Migalhas de Peso

Entrega de veículo a motorista alcoolizado: dolo eventual

O agente não quer o resultado, embora por ele previsto, mas assume o risco de produzi-lo.

4/10/2012

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça negou pedido de habeas corpus no qual o paciente pleiteava o trancamento da ação penal intentada para perquirir o delito de homicídio qualificado (art. 121, § 2º, incisos II, III e IV, do Código Penal). A peça delatória inicial narrou que o réu, em estado de ebriedade, entregou a direção do veículo a uma amiga, igualmente embriagada. Ocorreu um acidente e a condutora veio a falecer. Em suas alegações o acusado rebateu a denúncia e alegou que se cometeu algum ilícito não ultrapassou perímetro do previsto no artigo 310 da lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), consistente em entregar a direção de veículo a pessoa não habilitada, incapaz ou embriagada.

A relatora, ministra Laurita Vaz, justificou que o habeas corpus, com o restrito conhecimento probatório, não é instrumento hábil para declarar a inépcia da inicial e “a denúncia descreve de modo suficiente a existência do crime em tese e também a autoria, com os indícios necessários para iniciar a ação penal. Ela acrescentou que a atual tendência jurisprudencial é de imputar o crime de homicídio a quem passa a direção a pessoa embriagada, pois, mesmo não querendo a morte da vítima, assumiu o risco de produzi-la, configurando o dolo eventual”.1

Apesar de não tangenciar o conteúdo probatório, uma vez que a análise realizada foi perfunctória e somente com relação à existência do delito em tese, a decisão ganha repercussão nacional, pois, além de reiterar uma tendência dos tribunais superiores, alcança o reconhecimento do dolo eventual na modalidade de entregar veículo à pessoa embriagada.

No caso examinado, a conduta do réu ultrapassa as fronteiras do artigo 310 do Código de Trânsito Brasileiro e invade a área do dolo eventual. “O dispositivo da lei especial, adverte Fukassawa, abrange a entrega de direção do veículo às pessoas que, embora habilitadas ou com direito de dirigir, temporariamente não podem fazê-lo, ou tem esta possibilidade restringida por questões de saúde física ou mental, tal como se sucede com as pessoas com deficiência de visão, audição, deambulação, movimentação dos membros; de problemas psicológicos eventuais, loucura, etc., pessoas essas que não estejam em condições de conduzir veículo automotor com segurança que também faltará nas pessoas embriagadas”.2

Pois bem. A conduta do paciente reúne os ingredientes descritos na lei de trânsito e carrega um plus diferenciador, consistente na volição consciente de que poderia, em razão da ebriedade da motorista, provocar perigo não só aos ocupantes do auto, como também a outros motoristas e pedestres. A reprovação social não aceita a rotulação de crime culposo e muito menos a modalidade prevista na referida lei em razão do perigo concreto social e exige um julgamento mais rigoroso, pela própria comunidade, por meio do Tribunal do Júri, que passa a ser o juízo natural da causa.

O Código de Trânsito Brasileiro, quando editado, carregava a promessa de conter a escalada de crimes culposos por imprudência, negligência ou imperícia, que tenham causado sérias lesões e até ceifado vidas humanas. Não atingiu seus objetivos. Tanto é verdade que a Suprema Corte numa interpretação elástica do dolo eventual, vem decidindo que conduzir veículo automotor em estado de ebriedade, por si só, já é crime, independentemente de causar dano a terceiro. Sem falar ainda que as condutas são tão reprováveis que muitas vezes se avizinham do dolo eventual, levando o caso para o Tribunal do Júri, como é o caso da decisão em comento, com total manifestação de apoio da sociedade.

Pode-se afirmar que o dolo eventual nada mais é do que a modalidade em que o agente não quer o resultado, embora por ele previsto, mas assume o risco de produzi-lo. Quer dizer, os ingredientes do dolo primário encontram- agrupados na conduta do agente. Nosso Código Penal trouxe expressamente sua previsão, em seu artigo 18, I, ao adotar a Teoria do Assentimento: “... assumiu o risco de produzi-lo”.

Com efeito, nosso CP baseou-se em uma teoria criada pelo alemão Reinhart Frank3: Teoria Positiva do Conhecimento, que nada mais é do um critério bastante prático para identificação do dolo eventual.

Para referido autor há dolo eventual quando o agente diz: Seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir. Denota-se, claramente, a indiferença do agente quanto ao resultado, mas se este ocorrer, será aceito pelo agente. Numa definição objetiva, Teles ensina que o dolo eventual, espécie de dolo indireto, ocorre “quando o agente, mesmo não querendo o resultado, assume, aceita o risco de sua produção”.4

E o sempre presente Altavilla acrescenta que “se tiene dolo eventual cuando la intención se dirige indiferentemente a vários resultados, de modo que es como una ratificación antecipada a cualquiera de ellos que se realice. Es característico de los delitos de impulso, em que el agente no há visto com claridad la relación entre la conducta y el resultado”.5

Folheando um livro de direito penal, com suas folhas empedernidas, mas com a atualidade de reiteradas hipóteses esgrimidas durante a formação acadêmica, encontrei uma observação feita acima do título do dolo eventual: roleta russa. Era um exemplo que traduzia de forma satisfatória a extensão do dolo ora comentado. Se o agente aponta uma arma, sabendo-a carregada, a determinada pessoa, e efetua o disparo contra ela, produzindo o resultado morte, demonstrou de forma inequívoca que, embora sua intenção não fosse a de provocar a morte, assumiu o risco de produzi-la. Distante da culpa consciente em que o agente confia em que o resultado morte não ocorra.

É certo que o julgamento proferido pelo STJ limitou-se a examinar a viabilidade processual da denúncia, sem qualquer conotação decisiva a respeito do encaminhamento do processo para o Tribunal do Júri, questão que será decidida pelo juízo a quo, na fase da sentença de pronúncia.

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1 Coordenadoria de Editoria e Imprensa do Superior Tribunal de Justiça - em 21 de setembro de 2012 - Disponível em: https://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=107053 Acesso em: 21 de setembro de 2012

2 Fukassawa, Fernando Y. Crimes de Trânsito: de acordo com a Lei nº 9.503/1997 – Código de trânsito Brasileiro. – São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003, p.236

3 Sobre la estructura del concepto de culpabilidad. Buenos Aires, 2004.

4 Teles, Ney Moura. Direito penal: parte geral: arts. 1º a 120, volume 1 - São Paulo: Atlas, 2004, p.184.

5 Altavilla, Enrico. La culpa: El delito culposo, sus repercussiones civiles, su análisis sicológico, Colômbia, Editora Temis S.A., 1987, p. 80.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde e é reitor da Unorp





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