Projeto de Lei Nº 936/2003
Júlio César Bueno*
Eugenia Christina B. Albernaz*
Altera a redação do art. 618 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil
2.-Nas palavras do Relator do Projeto na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados sobre o PL 936/2003, tal modificação decorre da “mudança na realidade da construção civil brasileira e os trágicos desabamentos de edifícios”, que “apontam para a conclusão de que os empreiteiros não podem continuar a ser responsabilizados apenas pelo esqueleto da obra, enquanto todos os seus acessórios desabam ou não estão condizentes com a qualidade prometida, sendo não raro longo o tempo decorrido até que os vícios se tornem perceptíveis.”1
3. -Nos próximos dias, o PL 936/2003 será distribuído a um Relator no Senado Federal, para revisão, nos termos do que vai previsto no artigo 58, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Uma vez aprovado, sem emendas, pelo Senado Federal, o PL 936/2003 seguirá à sanção presidencial.
4.-Faltam, assim, alguns meses até que o PL 936/2003 seja definitivamente aprovado, mas o fato é que as alterações por ele introduzidas no artigo 618 estão em linha com as alterações já incorporadas ao aludido artigo quando da entrada em vigor do Código Civil.
5.-Com efeito, o artigo 618 do Código Civil já havia aumentado de forma significativa a responsabilidade do empreiteiro, ao tornar irredutível o prazo da garantia qüinqüenal, antes passível de ajuste contratual segundo entendimento dominante, e ao suprimir a ressalva legal quanto às condições do solo, que poderia eximir a responsabilidade do empreiteiro que as denunciasse.
6.-Logo, a alteração introduzida pelo PL 936/2003 apresenta-se como conseqüência natural das modificações anteriores.
7.-No entanto, a despeito da orientação nitidamente protecionista que inspirou as alterações ao artigo 618 do Código Civil, não se pode perder de vista que a norma legal estabelece uma responsabilidade excepcional, e, como tal, aplicável somente às situações que conjuguem os requisitos específicos previstos em lei, a saber2: (i) ao contrato de empreitada com fornecimento simultâneo de materiais e mão-de-obra ; (ii) nas construções de grande vulto; e (iii) quando o defeito ou falha da construção ameaçar a solidez e segurança da obra.
8.-Sendo assim, a característica determinante para a responsabilidade prevista no artigo 618 do código civil é o risco à solidez e segurança da obra contratada, daí a razão do prazo dilatado, “para que não se possa confundir a insegurança da obra resultante dos materiais e do solo com aquela que possa provir de outras causas.”3
9.-A idéia é que, se num determinado espaço de tempo a obrar vier a ruir, ou ameaçar de ruir, “a causa do desabamento não pode ser outra senão defeito na construção ou vício do solo, não se podendo explicar de outra forma como possa um edifício, ou outra construção, destinado a uma longa existência, vir a ruir em tão breve lapso de tempo.”4
10.-O alargamento desse prazo, aliado à interpretação liberal que se tem adotado relativamente aos defeitos capazes de ensejar a aplicação da responsabilidade excepcional do artigo 618 do Código Civil, prejudica a defesa do empreiteiro de forma considerável. A uma porque a responsabilidade por garantia assume a natureza de “quasi objetiva” e, portanto, de culpa presumida, com a conseqüente inversão do ônus da prova. A duas porque a responsabilidade do empreiteiro, por força de alargamento jurisprudencial, não tem sido limitada às hipóteses em que haja o risco específico de ruína da obra, fruto do sentido abrangente conferido por orientação dos Tribunais à expressão “solidez e segurança”.
11.-Com efeito, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que “a expressão ‘solidez e segurança’ utilizada no artigo 1.245 do Código Civil não deve ser interpretada restritivamente; os defeitos que impedem a boa habitabilidade do prédio, tais como infiltrações de água e vazamentos, também estão por ela abrangidos.”5
12.-Especificamente no que concerne à segurança, o Ministro Athos Carneiro assim se pronunciou6:
“Sustento, destarte, que as infiltrações de água nos tetos ou paredes, por motivo de fendas ou fissuras, podem ser abrangidas no conceito de segurança do edifício, pois a segurança é também a segurança dos moradores, e os moradores não podem ser considerados seguros habitando num prédio onde a infiltração de água e umidade causam ou podem causar manifestos danos à sua saúde. É um problema de segurança, não abrangente apenas da eventualidade de desabamento do prédio, mas também das perfeitas condições de habitabilidade e de salubridade da edificação.” (grifamos)
13.-Diante desse cenário de alargamento substancial da responsabilidade conferida ao empreiteiro, como visto acima, para além dos conceitos intrínsecos de “solidez e segurança”, e extensão do prazo de garantia, argumenta-se que eventuais distorções estariam sanadas pela concessão do benefício do prazo decadencial de 180 (cento e oitenta) dias estipulado no artigo 618 do Código Civil para que o dono da obra reinvidique os seus direitos em juízo, i.e., que esse prazo diminuto seria suficiente para elidir estado de insegurança permanente do empreiteiro.
14.-Na vigência do Código anterior, a orientação doutrinária e jurisprudencial fixou-se pela conjugação do prazo previsto em lei da responsabilidade qüinqüenal com o prazo da prescrição comum às ações de direito pessoal, entendendo-se que a pretensão deduzida seria de completa indenização, por má execução de serviços de construção, ou adimplemento ruim desse contrato7:
"I. Na linha da jurisprudência sumulada (enunciado n.194) deste Tribunal, fundada no Código Civil de 1916, ‘prescreve em vinte anos a ação para obter do construtor, indenização por defeitos na obra."
II. O prazo de cinco (5) anos do art. 1.245 do Código Civil, relativo à responsabilidade do construtor pela solidez e segurança da obra efetuada, é de garantia e não de prescrição ou decadência. Apresentados aqueles defeitos no referido período, o construtor poderá ser acionado no prazo prescricional de vinte (20) anos.”8
15.-No entanto, por óbvio que seja o interesse do legislador de estabelecer o prazo decadencial de 180 (cento e oitenta) dias para as reclamações contra o empreiteiro, entendemos, porém, que as discussões a esse respeito deverão ser calorosas até que se defina a natureza desse prazo estipulado, o qual poderia se relacionar apenas às ações de natureza constitutiva, tais como as atinentes aos vícios redibitórios, em consonância com o §1º do artigo 445 do Código Civil, ou à rescisão contratual. Nesse sentido a lição da Professora Tereza Ancona Lopes:
“E por que se trata de prazo prescricional e não decadencial? Para a resposta buscamos as lições de Agnelo Amorim, que trata a questão de maneira cristalina. A ação a ser intentada busca tutela judicial condenatória, ou seja, reparação dos danos sofridos pelo comitente em função dos vícios que surgiram nos cinco anos da garantia. Todas as tutelas condenatórias estão sujeitas a prazos de natureza prescricional. Já as tutelas de natureza constitutiva ou desconstitutiva estão sujeitas aos prazos decadenciais, pois, como afirma o doutrinador, essas tutelas estão ligadas a direitos potestativos e, portanto, cuidam de matéria de ordem pública e são tratadas com maior rigidez. (...) Em se tratando de reparação dos danos causados pelos defeitos, o prazo é de natureza prescricional e não decadencial, nos termos do art. 206 do Código Civil de 2002. Assim, prescreve em três anos a pretensão de reparação civil (art. 206,§3º,V). Portanto, a questão da decadência em cento e oitenta dias não atinge a pretensão do comitente de reparação pelos danos causados pelos defeitos de solidez e segurança que está sujeita ao prazo prescricional de três anos, por se tratar de demanda condenatória (tal prazo substitui o caput do art. 177 do CC de 1916).”9
16.-É provável, assim, que prevaleça o entendimento de que, aparecendo o defeito no prazo qüinqüenal, ou, à luz do PL 936/2003, dentro do decênio iniciado com a entrega da obra – expedição do “habite-se”10 – inicia-se um segundo prazo, prescricional, para o comitente cobrar pelos prejuízos que o empreiteiro lhe causou.
17.-À luz do acima exposto, é possível concluir, portanto, que o PL 936/2003, ao instituir o prazo de 10 (dez) anos de garantia para a solidez e segurança da obra, acaba por subverter a própria natureza da garantia, eis que permite, pelo lapso temporal, que eventual insegurança da obra se confunda com aquela proveniente de outras causas.
18.-Conclui-se, ainda, que a excepcionalidade dessa responsabilidade e o prazo decadencial exíguo inserido no parágrafo primeiro do artigo 618, em nada contribuem para equilibrar a relação entre as Partes – empreiteiro e comitente – eis que a interpretação liberal adotada para o conceito de “solidez e segurança” da obra, acrescido à natureza de cunho pessoal do direito material eventualmente violado, implicam, na prática, na possibilidade de o empreiteiro responder judicialmente até pelo menos treze anos após a entrega do “habite-se”.
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1Parecer da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados sobre o PL 936/2003, Rel. Deputado Ney Lopes.
2PEREIRA, Caio Mário da Silva. “Construção de Edifício”, in RT 600/9.
3LOPEZ, Teresa Ancona. Comentários ao Código Civil, página 292.
4Carvalho Santos, J.M.. Código Civil Brasileiro Interpretado, vo. XVII/350-391.
5REsp 46.568/SP, Rel. Ministro Ari Pargendler, DJU 1.7.1999.
6REsp 1882/RJ, Rel. Ministro Athos Carneiro, DJU 23.3.1990.
7RE 105.835-8/SP, Rel. Ministro Aldir Passarinho, DJU 26.8.1988.
8REsp 215.832/PR, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJU 7.4.2003.
9LOPEZ, Teresa Ancona. Ob. cit. Pág.298.
10Não se controverte quanto ao início do prazo de garantia, compreendido como sendo a partir da entrega do “habite-se”.
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* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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