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O equívoco da súmula 485 do Superior Tribunal de Justiça

A súmula 485 do STJ, que firmou o entendimento de que a lei de arbitragem aplica-se aos contratos que contenham cláusula arbitral, ainda que celebrados antes da sua edição, é equivocada?

28/9/2012

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça firmou seu entendimento no sentido de que "a Lei de Arbitragem aplica-se aos contratos que contenham cláusula arbitral, ainda que celebrados antes da sua edição", donde a edição do verbete 485 da Súmula daquele Tribunal.

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, julgou constitucional a Lei de Arbitragem (Sentença Estrangeira 5.847) por entender que o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário é dirigido apenas ao legislador e, por extensão, também ao magistrado. Não é, todavia, – o princípio, dirigido ao jurisdicionado. Este, considerada a matéria dispositiva, pode recorrer, pelo princípio da autonomia da vontade contratual, a outros equivalentes jurisdicionais para dirimir eventuais questões negociais.

Assim, a ratio decidendi subjacente à decisão do Supremo Tribunal Federal em prol da constitucionalidade da Lei de Arbitragem repousa no fato de que o particular é livre para escolher um árbitro que dirima conflitos negociais.

Essa premissa fundamental – a autonomia da vontade, não se discute no presente artigo. O que se pretende aqui é levá-la em conta e mesmo partir dela para concluir - de forma diversa do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que a Lei de Arbitragem não pode ser aplicada a contratos anteriores à sua edição, sob pena de malferimento à própria autonomia da vontade, à própria premissa acolhida pelo Supremo Tribunal Federal.

A cláusula compromissória, por versar um facere infungível, antes da Lei de Arbitragem, gerava apenas uma obrigação de fazer, que, se inadimplida, resolvia-se em perdas e danos. A Lei de Arbitragem, por sua vez, ao dispensar o compromisso, modificou essa sistemática para conferir força executória imediata à cláusula compromissória.

Admitir a execução forçada da cláusula compromissória nos contratos anteriores à novel lei implica alterar todo o contexto normativo, assim como o universo de previsibilidades jurídicas que informaram o ajuste à sua época, donde a violação do ato jurídico perfeito, da segurança jurídica, da irretroatividade das leis e da proteção da confiança.

É princípio geral adotado expressamente pela maioria dos sistemas normativos, embora com variantes de afirmação, o de que as regras de direito operam a partir de sua vigência temporal, produzindo, assim, efeito prospectivo.

O referido axioma, ao cabo de longa evolução histórica, passou a ser considerado como atributo essencial do ato normativo, a fim de que as normas jurídicas não retrocedam a situações pretéritas e consumadas antes da sua edição e entrada <_st13a_personname w:st="on" productid="em vigor. Trata-se">em vigor. Trata-se de exigência da segurança jurídica e da proteção da confiança alçada em garantia supralegal por muitos diplomas constitucionais e pelas declarações internacionais da era moderna e contemporânea.

O domínio da lei abrange, por princípio, o presente e o futuro. Não importa, para efeito de incidência da generalidade dos textos normativos, as situações decorridas anteriormente à sua positivação.

Busca-se, de conseguinte, com o cânone da irretroatividade, evitar que os sujeitos nas relações jurídicas sejam, no amanhã, surpreendidos e constrangidos pelo advento de um imprevisto regime legal que pudesse disciplinar, sob outro teor e conseqüências, suas condutas pré-constituídas.

No vigorante direito constitucional brasileiro o princípio da irretroeficácia das leis acha-se verbalizado sob o mesmo enunciado introduzido pelo constituinte de 1934, estatuindo o inciso XXXVI do art. 5º da Constituição de 1988 que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".

Significa dizer que a norma somente poderá produzir efeito retroativo se e enquanto não desafiar o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito.

É irrelevante se material ou processual a Lei da Arbitragem. O fato é que não poderá ela retroagir para atingir os efeitos de negócio jurídico perfeito, sob pena de violar o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.

A lei nova pode, excepcionalmente, em face de fato ou circunstância novos que não possam ser ignorados pelo direito em razão de sua repercussão, alterar para o futuro a forma de cumprimento da obrigação contratada. Não pode, contudo, sem ferir o conteúdo constitucional, alterar a substância mesma ou a causa de ser da obrigação.

Ainda excepcionalmente, e só na ordem pública, por fato do príncipe, é que poderá - a lei nova, desconsiderar aquela substância mesma da obrigação contratada. Foi o caso da reconstrução da Europa após a 2ª Guerra, quando invalidado o direito emanado do III Reich.

Logo, como se vê, a exceção é excepcionalíssima.

Assim, ainda por exemplo, os contratos que previam correção pela variação cambial. Ora, alterada estruturalmente a relação econômica, evidenciada ficou a ineficácia da cláusula em face do desaparecimento de seu suporte fático. Daí a jurisprudência que, sabiamente, sem afetar a motivação material do contrato, decidiu que, mantidos os contratos, as prestações posteriores se dariam conforme a nova lei. Não houve, portanto, violação do ato jurídico perfeito, mas, tão somente, um aperfeiçoamento do meio que garantia a sua eficácia (mediante o equilíbrio econômico-financeiro do contrato).

Ora, a Lei de Arbitragem não é de ordem pública. Não há, pois, que se falar em alteração da forma de implementação do contrato anterior.

Mesmo que assim não fosse – a irrelevância da natureza processual ou material da Lei de Arbitragem, o fato é que a cláusula compromissória é obrigação de fazer que, se descumprida, deve ensejar, no máximo, indenização por perdas e danos.

Esse o entendimento do Supremo Tribunal Federal:

"Cláusula compromissória (pactum de compromitendo) ainda não é o compromisso constitutivo do juízo arbitral, mas obrigação de o celebrar. Trata-se de uma obrigação de fazer, que se resolve em perdas e danos e que, como pacto de ordem provada, não torna incompetente o juiz natural das partes, se a ele recorrerem" (STF, RE 58.696, REl. Min. Luiz Gallotti, RTJ 42).

Como obrigação de fazer, a cláusula compromissória é instituto de direito material, protegida, portanto, pelo princípio constitucional de respeito aos atos jurídicos perfeitos.

Permitir a retroação das regras da Lei de Arbitragem significa introduzir novas regras no ajuste originário, em frontal e lesiva violação ao ato jurídico perfeito, seu consectário lógico, a segurança jurídica e também à irretroatividade das leis.

Trata-se de normas constitucionais – a irretroatividade da lei e a observação do ato jurídico perfeito, de maior relevância jurídica que a norma da Lei de Arbitragem, porque, dispostas no art. 5º, inciso XXXVI da Constituição da República, foram elevadas ao patamar de garantia fundamental do jurisdicionado.

Por outro lado, importa destacar a inaplicabilidade do Protocolo de Genebra de 1923 como instrumento normativo capaz de ensejar a incidência da ratio essendi da Lei de Arbitragem - execução imediata da cláusula compromissória, aos contratos firmados antes de 1996.

Até 1939, não havia legislação processual unitária no Brasil. Daí que, naquela época, os ditames do Protocolo de Genebra - ratificado em 02 de março de 1932, eram, sim, aplicáveis aos contratos internacionais.

Ocorre que, após o Código Unitário (1939) e em especial o Código de 1973, os efeitos da instauração da arbitragem ficaram condicionados ao compromisso (cf. art. 1.073 – antes da revogação pela Lei de Arbitragem).

A ausência do compromisso - ato formal de conteúdo insubstituível, era, inclusive, causa de nulidade (cf. art. 1.074 - antes da revogação pela Lei de Arbitragem) da decisão arbitral.

Nítido, portanto, o conflito entre a norma internacional ratificada no Brasil - o Protocolo de Genebra, e a norma interna posterior - o Código de Processo Civil.

Na Constituição Federal de 1988, não consta critério específico e expresso para solução dos conflitos entre Tratados Internacionais e o direito interno. A matéria é de cunho constitucional e cabe, na falta de fonte legal, à jurisprudência, sua definição.

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, entende que o tratado internalizado e a lei infraconstitucional interna encontram-se num mesmo patamar hierárquico de lei ordinária.

Este entendimento foi consagrado no importante precedente firmado quando do julgamento do Recurso Extraordinário 80.004, de 1977 (Rel. Ministro Xavier de Albuquerque, RTJ 83/809).

Tratava-se do caso envolvendo a Lei Uniforme de Genebra sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias, que entrou em vigor com o Decreto 57.663, de 1966, e uma lei posterior, o Decreto-lei 427/69. O conflito relacionava-se à obrigatoriedade ou não da exigência de registro do título de crédito na Receita Federal para manter sua força executória - exigência formal de validade do título que não constava no texto internacional. Prevaleceu, pois, o Decreto-lei 427/69.

Mais recentemente, já decidiu o Supremo Tribunal Federal que “os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em conseqüência, entre estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa. Precedentes. No sistema jurídico brasileiro, os atos internacionais não dispõem de primazia hierárquica sobre as normas de direito interno. A eventual precedência dos tratados ou convenções internacionais sobre as regras infraconstitucionais de direito interno somente se justificará quando a situação de antinomia com o ordenamento doméstico impuser, para a solução do conflito, a aplicação alternativa do critério cronológico ("lex posterior derogat priori") ou, quando cabível, do critério da especialidade. Precedentes. (ADIn 1480, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 18/5/2001)

Assim, o fato é que o Supremo Tribunal Federal firmou há muito, quando do julgamento do Recurso Extraordinário 80.004, posicionamento acerca da possibilidade de revogação dos Tratados Internacionais – aqui positivados, pela legislação brasileira posterior.

Com efeito, se a norma internacional foi transformada "em direito positivo brasileiro, evidente que pode ser modificada ou revogada, como qualquer outro diploma legal. Do contrário, transformar-se-ia qualquer lei que procedesse de algum tratado em super lei, em situação superior à própria Constituição Brasileira" (trecho do voto do Ministro Cunha Peixoto quando do julgamento do Recurso Extraordinário 80.004).

Assim, o Protocolo de Genebra foi revogado pelas normas brasileiras processuais posteriores.

O afastamento do Protocolo de Genebra independe da natureza do contrato – se internacional ou não, mas decorre mesmo da violação a ditame da ordem jurídica interna brasileira posterior à sua internalização: o necessário compromisso para ter eficácia e validade o laudo arbitral.

A única exceção à prevalência do direito interno posterior a norma de tratado veio com a Emenda Constitucional 45/04 ao cuidar dos direitos humanos: “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, <_st13a_personname w:st="on" productid="em cada Casa">em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes as emendas constitucionais” (art. 5º, §3º, da CF/88).

Aqui - nos contratos privados, por óbvio, não se cuida da exceção constitucional.

É inconstitucional, portanto, conceder execução imediata a cláusula compromissória de contratos firmados antes de 1996 sob o argumento da aplicabilidade do Protocolo de Genebra porque incongruente com o critério cronológico estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal para a solução dos conflitos existentes entre o tratado internalizado e a norma de direito interno posterior.

Assim, em que pese o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, refletido na Súmula 485, a cláusula compromissória prevista em contratos anteriores à Lei de Arbitragem não deve ter execução imediata, seja em respeito ao ato jurídico perfeito e ao princípio da irretroatividade das leis, seja em razão da revogação do Protocolo de Genebra pelo Código de Processo Civil brasileiro.

Por ser o tema de índole eminentemente constitucional, a última palavra caberá ao Supremo Tribunal Federal.

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* Christiane Pantoja é sócia e coordenadora do setor contencioso-administrativo do escritório Siqueira Castro Advogados, em Brasília.

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