A Constituição de 1988 marcou a liberalização estatal quanto aos planos privados de assistência à saúde. A CF/88 passou a permitir, em seu artigo 1991, a criação de empresas operadoras de planos privados e o oferecimento aos consumidores de "seguros-saúde" de forma suplementar à saúde pública do SUS – Sistema Único de Saúde.
O mercado dos planos de saúde cresceu tanto que já na década de 90 passou a fazer parte do orçamento fixo de grande parcela das famílias brasileiras, tomando grande relevância política e econômica.
Se, por um lado, os planos assistenciais representaram o crescimento vertiginoso da oferta de trabalho aos profissionais da área médica, por outro geraram número considerável de demandas judiciais que discutiam o seu atendimento mínimo e suas cláusulas contratuais.
Sob a ótica moderna de "Estado regulador" trazido pela Constituição de 88, foi aprovada a lei 9.656 de 1998, que trata especificamente dos planos de assistência à saúde, dispondo sobre diversos assuntos a eles relacionados.
Dentre as diversas disposições da referida lei, destaca-se o artigo 322, incluído pela medida provisória 2.177-44 de 2001, cujo objeto é o chamado "ressarcimento ao SUS pelos planos de saúde".
O "ressarcimento" ao SUS, assim definido pela lei 9.656/98, é a obrigação que têm as operadoras dos planos de saúde ("Operadoras") de pagar por tudo o que for gasto pelo Estado quando um de seus beneficiários – um cliente do plano – for atendido em algum estabelecimento do SUS.
Trocando em miúdos, em regra, tendo havido negativa ou não pelo Plano, não importando a cobertura do contrato, se um cliente ou dependente do Plano é atendido via SUS, o Estado poderá cobrar da Operadora tudo o que "razoavelmente" foi gasto no atendimento.
A entidade responsável por estabelecer o quanto é devido por cada atendimento é a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, que publica periodicamente tabelas e critérios de valores para consultas, procedimentos e materiais.
Os valores "ressarcidos" ao SUS, conforme determinação da lei 9.656/98, são destinados ao Fundo Nacional de Saúde, para o fim de aplicação na saúde pública.
De mesmo modo, à ANS cabe cobrar administrativa e judicialmente dos planos de saúde dos atendimentos realizados no SUS pelos seus beneficiários.
Desde a publicação da lei 9.656 há quase 14 anos, os valores devidos ao SUS pelos planos de saúde têm crescido exponencialmente.
Com o maior controle do SUS sobre o perfil das pessoas atendidas em seus estabelecimentos, verifica-se que os gastos do sistema com clientes dos planos de saúde representam dezenas de milhões de reais anualmente, por cada plano (Operadora) de grande porte.
Os planos de saúde têm natureza fundiária, isto é, administram os recursos provenientes de sua carteira de clientes ou beneficiários por conta destes e à sua ordem.
Além disso, realizam cálculo atuarial de valores da mensalidade de acordo com os valores arrecadados, aqueles efetivamente gastos em determinado período, bem como avaliam o risco gerado por cada atendimento.
Desta forma, se somados os riscos eventualmente apurados à obrigação de ressarcimento ao SUS legalmente imposta, concluí-se que em determinados casos haverá aumento na mensalidade dos planos de saúde, de modo que, ao final, o consumidor, o cliente da Operadora, arcará com a diferença apurada.
Muita polêmica emergiu da cobrança do ressarcimento por utilização do Sistema Único de Saúde, SUS, sobretudo do ponto de vista técnico-jurídico.
Há tempos, juízes e juristas em geral se digladiam quando o tema é "o ressarcimento ao SUS". Esse embate se dá em razão da quantidade de argumentos que ambos os lados, das Operadoras e do SUS, possuem para tentar cobrar ou obstar a cobrança do ressarcimento.
Os planos de saúde apontam diversas falhas na sistemática de cobrança do aludido ressarcimento.
Tais falhas nascem com o artigo 32 da lei 9.656/98, aquele trazido pela MP 2.177-44, levantando uma gama de questionamentos, constitucionais e infraconstitucionais.
Em suma, os planos defendem que:
(i) ao procurar assistência junto ao SUS, o interessado apenas exerce o seu direito de acesso aos serviços de saúde, direito este insculpido no artigo 1963 da CF/88, conflitando, inclusive com o princípio da livre iniciativa, daí não poder se falar em ressarcimento;
(ii) o ressarcimento por utilização do SUS constituiria nova espécie de "tributo" para financiar a saúde pública, o que seria contrário à Constituição e, até mesmo, porque a lei 9.656/98 não é formalmente capaz de instituir forma de cobrança, uma vez que não é Lei Complementar;
(iii) a cobrança do ressarcimento ao SUS fere a natureza do contrato oferecido, que é de "seguro", e estaria impondo a cobertura total e irrestrita aos planos;
(iv) o consumidor, contribuinte de tributos financiadores do SUS, estaria pagando novamente, embutido em sua mensalidade do plano, por um serviço público de que tem direito de utilizar sem custo adicional;
(v) ainda que válida a cobrança, o ressarcimento, os valores exigidos pelo SUS são maiores do que aqueles praticados pelo plano de saúde.
Como pode ser visto, o tema é bastante amplo e cabe uma reflexão aprofundada. Contudo, está claro que no contexto atual, a cobrança pelo SUS de quaisquer ressarcimentos é questionável.
O descompasso entre o ordenamento jurídico como um todo e o regramento para ressarcimento é economicamente e juridicamente significante.
Tal situação tem levado as operadoras de planos de saúde a adotarem medidas de contenção destes valores já que ainda pende um posicionamento final do judiciário sobre o tema, inclusive a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1.931, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, que trata do assunto de maneira pormenorizada.
Não obstante o cenário ainda indefinido, os planos de saúde não devem se quedar inertes frente às cobranças e potenciais exigências da ANS, relativamente a esta matéria.
Há medidas capazes de (i) minimizar os impactos de uma decisão desfavorável, bem como (ii) possibilitar aos planos reaver os valores que deveriam ser repassados à ANS pela utilização do SUS, que não só podem como devem ser adotadas de modo a salvaguardar a saúde econômico-financeira da operadora do plano de saúde.
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1 CF/88: "Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada (...)".
2 MP 2.77-44: "Art. 32. Serão ressarcidos pelas operadoras dos produtos de que tratam o inciso I e o §1º do art. 1º desta Lei, de acordo com normas a serem definidas pela ANS, os serviços de atendimento à saúde previstos nos respectivos contratos, prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde – SUS. (...)"
3 CF/88: "Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".
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* Gustavo de Alvarenga Batista e Rogério Abdala Bittencourt Jr. são advogados do escritório Almeida Advogados
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