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Lei, códigos e suspeitas

Hoje a ideia de Direito se resume em artigos e por isso não é fácil falar de lei natural, já que essa não está organizada em um código.

18/9/2012

Um código, como o penal ou tributário, nada mais é que uma estruturação ordenada das normas jurídicas de um certo campo do direito. A ideia dos códigos é do século retrasado e foi feita em nome da lógica, certeza, coerência do direito, muitos dos quais consagravam legalmente muitas soluções clássicas, sobretudo do Direito Romano, a maioria delas baseadas na lei natural.

Não sei se Napoleão sabia que suas conquistas militares passariam. Mas, pelo tamanho do ego do sire, estou convicto de que ele pensava que o código ficaria com seu nome, já que foi o pioneiro em sua implantação. Há quem diga que os advogados franceses, naquela época, não sabiam o que era o direito civil, mas que só conheciam o “código napoleônico”...

Se, além daquelas vantagens, por um lado, o código facilita a aplicação do direito, por outro, traz o risco de endeusamento da norma. E, passados dois séculos, é o que assistimos hoje na sociedade: a ideia de direito resume-se ao artigo do código tal ou qual. Quando essa mentalidade toma uma dimensão consensual, não é muito fácil falar de lei natural. Se ela não está num código, como posso fazer a coisa certa diante de um dilema, como, por exemplo, ficar em silêncio ou mentir num interrogatório?

Aristóteles sugeria ter em mente a ideia de homem bom, o homem que age pela parte racional de si mesmo. Isso ajuda, mas não é o suficiente. Creio que também podemos nos valer de um critério negativo: sempre que uma conduta nos parece reprovável – o garotão de carro novo que estaciona na vaga reservada ao idoso – é porque consideramos que se deixou de lado um bem que deveria ter sido devidamente valorizado – respeito ao direito do idoso.

A lei natural justamente atua quando reprovamos a ação de um roubador ou de um sequestrador. Nesses casos, damos por certo que roubar ou sequestrar é um mal objetivo. Se tiver alguma dúvida, pergunte ao roubador se ele gostaria de ser roubado. Ou mesmo ao sequestrador, se ele se “importaria” em ser sequestrado...

O problema está em alguns dilemas morais mais complexos e, para estar à altura, o juízo de consciência deve ser refinado pela experiência e sempre considerando os fins da ação da pessoa e suas circunstâncias. Nessa tarefa, argumentos estritamente religiosos, como “isso fere a lei de Deus e merece punição” ou “aquilo é pecado e está errado”, são completamente impertinentes.

Mas, por outro lado, as confissões cristãs tradicionais, sobretudo a Igreja Católica, defendem a lei natural que, “curiosamente”, coincide com o Decálogo. Isso não seria uma estratégia para que uma doutrina moral tenha alguma legitimidade fora das fronteiras da religião, adentrando naquilo que hoje é conhecido como “argumentos de razões públicas”?

Se o cristianismo defende a lei natural não quer dizer que a lei natural seja um assunto cristão. Todo sabemos que a referência a uma lei não escrita está, de um modo ou de outro, em todas as culturas. Ficaremos apenas no Ocidente. A literatura, a filosofia e a história são ricas em exemplos: os embates entre Sócrates e os sofistas (século V a. C.); Antígona de Sófocles (século IV a. C.), no qual se discute se há algo justo por natureza; a ética estoica (século III a. C.), a qual apelava explicitamente à lei natural.

As confissões cristãs reconhecem na lei natural um distintivo do plano divino para o homem. Por essa razão, São Paulo não via inconveniente em falar de lei natural e relacioná-la não com o Decálogo – o que fazia com os judeus – mas com a consciência, justamente quando se dirigia às pessoas que não professavam a religião judaica ou cristã.

Assim, a questão não é de que a lei natural coincida com o Decálogo, até porque lhe é anterior, mas que o Decálogo expressa – por escrito e com mais contundência – verdades da lei natural que podem ficar obscurecidas por vários motivos: culturais, sociais e políticos.

Nesse sentido, pode ocorrer que os cristãos encontrem no Decálogo aquilo que todo homem pode descobrir em sua consciência e em sua relação com os demais e até mesmo que se pronunciem com maior convicção sobre assuntos nos quais os outros manifestam menos certeza.

Agindo assim, não pretendem se situar acima das leis escritas. Apenas exercem um direito de cidadania, o que não autoriza a considerar o apoio na lei natural como um estratagema para fazer impor, dissimuladamente, no seio social, a fé cristã.

Confesso que a suspeita sistemática me causa cansaço. Devemos nos livrar dos preconceitos e buscar as razões. A questão não é quem fala de lei natural (se é ou não cristão) ou se tem pretensões proselitistas para fazê-lo dessa forma, mas se aquilo que é dito é sensato ou não para nossa razão.

Considerada em si mesma, a lei natural não é um assunto eminentemente cristão. É um assunto profundamente humano, no qual todos podemos coincidir. Por isso, a lei natural é também um ponto de encontro entre crentes e não crentes, porque a natureza humana é o que temos em comum e a partir da qual podemos construir um diálogo racional e fecundo. Com respeito à divergência, é o que penso.

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* André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito em Sumaré/SP e professor do CEU-IICS Escola de Direito

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