Uma polêmica que há muito tempo vinha frequentando os tribunais foi agora dirimida pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), especializada em julgamento de processos criminais. Trata-se da aplicação do privilégio previsto no parágrafo 2º do artigo 155 do Código Penal aos casos de furto qualificado. Durante muito tempo o entendimento que predominava é a incompatibilidade do benefício àquele que pratica furto considerado mais grave, quer seja pelo concurso de agentes, abuso de confiança, rompimento de obstáculo e outras hipóteses elencadas no parágrafo 4º do mesmo tipo penal.
O furto chamado privilegiado ou mínimo exige para sua configuração a combinação de dois requisitos: a) a primariedade do agente; b) a res furtiva deve ser considerada de pequeno valor que, pela reiterada jurisprudência dos tribunais, foi fixado o teto do salário mínimo vigente à época do delito. Presentes tais requisitos o juiz poderá (e não deverá) converter a reclusão em detenção, reduzi-la de um a dois terços ou aplicar somente a multa.
Nada obsta que o privilégio seja concedido a réu que carrega maus antecedentes, assim como, numa interpretação mais favorável, se foi condenado, porém não transitou em julgado a sentença, tecnicamente é considerado primário e merecedor da benesse. Se o legislador quisesse obstruir o benefício, explicitaria, como o fez no artigo 77, I, do Código Penal, como condição para gozar da suspensão condicional da pena, que o infrator não seja reincidente em crime doloso.
O pequeno valor da coisa subtraída tem como parâmetro a ficção legal projetada no salário mínimo. Porém, é de se atentar, em razão das diferenças econômicas que reinam em cada região do país, que às vezes o salário no teto mínimo representa um valor significativo para o cidadão vítima, que sobrevive com ganho idêntico e seu bem subtraído não merece ser considerado como valor diminuto. Pode ser, por outro lado, que o valor é ínfimo, em razão das novas políticas financeiras, que possibilitam ao trabalhador um ganho considerável, com elevação de sua renda. O pequeno valor da coisa subtraída deve ser avaliado pelo juiz, levando-se em consideração as circunstâncias pertinentes a cada caso e, nessa hipótese, pode até ser considerada de pequeno valor a res furtiva superior ao teto previsto pela construção pretoriana.
Tanto que acertadamente o antigo Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, em decisão que teve como relator o Juiz Márcio Bártoli, assim definiu: “O critério referente “ao valor da coisa furtada”, por ser decorrente de construção jurisprudencial, pode e deve ter interpretação flexível, adequada a cada caso concreto, e principalmente ao necessário à reprovação do delito”.1
Agora o Tribunal da Cidadania pacificou o entendimento no sentido de que se aplica o privilégio ao furto qualificado. O critério adotado não é mais com relação às circunstâncias que determinam uma pena mais severa e sim que estejam presentes os requisitos norteadores do privilegium.
É interessante observar que, com a evolução dos costumes e padrões morais, até os tipos penais se modificam com o passar do tempo e vão se abrandando, diminuindo sua intensidade de reprovação. Há quinze anos, se o gatuno destruísse obstáculo e entrasse no quintal da casa durante a noite e subtraísse uma calça jeans, por exemplo, sua conduta tinha acentuada relevância jurídica e faria com que não só o proprietário vítima, como também os vizinhos, ficassem em estado de alerta, sem falar ainda da providência policial. Hoje, no entanto, se o gatuno, armado com revólver, ganhar o interior da casa e subtrair bens, sem, no entanto, causar qualquer dano físico aos moradores, apesar da gravidade da conduta, passa a ser aceitável por preservar a incolumidade das vítimas. E nem mesmo a polícia é acionada.
A gravidade dos delitos vai diminuindo, fazendo com que o homem se esconda atrás da própria trincheira, cada vez mais distante da área de segurança. Sem dizer ainda que, a falta de lei mais severa, propicia o alardeamento aos quatro ventos da tão indesejada impunidade.
Assim, concluindo, ao furto considerado qualificado aplica-se o benefício do privilegiado, não como uma faculdade do juiz, mas sim como um direito do próprio réu, desde que satisfaça as condições estabelecidas. É a determinação a ser seguida pelas instâncias ordinárias.
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1 Revista dos Tribunais 728/569
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