Feito esse esclarecimento inicial, tomo como ponto de partida para a anunciada reflexão o ato pelo qual o juiz define quem é o dono de determinado bem, diz se alguém deve pagar determinada quantia, condena ou absolve o acusado de um crime, enfim, decide a questão central que lhe é apresentada em um processo. É a chamada sentença judicial de mérito, a qual passo a chamar simplesmente de "sentença", em consonância com o anunciado no parágrafo anterior.
Os estudiosos do assunto têm uma infinidade de conceitos para a sentença. Uns destacam o seu aspecto formal, outros dão relevo ao seu aspecto material, todos de alguma forma incompletos, não por incapacidade dos cientistas do Direito, mas pelas limitações que a comunicação por meio de palavras nos impõe, notadamente quando essas palavras estão escritas, desprovidas, portanto, de entonações e gestos presentes na linguagem falada.
Nessa linha de pensamento, a ideia aqui não é formular uma nova definição ou conceito de sentença, mas reconhecer que, se, por um lado, ela é o resultado da atividade intelectual do juiz, que lança mão do seu raciocínio e do seu conhecimento, especialmente o jurídico, por outro, ela é um ato de fé.
Por que um ato de fé? É isso que ora tento explicar, compartilhando ideias que há alguns meses giram em minha mente.
Para isso, fixemos inicialmente o pressuposto de que, para que o juiz profira uma sentença, é necessário que alguém o peça. Simplificadamente, pode-se dizer que alguém se dirige à Justiça, pedindo o reconhecimento de determinado direito, o qual vem sendo ameaçado ou tolhido por outrem. Na esfera penal, o Ministério Público, representante da sociedade que é, pede a aplicação de uma punição a alguém que é acusado de praticar um ato considerado crime pela lei do país.
Posto isto, não direi qualquer novidade se afirmar que, ao proferir uma sentença, o juiz tem como objetivo solucionar um conflito de interesses, e intenta fazê-lo por meio da aplicação de normas jurídicas à questão de fato que está no centro desse conflito.
Ocorre que, ao se dedicar a essa tarefa, o juiz se depara com as seguintes perguntas: Quais os fatos efetivamente ocorridos? Quais as normas adequadas para regular esses fatos?
A primeira noção que o juiz tem dos fatos a serem julgados, chega por meio da parte que leva o conflito à Justiça, o autor da ação. O autor descreve os fatos e pede a aplicação das normas que entende cabíveis a eles, sugerindo desde logo quais seriam essas normas. Isso é feito, em regra, por uma pessoa detentora de conhecimentos jurídicos, como um advogado, um promotor ou um procurador.
O juiz, entretanto, não pode aceitar de imediato esses fatos como verdadeiros, nem tampouco a adequação das normas jurídicas sugeridas, por um motivo muito simples: aquele que pede a manifestação da Justiça tem interesse no resultado do julgamento, ou seja, pretende que a sentença seja julgada em seu beneficio, logo, tende a narrar os fatos e escolher as normas em conformidade com os seus interesses.
Então, o juiz precisa saber a versão dos fatos, e a sua interpretação, do ponto de vista de quem deverá sofrer as consequências de uma eventual procedência do pedido do autor. Em linguagem corrente no mundo jurídico, o juiz precisa ouvir a outra parte no processo. Obviamente que também essa versão dos fatos e, bem assim, sua conformação jurídica, são influenciadas pelo interesse de quem as emite, logo também tendenciosas.
Vê-se, portanto, que o juiz tem diante de si pelo menos duas versões de um mesmo fato, em geral divergentes, embora eventualmente possam guardar similaridades.
O certo é que o fato mesmo existe somente no momento em que acontece. Tudo o que vem depois são versões, umas mais fiéis aos acontecimentos, outras menos. Das versões levadas pelas partes a juízo, o juiz não pode nem deve se vincular a qualquer delas, cabendo-lhe examinar as provas que lhes dão suporte, tais como depoimentos de testemunhas, documentos, perícias, etc.
Ao fim do processo, depois de examinar todas as provas, o juiz obterá a sua própria versão dos fatos, muito provavelmente uma terceira versão, diferente daquelas que lhes foram apresentadas por cada uma das partes interessadas.
Entretanto, terá o juiz certeza de que a versão por ele construída é a mais aproximada dos fatos como efetivamente ocorreram? Evidentemente que não. O que ele tem é convicção, convencimento, confiança em sua própria capacidade e discernimento. Numa palavra, o juiz tem fé. Fé, no sentido de crença de que os fatos aconteceram da maneira que ele imagina.
Mas a missão do julgador não acaba aí. Definida essa versão dos fatos em favor da qual emite a sua profissão de fé, passa o juiz a buscar as normas jurídicas aplicáveis a ela.
Também aqui sua tarefa não é fácil. São inúmeras as fontes que o juiz precisará buscar para encontrar as normas adequadas ao caso que precisa ser decidido: Constituição, leis, decretos, etc. Isto é assim, não porque a quantidade de leis do nosso país seja muito grande - embora isso piore a situação - mas porque é uma característica comum dos sistemas jurídicos que a norma adequada para um caso concreto seja obtida a partir da combinação de princípios e regras que estão dispersos no chamado ordenamento jurídico. A realidade é muito dinâmica, de forma que é praticamente impossível o texto de uma lei prever todas as possibilidades de um fato.
Por exemplo, em seu artigo 121, o Código Penal Brasileiro define como crime "matar alguém". Em outro artigo, o mesmo Código Penal esclarece que matar em legitima defesa não é crime. Outro artigo dirá que também não será punido o doente mental que venha a matar se não tiver noção do que está fazendo. Para fixar a medida da pena, que poderá variar entre seis e vinte anos, a lei prevê que o juiz deverá levar em consideração uma série de fatores, tais como culpabilidade, antecedentes, conduta social do agente, e outros mais. Vê-se, portanto, que somente diante da descrição completa do fato é possível identificar a combinação de regras que servirá para julgá-lo, dizendo finalmente, neste exemplo, se o réu deve ser punido e em que medida.
Lançando mão de sua formação jurídica, o juiz manuseará esse emaranhado de regras e princípios para escolher as normas aplicáveis àquela versão dos fatos que ele adotou como verdadeira. Usará técnicas de interpretação, citará ensinamentos transmitidos por doutrinadores, consultará julgados de casos semelhantes e fará exercícios de lógica. Dependendo de sua formação filosófica, ponderará os efeitos sociais e econômicos da sua decisão e a confrontará com o próprio bom senso. Somente após todo esse processo, dirá, afinal, qual norma jurídica regula o fato em discussão.
Mas, terá ele certeza de que efetivamente escolheu a norma mais adequada ao fato? Por maior que seja o saber jurídico do julgador, a resposta é, inevitavelmente, não. Mais uma vez, o juiz terá convicção de seus argumentos, mas certeza é algo incompatível com essa atividade. E se não há certeza, o que prevalece é a fé.
Juntando-se, assim, os dois aspectos da sentença aqui abordados (os fatos e as normas que o regulam), conclui-se que, ao cumprir a sua missão de aplicar a norma jurídica ao caso concreto, o juiz, em verdade, aplica a norma que ele crê adequada aos fatos que crê tenham acontecido. Um ato de fé.
Não da fé em coisas sobrenaturais, mas da fé na razão humana, no conhecimento, no raciocínio. O mesmo tipo de fé que levou o ser humano a construir o primeiro avião e acreditar que ele voaria. Um dia voou mesmo. Hoje, milhares de pessoas embarcam diariamente nessas máquinas maravilhosas, certas de que voarão em segurança até o seu destino.
É empurrada por essa fé que a civilização avança e a humanidade encontra soluções para os obstáculos que encontra.
Voltando aos juízes e suas decisões, observa-se também que as relações sociais se pacificam na medida em que a maioria das pessoas compartilha dessa fé, acreditando que as sentenças judiciais são um instrumento eficaz de distribuição de justiça. Daí a necessidade de que, além de vasto conhecimento jurídico, os juízes tenham boa formação humanística, para que não apliquem cegamente a lei, mas deem a ela a finalidade social mais adequada.
E, antes de tudo, que os juízes tenham uma sólida base moral. Porque a sentença só é um ato de fé quando o juiz está imbuído do propósito de fazer Justiça. Quando um juiz profere uma sentença movido por qualquer outro interesse, próprio ou de terceiros, já não pratica mais um ato de fé, e sim um ato de má-fé, não merecendo receber da sociedade essa missão tão importante que é a de dizer qual o direito de cada um e julgar a conduta dos outros homens.