Migalhas de Peso

Tortura, lei e razão

Uma reflexão sobre a lei natural dos homens e as distintas percepções sobre vida moral.

14/9/2012

Uma boa parte dos brasileiros, segundo uma pesquisa recente, entende que a tortura pode ser empregada como meio de investigação policial em crimes graves, como o estupro, o sequestro, o tráfico de drogas e o roubo, mas a mesma parcela entende que os tribunais não podem aceitar provas obtidas pela mesma tortura (NEV/USP – 2010).

Além do fato da notória ambivalência sobre a percepção da tortura para os entrevistados, o que sugere uma série de outras conclusões, alguém poderia afirmar que, a partir da pesquisa, por haver distintas morais paralelas, então não se poderia falar de uma lei natural comum a todos os homens.

A lei natural pode ser resumida num princípio muito elementar: faze o bem e evita o mal. O cristianismo lapidou o mesmo princípio de outra maneira: ama o próximo como a ti mesmo. E a filosofia, por meio da famosa máxima kantiana, recomendou: age sempre como se a tua conduta pudesse ser apresentada como exemplo universal.

Creio que estamos todos de acordo sobre tudo isso, porque somos seres morais por natureza. O problema surge quando essas ideias gerais concretizam-se em situações distintas de lugar, tempo e cultura. Acertar, na prática, não é uma questão de fórmulas prontas e acabadas. Exige muitas doses de razão no trabalho de ponderação dos bens que estão em jogo no caso concreto.

E, nesse momento, podemos nos equivocar de muitas maneiras: escolhendo os meios menos apropriados, dando um valor exagerado para as circunstâncias ou mesmo chegando a juízos de valor apressados. Mas, quanto ao fundamental, estamos mais de acordo que se parece.

A maior parte de nossas divergências morais não ser referem ao conteúdo da lei natural, como, por exemplo, o respeito à vida alheia, mas em sua concretização em determinadas circunstâncias, como a eutanásia ou a pena de morte. Não discutimos se é bom ser justo, mas sobre a justiça da carga tributária brasileira.

Adentramos em terrenos mais movediços, nos quais, muitas vezes, levados por nossos interesses imediatos, podemos nos enganar com bastante facilidade e sem se dar conta disso. A lei natural não oferece uma equação algébrica para solucionar todos os problemas e acredito que sua perenidade e vitalidade decorram justamente dessa falta de cientificidade.

A lei natural impulsiona-nos a agir com retidão, sem perder de vista os bens comprometidos em nossos atos: se estou cheio desse meu vizinho que insiste em tocar tuba de madrugada, matá-lo, ainda que eu esteja firmemente disposto a fazê-lo, não vai resolver o problema, mas criar outros piores ainda. Nesta tarefa de discernimento, não estamos sós. Devemos ouvir e refletir as críticas e objeções dos outros, sobretudo quando nos advertem sobre as coisas que, por inclinação pessoal, tendemos a esquecer.

Mas essa mesma postura pode ser aplicada nos assuntos da vida pública? A lei natural não torna supérfluo o debate racional sobre os assuntos que concernem a todos, porque, mais cedo ou mais tarde, afetam a qualidade da convivência social. Nesse sentido, é lamentável o baixo nível do debate político atual, onde as razões ficam sistematicamente sepultadas por baixo da demagogia e das estratégias de manipulação.

Se, em qualquer controvérsia, somos capazes de separar a ofensa pessoal dos argumentos racionais, nossa percepção moral vai se aprimorando e fazendo-se mais justa. Assim, ficamos em condições melhores para agir bem, porque a lei natural pede-nos para atuar conforme a razão. Para isso, é importante apostar na razão, mas numa razão atenta contra suas próprias debilidades.

Por isso, necessitamos dos demais e de sua experiência moral para comparar nossas posturas e retificar, se for o caso, nossa visão unilateral. A vida moral não é uma pura prescrição seca de normas, mas uma forma de sabedoria prática. Logo, nessa linha de pensamento, nunca é algo exclusivamente privado. Todos aprendemos de todos, mas, certamente, mais de uns do que de outros. Com respeito à divergência, é o que penso.

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* André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito e professor do CEU-IICS Escola de Direito

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