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A inconstitucionalidade material do regime trabalhista para os servidores do judiciário

Com a exclusão do regime jurídico único dos servidores públicos (alteração do art. 39 da CF/88 pela Emenda Constitucional 19/98), editou-se, no Estado de Mato Grosso do Sul, a Lei 1.974/99, que “dispõe sobre o regime jurídico dos empregados públicos do Poder Judiciário”.

10/10/2005


A inconstitucionalidade material do regime trabalhista para os servidores do judiciário


André L. Borges Netto*


A LEI QUESTIONADA


Com a exclusão do regime jurídico único dos servidores públicos (alteração do art. 39 da CF/88 pela Emenda Constitucional 19/98), editou-se, no Estado de Mato Grosso do Sul, a Lei 1.974/99, que “dispõe sobre o regime jurídico dos empregados públicos do Poder Judiciário”.


Referido documento jurídico, após ter instituído o regime da legislação trabalhista (CLT) aos empregados públicos do Judiciário estadual (art. 1º), dando ao tema a regulamentação dos arts. 2º ao 8º, ainda estabeleceu que “os cargos públicos do atual quadro de pessoal do Poder Judiciário, a medida que forem vagando, serão transformados em empregos públicos, até sua total extinção” (art. 9º).


Ou seja: de uns tempos para cá, os concursos públicos realizados pelo Tribunal de Justiça visam contratar exclusivamente empregados públicos (servidor empregado, submetido ao regime trabalhista da CLT, ainda que com derrogações do direito público), porque a categoria dos servidores titulares de cargos públicos (submetidos ao regime estatutário) está em extinção.


Isto revelado, a única questão posta à discussão é a seguinte: ainda que as esferas de poder tenham liberdade, após a EC 19/98, para adotar regimes jurídicos diferenciados – seja o estatutário, seja o da CLT –, a Constituição Estadual, entendida de forma global e sistemática, autoriza o regime da Lei 1.974/99 para servidores vinculados a atividade (a jurisdicional) que materializa competência essencial do Estado ?


Será revelado, com o apoio da melhor literatura jurídica e da jurisprudência do STF, que a resposta é negativa.


A INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DO REGIME TRABALHISTA PARA OS SERVIDORES DO JUDICIÁRIO


MARÇAL JUSTEN FILHO, jurista que tem o respeito da comunidade jurídica, explorando a determinação dos limites para a contratação pública, revela:

“Uma democracia republicana exige que as competências estatais fundamentais sejam exercitadas por indivíduos submetidos a vínculo jurídico apropriado. A condição de órgão do Estado impõe um regime jurídico diferenciado, próprio do direito público. Por isso, todas as atividades que materializem as competências essenciais do Estado devem ser exercitadas segundo o regime estatutário.

(...)

“...a figura do empregado público é reservada para atividades destituídas de relevância política e que não traduzam as competências estatais mais essenciais. Não é casual, então, que o regime estatutário não seja aplicado no âmbito das pessoas estatais de direito privado, nem é estranho afirmar que o regime trabalhista será aplicado somente por exceção na esfera das pessoas estatais de direito público” (“Curso de Direito Administrativo”, Saraiva, 2005, p. 660).

Recorde-se que a lei questionada colocou em extinção o regime estatutário (art. 9º), transformando em REGRA GERAL, então, o que só se admite (no âmbito de um órgão estatal regulado por normas de direito público e que realiza atividade essencial do Estado) por exceção, daí já se antevendo a desvalia jurídica ora denunciada.


Ou seja: no âmbito do Judiciário estadual, desconsiderando-se firmes diretrizes normativas extraídas da Constituição Estadual, adotou-se como regime jurídico GERAL para os seus servidores o mesmo regime das empresas estatais de direito privado (parágrafo único do art. 168 da Constituição Estadual; art. 173, § 1º, II, da CF/88), o que, evidentemente, não pode ser tolerado.


CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, autor da melhor literatura administrativa nacional, após revelar que a supressão do “regime jurídico único” pela EC 19/98 não pode significar que se tenha conferido ampla liberdade para a adoção livre do regime trabalhista para os servidores públicos (“Curso de Direito Administrativo”, Malheiros, 2003, 15ª ed., p. 231), tratando, ao depois, especificamente, do âmbito de aplicação dos regimes de emprego e de cargo, conclui:

“...para os servidores da Administração direta, autarquias e fundações de Direito Público (ou seja: servidores das pessoas jurídicas de Direito Público), indubitavelmente, o regime normal, corrente, terá de ser o de cargo público, admitindo-se, entretanto, como ao diante se explicará, casos em que é cabível a adoção do regime de emprego para certas atividades subalternas.

(...)

“...o regime normal dos servidores públicos teria mesmo de ser o estatutário, pois este (ao contrário do regime trabalhista) é o concebido para atender a peculiaridades de um vínculo no qual não estão em causa tão-só interesses empregatícios, mas onde avultam interesses públicos básicos, visto que os servidores públicos são os próprios instrumentos da atuação do Estado.

Tal regime, atributivo de proteções peculiares aos providos em cargo público, almeja, para benefício de uma ação impessoal do Estado – o que é uma garantia para todos os administrados –, ensejar aos servidores condições propícias a um desempenho técnico isento, imparcial e obediente tão-só a diretrizes político-administrativas inspiradas no interesse público...

Logo, o que se há de concluir é que, embora o regime de cargo tenha que ser o normal, o dominante, na Administração direta, autarquias e fundações de Direito Público, há casos em que o regime trabalhista (nunca puro, mas afetado, tal como se averbou inicialmente, pela interferência de determinados preceitos de Direito Público) é admissível para o desempenho de algumas atividades; aquelas cujo desempenho sob regime laboral não compromete os objetivos que impõem a adoção do regime estatutário como o normal, o dominante” (p. 238, 239 e 242).

Aquele consagrado mestre ainda revela: quais seriam as atividades estatais passíveis de comportar o regime trabalhista ? Só poderiam ser aquelas referentes à prestação de serviços materiais SUBALTERNOS, “próprios dos serventes, motoristas, artífices, jardineiros ou mesmo de mecanógrafos, digitadores etc., pois o modesto âmbito da atuação destes agentes não introduz riscos para a impessoalidade da ação do Estado em relação aos administrados caso lhes faltem as garantias inerentes ao regime de cargo” (CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, ob. cit., p. 241/242).


À luz dessa fecunda e respeitada literatura jurídica, como que se pode ter por válida (sob o aspecto constitucional) a Lei 1.974/99, que, além de ter instituído o regime trabalhista para a atividade única e essencial do Poder Judiciário, ainda o fez para todos os seus servidores, já que colocou em extinção o regime estatutário ?


Exemplificativamente, as atribuições do ESCREVENTE JUDICIAL, do DISTRIBUIDOR, do CONTADOR, do PARTIDOR, do OFICIAL DE JUSTIÇA, do AVALIADOR, do OPERADOR JUDICIÁRIO e do PERITO-AVALIADOR seriam funções SUBALTERNAS, em que poderia deixar de prevalecer o regime normal e corrente para os servidores públicos, no caso o estatutário ?


Reforçando a inconstitucionalidade, seguem outros posicionamentos doutrinários da maior relevância:

“Em conseqüência, em razão de suas autonomias políticas, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem estabelecer regime jurídico não contratual para os titulares de cargo público, sempre através de lei geral ou de leis específicas para determinadas categorias profissionais, as quais consubstanciam o chamado regime estatutário regular, geral ou peculiar. Podem, ainda, adotar para parte de seus servidores o regime da CLT. (...) Mister, no entretanto, ter presente que alguns servidores públicos, por exercerem atribuições exclusivas de Estado, submetem-se, obrigatoriamente, a regime jurídico estatutário...(...) Depreende-se, também, do exposto, que certas categorias de servidores públicos têm necessariamente regimes jurídicos peculiares, de natureza estatutária. O legislador deverá adotar cautela extrema na elaboração desses regimes jurídicos diferenciados, uma vez que no passado tal aspecto gerou e ainda gera inúmeras disputas judiciais, que, além da insegurança jurídica para a própria pessoa política, acabam causando vantagens muitas vezes por ela não pretendida” (HELY LOPES MEIRELLES, “Direito administrativo brasileiro”, Malheiros, 2004, 29ª ed., p. 394).

“Importante ressaltar que o Legislativo fez opção pelo regime de cargos públicos. A relação estatutária é que prevalece no relacionamento entre Estado e agentes. Não pode optar pelo regime celetista. Ao contrário, o Constituinte cuidou de indicar o regime estatutário, em diversos dispositivos, para deixar claro que pretendia que os serviços públicos fossem prestados por servidores admitidos, mediante um regime específico, que identificou, ao longo de dispositivos apropriados (art. 37 e seguintes). A tais servidores, fez incidir itens relativos ao regime celetista (§ 3º do art. 39), o que não significa que os tenha equiparado. Instituiu vantagens, garantias específicas, formas de provimento etc. Enfim, instituiu um regime próprio, diferente do trabalhista. (...) Sendo assim, não pode a Administração Pública adotar, como normal em seu relacionamento com os usuários do serviço público e com toda a população, regime diverso daquele indicado no texto constitucional” (RÉGIS FERNANDES DE OLIVEIRA, “Servidores públicos”, Malheiros, 2004, p. 34/35).

“Ressalte-se que somente as atividades que não comprometerem a atuação impessoal do Estado poderão ser contratadas mediante o regime trabalhista, já que o regime estatutário é o regime mais conveniente para tutelar os servidores públicos, visando à atuação impessoal do Poder Público” (CARLOS PINTO COELHO MOTTA, “Curso prático de direito administrativo”, Ed. Del Rey, 2004, 2ª ed., p. 1018).

Daí se vê que a “flexibilização” pretendida encontra firme impedimento constitucional.

O que se sustenta já foi decidido pelo STF. Com efeito, a Lei Federal 9.986/2000, também de forma viciada, estabeleceu o regime da legislação trabalhista para os servidores das AGÊNCIAS REGULADORAS. Ajuizada ADIn (que não teve o mérito apreciado, porque, sendo clara a inconstitucionalidade, editou-se outra lei, revogando a anterior), deferiu-se a liminar (pelo Ministro CARLOS VELLOSO, sabidamente um dos mais técnicos daquela Corte), do seguinte e importante teor:

“Conforme salientado na inicial a folha 16, a definição da possibilidade de ter-se a Consolidação das Leis do Trabalho como regedora das relações jurídicas entre as agências reguladoras e os respectivos prestadores de serviços surge como matéria prejudicial, tendo em conta o exame dos demais dispositivos da Lei n. 9.986/2000 a ela ligados. Inegavelmente, as agências reguladoras atuam com poder de polícia, fiscalizando, cada qual em sua área, atividades reveladoras de serviço público, a serem desenvolvidas pela iniciativa privada. Confira-se com os diplomas legais que as criaram, em que pese a própria razão de ser dessa espécie de autarquia. A problemática não se resolve pelo abandono, mediante alteração constitucional - Emenda 19/98 -, do sistema de regime jurídico único. Cumpre indagar a harmonia, ou não, da espécie de contratação, ante a importância da atividade e, portanto, o caráter indispensável de certas garantias que, em prol de uma atuação eqüidistante, devem se fazer presentes, considerados os prestadores de serviços. O tema não é novo e vem, de há muito, merecendo a atenção de constitucionalistas e administrativistas. A Constituição Federal encerra dualidade. Ao lado da investidura em cargo, prevê aquela direcionada ao preenchimento de emprego público, jungindo ambas a aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei - inciso II do artigo 37 da Constituição Federal. Despiciendo é dizer da aplicabilidade do preceito às autarquias, no que integram a Administração indireta, sendo que, no tocante às sociedades de economia mista, as empresas públicas e as fundações de direito privado, não se pode falar na existência de cargo público. A razão é única: são pessoas jurídicas de direito privado. A dualidade prevista na Carta não coloca as investiduras em idêntico patamar, nem sugere a escolha a livre discrição. Nota-se a referência a emprego público apenas nas disposições gerais do Capítulo VII, voltado aos parâmetros da Administração Pública. Na Seção II desse Capítulo, tem-se disciplina a revelar, como regra, a adoção do regime de cargo público, ocupando o tema os artigos 39 a 41. Vê-se, mesmo, a distinção entre cargo público e emprego público, no que se previu, no artigo 39, § 3º, a extensão, aos servidores ocupantes do primeiro, do disposto no artigo 7º, mais precisamente nos incisos IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, enquanto em relação aos empregos públicos, a incidência faz-se de forma linear, ante a aplicação do próprio regime da Consolidação das Leis do Trabalho. Conforme ressaltado pela melhor doutrina - Celso Antonio Bandeira de Mello, em Curso de Direito Administrativo, 12ª edição, página 260 -, .(...) o regime normal dos servidores públicos teria mesmo de ser o estatutário, pois este (ao contrário do regime trabalhista) é o concebido para atender a peculiaridades de um vínculo no qual não estão em causa tão-só interesses empregatícios, mas onde avultam interesses públicos básicos, visto que os servidores públicos são os próprios instrumentos da atuação do Estado.. Realmente, o cargo público, como ressaltado pelo consagrado mestre, propicia desempenho técnico isento, imparcial e obediente tão-só a diretrizes político-administrativas inspiradas no interesse público...., sobressaindo a estabilidade para os concursados. Sim, a teor do artigo 41 da Constituição Federal, preceito que não se encontra nas disposições gerais, mas nas alusivas aos servidores públicos estrito senso, o instituto da estabilidade, alcançável após três anos de efetivo exercício, está jungido a cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público, cuja perda pressupõe sentença judicial transitada em julgado (I), processo administrativo em que seja assegurado ao servidor ampla defesa (II) e procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, também assegurada ampla defesa (III). Nítidas são as balizas, sob o ângulo de direitos e deveres, do cargo público e do emprego público, notando-se que a disponibilidade só diz respeito ao primeiro, e que a aposentadoria é diversa, sendo a do servidor, ocupante de cargo público, norteada pelo que percebido em atividade, enquanto o detentor de emprego público está sujeito ao regime geral de previdência, conforme dispõe o artigo 40, § 11, da Constituição Federal. É certo estar o detentor de emprego público em patamar superior aquele dos empregados em geral. Todavia, isso decorre do princípio da legalidade, que submete a Administração como um todo. Vale dizer, não fica o servidor ocupante de emprego público sujeito ao rompimento do vínculo por livre iniciativa da Administração Pública, devendo o ato, como todo e qualquer ato administrativo, ser motivado. Alfim a premissa resulta de não se ter, em tal campo, a amplitude própria ao princípio da autonomia da manifestacão da vontade. Então, cumpre examinar a espécie. Os servidores das agências reguladoras hão de estar, necessariamente, submetidos ao regime de cargo público, ou podem, como previsto na lei em exame, ser contratados para empregos públicos. Ninguém coloca em dúvida o objetivo maior das agências reguladoras, no que ligado a proteção do consumidor, sob os mais diversos aspectos negativos - ineficiência, domínio do mercado, concentração econômica, concorrência desleal e aumento arbitrário dos lucros. Hão de estar as decisões desses órgãos imunes a aspectos políticos, devendo fazer-se presente, sempre, o contorno técnico. E isso o exigível não só dos respectivos dirigentes - detentores de mandato -, mas também dos servidores - reguladores, analistas de suporte a regulação, procuradores, técnicos em regulação e técnicos em suporte a regulação - Anexo I da Lei n. 9.986/2000 - que, juntamente com os primeiros, hão de corporificar o próprio Estado nesse mister da mais alta importância, para a efetiva regulação dos serviços. Prescindir, no caso, da ocupação de cargos públicos, com os direitos e garantias a eles inerentes, e adotar flexibilidade incompatível com a natureza dos serviços a serem prestados, igualizando os servidores das agências a prestadores de serviços subalternos, dos quais não se exige, até mesmo, escolaridade maior, como são serventes, artífices, mecanógrafos, entre outros. Atente-se para a espécie. Está-se diante de atividade na qual o poder de fiscalização, o poder de polícia fazem-se com envergadura ímpar, por isso mesmo, que aquele que a desempenhe sinta-se seguro, atue sem receios outros, e isso pressupõe a ocupação de cargo público, a estabilidade prevista no artigo 41 da Constituição Federal. (...) Em suma, não se coaduna com os objetivos precípuos das agências reguladoras, verdadeiras autarquias, embora de caráter especial, a flexibilidade inerente aos empregos públicos, impondo-se a adoção da regra que é a revelada pelo regime de cargo público, tal como ocorre em relação a outras atividades fiscalizadoras – fiscais do trabalho, de renda, servidores do Banco Central, dos Tribunais de Contas etc”.

Ora, se o STF já teve por INCONSTITUCIONAL ato normativo estabelecedor do regime trabalhista para simples Agências fiscalizadoras, não parece haver dúvida de que o mesmo (por idênticos fundamentos) deve prevalecer para situação infinitamente mais relevante, já que se debate acerca de lei instituidora de regime descabido para atividade essencial (e não subalterna ou periférica) do Estado, que é levada adiante (é certo, especialmente pelos Magistrados) pelos instrumentos de atuação da atividade jurisdicional, no caso os servidores lotados no Judiciário.


Para remate do tópico, boa será a leitura de formoso texto jurídico elaborado pela Professora CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA (“Princípios constitucionais dos servidores públicos”, Saraiva, 1999, p. 113/142), onde é amplamente analisado o tema do regime constitucional do servidor público, antes e depois da EC 19/98, em que são realizadas as seguintes ponderações:

“O que a norma constitucional contida no art. 39, retrotranscrito em sua versão originária, veio trazer ao sistema foi a superação daquele estado administrativo caótico e a obrigatoriedade de um tratamento unívoco para o servidor público de cada entidade, a fim de que o tratamento desigual para aqueles em condição de identidade não pudesse ocorrer e gerar situações de injustiça, insegurança e comprometimento da própria qualidade do serviço e atendimento da demanda social.

Não se haveria, portanto, de concluir que o constituinte brasileiro iria possibilitar, pela sua criação normativa, aquilo que a própria natureza das coisas não permite, admitindo ele, então, a eleição de qualquer regime jurídico para a sua instituição pelas entidades políticas. Não parece crível que a norma constitucional transgrediria a essência do vínculo entre a entidade estatal e o servidor público, porque o próprio objetivo do direito estaria fadado à falência pela inaplicabilidade e adequação à realidade administrativa do quanto posto normativamente.

Sem razão se tem, portanto, a questão posta quanto à possibilidade de o legislador infraconstitucional de cada uma das entidades administrativas admitir um regime jurídico para o servidor público de cada qual das entidades (portanto, cumprida estaria a exigência constitucional do único), mas adotando como exclusivamente adotado o contratual trabalhista. Dessa natureza seria a única modalidade de regulamentação jurídica a subsumir a relação entre a pessoa estatal e o servidor público. Mesmo a supressão da obrigatória assunção de regime jurídico único pela Administração Pública, que se teve com o advento da Emenda Constitucional n. 19/98, não permite que se chegue àquela conclusão.

Sendo as atividades administrativas desenvolvidas sob regime jurídico próprio, de direito público, dotado de configuração própria e vocacionada ao atingimento de um objetivo social peculiar indisponível, não se poderia aceitar pudessem elas ser prestadas por agentes submissos senão a regime jurídico informado por idênticos princípios e de igual natureza. Não haveria de ser sob um regime dirigido ao desempenho de atividades próprias aos interesses particulares, disponíveis, renunciáveis, possíveis de descontinuidade apenas segundo a vontade e o interesse das partes que poderiam aqueles serviços ser desempenhados.

Destarte, a natureza jurídica do serviço público impõe um regime jurídico peculiar e adequado a incidir sobre o serviço público, informado pela singularidade de sua responsabilidade social.

É certo, pois, que a adoção do regime nacional de direito do trabalho nos quadros das entidades políticas para os servidores públicos pode agravar princípios fundamentais essenciais modeladores do modelo administrativo cunhado pelo constituinte originário em 88, a despeito da exclusão da regra que se positivara, expressamente, na versão originária do art. 39, agora reformado pela Emenda Constitucional n. 19/98, mas nem por isso se há de deixar de atentar a que a adoção do regime estatutário continua sendo obrigatória, até mesmo porque há serviços e funções que são absolutamente incompatíveis com o regime trabalhista comum, sendo insuperável a adoção do estatuto para esses casos, que são os que dominam o cenário e a dinâmica da Administração Pública.

Logo, a subtração textual do ditame da obrigatoriedade de adoção do regime jurídico unicamente admissível para o servidor público, qual seja, o estatutário nem exclui o dever de se ater a ele, menos ainda o de se adotarem regimes plurais para situações idênticas, porque a exclusão, também, do texto referente ao princípio da isonomia não o elimina do sistema, nem mina a sua intangibilidade como pedra angular da construção nuclear do sistema jurídico fundamental.

Vê-se, pois, que a solução de imaginar que a modificação, ainda que constitucional, do rótulo de um instituto ou de uma figura de direito muda a sua essência é uma ingenuidade jurídica. O direito não faz milagre. A Administração Pública só faz direito” (destaques nossos).

A CONSTITUIÇÃO ESTADUAL COMO PARÂMETRO PARA A DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE


Caso se queira ajuizar AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, há que se lembrar que esse tipo de demanda, ajuizada perante o Tribunal de Justiça Estadual, em que se questiona a validade de lei estadual, deve adotar como parâmetro a Constituição Estadual, como revela a Constituição Federal (§ 2º do art. 125), a Constituição Estadual (parte final do “caput” do art. 123) e o Regimento Interno do TJ/MS (art. 596), sendo cabível o controle concentrado ainda quando a norma da Carta estadual seja idêntica à da Carta nacional (na doutrina: RODRIGO LOPES LOURENÇO, “Controle de constitucionalidade à luz da jurisprudência do STF”, Forense, 1998, p. 127; na jurisprudência: RTJ 147/404, 152/371 e 155/699).

É inconstitucional, portanto, a Lei 1.974/99, porque a Constituição Estadual, interpretada de modo global e sistemático (“...somente a compreensão sistemática poderá conduzir a resultados seguros” – GERALDO ATALIBA, “República e Constituição”, RT, 1985, p. 152), não autoriza que se adote (como regra geral) o regime trabalhista para os servidores do Judiciário.


A esta conclusão se aporta em razão de que:


a) toda a literatura jurídica acima citada, reveladora da impossibilidade da adoção do regime de emprego público para atividade essencial do Estado (baseada em noções extraídas da Constituição Federal), certamente também se aplica ao que está previsto na Constituição Estadual, ainda que por mera repetição. Ou seja: lido globalmente o texto da Constituição Estadual, este não empresta validade jurídica ao regime jurídico veiculado pela lei questionada;


b) o que se sustenta conta com precedente do STF (ADIn 2.310/DF, Rel. Min. Carlos Velloso), sendo que os fundamento ali contidos também se aplicam ao que exsurge da leitura global e sistemática da Constituição Estadual, quanto ao tema do regime jurídico dos servidores do Judiciário;


c) a Constituição Estadual, especialmente o que se encontra nos capítulos iniciados pelos arts. 25 e 29 (art. 27, I, II, VIII, XVI e § 8º; art. 29, “caput” e art. 33), que em grande parte repetem o que está na CF/88 (nos capítulos iniciados pelos arts. 37 e 39), cuidou sim de traçar os caracteres básicos de um regime específico para os servidores, distinto do trabalhista e tratado com amplitude (o que também se fez pela redação dada aos arts. 62, IV, e 89, X, da Constituição Estadual), daí não se poder adotar um regime tido como EXCEPCIONAL (para poucas situações, como, por exemplo, no âmbito do Judiciário, serviços de limpeza, ascensorista, copa, segurança, reprografia etc.) como a REGRA GERAL da vinculação dos servidores ao Judiciário estadual, especialmente quando é considerado que a lei questionada colocou em extinção o regime estatutário;


d) a eliminação da regra do “regime jurídico único” (ainda não alterada na Constituição Estadual, art. 29), pela EC 19/98, não autoriza se adote o regime da CLT para atividade essencial do Estado, no caso a jurisdicional. A leitura conjugada da Constituição Estadual, no ponto, somente autoriza aquele regime – ainda mais quando adotado de forma geral e exclusiva – para funções materiais subalternas, em razão mesmo das proteções e garantias (inexistentes para os empregados) inerentes a uma atuação imparcial, técnica e eficiente, que se exige daqueles que atuam como instrumentos da prestação jurisdicional;


e) a Constituição Estadual não conferiu ao legislador liberdade absoluta e desregrada quanto à adoção do regime jurídico dos servidores estaduais, impondo, na verdade, a adoção do regime estatutário como o regime NORMAL, CORRENTE e DOMINANTE, o que prevalece no âmbito do Judiciário, que exerce competência essencial do Estado Democrático de Direito;


f) o regime trabalhista é o regime único e geral das empresas estatais (sociedades de economista mista e empresas públicas), como decorre da interpretação do parágrafo único do art. 168 da Constituição Estadual (por correspondência com o art. 173, § 1º, II, da CF/88). Como querer adotar regime típico de pessoas de DIREITO PRIVADO para pessoas ou entidades de DIREITO PÚBLICO ?


g) da mesma forma que a Constituição Federal (no art. 96, II, “b”), no capítulo dedicado ao Judiciário, não trata do regime de “emprego”, mas somente do regime de “cargo”, a Constituição Estadual, também no capítulo do Judiciário, somente trata do tema do regime estatutário, ao fazer menção, repetidas vezes (art. 107, III; art. 114, “b” e “g”) apenas a “cargos” e não a “empregos”, tudo a revelar, com o apoio da literatura jurídica mais autorizada, que o regime da CLT – precisamente nesse domínio estatal – é a exceção e não a regra. Aqui não parece demais lembrar de vetusto (mas atual) brocardo jurídico: “EXCEPTIONES SUNT STRICTISSIMOE INTERPRETATIONIS”1 , a revelar que situação tão absolutamente excepcional como a do regime da CLT para servidores públicos não poderia passar a ser adotado (como no caso da lei questionada) como regime jurídico ÚNICO e GERAL para os servidores do Judiciário, porque a tanto não autorizou a Constituição Estadual.


Daí se pode pleitear a invalidação da referida Lei Estadual, porque “A superioridade normativa da Constituição traz, ínsita, em sua noção conceitual, a idéia de um estatuto fundamental, de uma ‘fundamental law', cujo incontrastável valor jurídico atua como pressuposto de validade de toda a ordem positiva instituída pelo Estado” (RTJ 140/954, RE 107.869, Rel. Min. CÉLIO BORJA).


O EFEITO QUE SE PRETENDE SEJA DADO À DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE


Há tempos vêm sendo abrandada, pela doutrina e jurisprudência, a tese da nulidade absoluta da norma inconstitucional (por todos: LUÍS ROBERTO BARROSO, “O controle de constitucionalidade no direito brasileiro”, Saraiva, 2004, p. 19 e seguintes; a evolução da jurisprudência do STF é revelada por JULIANO TAVEIRA BERNARDES, “Controle abstrato de constitucionalidade”, Saraiva, 2004, p. 350).


Atualmente, com a edição da Lei Federal 9.868/99, especialmente em decorrência da redação do seu art. 27, é possível a declaração de inconstitucionalidade de lei com efeito “ex nunc”, o que se pode requerer para o caso de eventual ADIn, dado ser impensável tudo declarar nulo, riscando do mundo jurídico todas as centenas de contratações já havidas por força da Lei estadual 1.974/99, com imensos prejuízos à prestação jurisdicional e aos servidores que, de boa-fé, submeteram-se a concursos públicos e se vincularam ao Judiciário, ainda que sob regime jurídico inválido.


Visando proteger a boa-fé, a segurança jurídica e o interesse público em questão, correta será a declaração de inconstitucionalidade com efeito “ex nunc”, colocando-se em regime de extinção, à medida em que forem vagando, os empregos públicos do Judiciário local.


A propósito, já se decidiu:

“A natureza dos efeitos da decisão judicial que declara a inconstitucionalidade de uma lei – ‘ex tunc’ ou ‘ex nunc’ – não emerge de princípio ou de preceito sediado na Constituição, configurando, isto sim, uma questão de política judicial, desse modo, sejeita à livre valoração judicial a ser feita em cada caso concreto, segundo os reclamos de justiça e razoabilidade em cada espécie litigiosa. Destarte, pode o Tribunal dar efeito ‘ex nunc’ à declaração de inconstitucionalidade em homenagem à boa-fé dos destinatários da norma, decorrente do princípio da presunção de constitucionalidade das leis” (RF 366/248).

CONCLUSÃO


É inconstitucional, portanto, a adoção do regime trabalhista (emprego público) para os servidores do Judiciário sul-mato-grossense, podendo-se questionar o tema, dentre outras medidas, pela via da ação direta de inconstitucionalidade.

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*Advogado constitucionalista em Campo Grande/MS





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