que as liberdades públicas são atacadas, os juízes são colocados sob pressão. Tal comportamento é comum no Brasil.Lembremo-nos que há relativamente pouco tempo, os magistrados que decidiam conforme a Constituição e determinavam a soltura dos “inimigos do regime”, eram taxados de coniventes com a subversão, simpatizantes de terroristas e/ou comunistas. Muitos foram afastados da judicatura, sendo os mais conhecidos os casos dos Ministros do STF, Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal.
Hoje, da mesma forma, os juízes que julgam de acordo com os princípios constitucionais, são atacados e recebem a pecha de lenientes, incentivadores da impunidade. Antes o mote era o combate à subversão, a defesa do estado; agora, o mote é o combate ao “crime organizado”e à “impunidade”, com o acréscimo ao rol dos juízes “mal-vistos” daqueles que decidem contra a Fazenda Pública. Lamentavelmente, os magistrados não têm conseguido resistir, como observou o Min. Edson Vidigal. Disse-nos o Presidente da mais alta Corte Federal: “Hoje precisamos recorrer ao Estado de direito, ao Judiciário. Precisamos cobrar e animar os nossos juízes para que eles não tenham medo. Que juiz hoje tem coragem de indeferir um pedido de quebra de sigilo bancário ou pedido de prisão? Eu conheço magistrados da área penal que estão migrando para a área cível porque já não suportam as suspeitas que são levantadas contra eles. Isso é perigoso, um Estado de direito em que os magistrados já têm medo de decidir. Precisamos de segurança jurídica.” 2
Como mencionado acima, o autoritarismo é a marca da nossa jovem República. Um rápido exame demonstra que tivemos logo em seguida ao governo de Marechal Floriano Peixoto (marcado por medidas de exceção), a chamada “República Velha”, dominada pelas elites oligárquicas, profundamente excludente e antidemocrática, a qual foi substituída pela era Vargas que culminou com a ditadura do Estado Novo. Um brevíssimo respiro democrático quase foi abatido pelo golpismo de 1954 abortado (adiado) pelo suicídio de Vargas. Finalmente com a quartelada de 1964, mais uma vez, recrudesceu o autoritarismo, o mais negro de nossa história.
Vê-se, pois, com as peculiaridades de cada época, que nossa tradição é a do estado autoritário, no qual o grupo, ou grupos, que detêm o poder buscam impor sua ideologia e ampliar o seu poder; a intolerância com quem pensa diferente é a característica daqueles que buscam controlar o Estado no Brasil, como demonstra a nossa história. Assim, não é de surpreender que as liberdades públicas, por serem um entrave ao exercício do poder que se pretende incontestado, estejam, constantemente, sob o fogo daqueles que desejam impor sua maneira de enxergar o mundo e que julgam serem os fins justificadores dos meios.
Essa análise brevíssima, que se propõe tão-somente a provocar uma discussão sobre esse momento delicado, não estaria completa se não se fizesse uma observação crítica a propósito do novo eixo de poder que se vem construindo, diante do descrédito da classe política brasileira, e que se revela diariamente, consistente na aliança entre o ministério público e a mídia. Esse novo quarto poder é, hoje, uma realidade. E, diga-se, nada há de errado nisso, porque é natural que um vazio de poder seja preenchido por quem tem a oportunidade e a habilidade para fazê-lo. De fato, nos últimos anos, a imprensa e o ministério público adquiriram um ‘status’ de confiabilidade que outras instituições não conseguem ter e são evidentes os seus méritos. O problema surge quando o movimento para ocupar este espaço de poder leva ao abandono dos princípios da razoabilidade e da mínima intervenção, agredindo a dignidade de eventuais investigados, tratando-os como objetos.
No estado democrático de direito não há lugar para uma só maneira de ver as coisas, e - isso é fundamental - os fins não justificam os meios, por mais nobres que sejam as intenções: a defesa do interesse público deve ter em conta a própria definição de interesse público. A eminente Desembargadora Federal, Lúcia Valle Figueiredo, hoje aposentada e professora titular de Direito Administrativo da PUC – SP, nos dá uma boa direção: “O interesse público maior a proteger é, sem dúvida, a defesa da Constituição e das garantias individuais nela consagradas.” 3
Para encerrar este breve artigo, na esperança de iniciar uma grande discussão que leve à defesa intransigente das liberdades públicas, quero trazer dois exemplos – e vou ficar só nestes exemplos, porque os considero emblemáticos, a fim de demonstrar a pertinência de minhas observações, a respeito do surgimento de um novo eixo de poder (autoritário, como é da nossa tradição) que vem buscando relativizar garantias constitucionais, mormente em tema de processo penal. Trata-se da entrevista coletiva, convocada por um promotor de justiça de primeiro grau, para criticar uma decisão da mais alta Corte Federal do país (que concedera a liberdade a uma jovem) que foi veiculada com grande destaque e estardalhaço pela mídia, que não escondia seu apoio às críticas contra a “impunidade”. Tenho que esse acontecimento não pode ser tido como normal e deve ser encarado com preocupação. Mais preocupante ainda foi o episódio do ofício/manifesto, encaminhado pelo Conselho Nacional do Ministério Público, juntamente com a AMB, aos Tribunais Superiores, pedindo a punição de corruptos, que ainda não foram julgados. Tal acontecimento causa perplexidade: os magistrados não devem pedir “punições”, pois a eles poderá incumbir esta punição, respeitado o devido processo legal e de acordo com as provas constantes dos autos; da mesma forma, ao ministério público incumbe pedir a punição nos autos do processo, onde fatos concretamente apurados poderão ser contraditados, porque assim o garante a ampla defesa.
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1Obras Seletas, II, Tribunal Parlamentar, ed. Casa de Rui Barbosa, 1954, p. 236
2Revista Isto É (03/06/05)
3Informativo Jurídico 'Migalhas', nº 1.206, de 17/7/05
4Rui Barbosa, Novos Discursos e Conferências, coligidos e revistos por Homero Pires, Liv. Acadêmica, SP, 1993, p. 96.
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*Advogado
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