Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, pela sua Terceira Seção, absolveu um homem acusado de estuprar três adolescentes com 12 anos de idade. O motivo que decretou o édito absolutório residiu na constatação de terem as meninas mantido relações sexuais com outras pessoas, revelando, desta forma, certa experiência e maturidade sexual.
Muitas vozes se levantaram contrárias a tal decisão e até mesmo provocaram manifestação de repúdio, por entender que, doravante, o menor ou a menor de 14 anos, idade que abriga a figura do estupro de pessoa vulnerável, conforme preceito do artigo 217-A do Código Penal, fique totalmente desprotegido e abra um hiato de impunidade incorrigível.
Tanto é que o STJ, preocupado com a reação popular, exteriorizada por vários seguimentos de proteção à criança e adolescente, publicou em seu site nota explicativa no sentido de que não institucionalizou a prostituição infantil; não negou que prostitutas possam ser estupradas; não incentivou a pedofilia; não promoveu a impunidade e nem atentou contra a cidadania.
A mesma Corte, em razão de interposição de recurso especial, anulou a decisão e determinou a remessa dos autos para o Tribunal de Justiça de São Paulo para que fosse novamente julgada a ação penal em razão da apelação do Ministério Público, com a observação da impossibilidade de afastamento da presunção de violência em razão de eventual consentimento de menor de 14 anos para a prática sexual.
O Código Penal introduziu a figura do vulnerável como sendo a prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos ou contra pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. Na mesma esteira seguiu o Estatuto da Criança e Adolescente, conforme se verifica do seu artigo 244-A1.
Vulnerável, termo de origem latina, vulnerabilis, em sua origem vem a significar a lesão, corte ou ferida exposta, sem cicatrização, feridas sangrentas com sérios riscos de infecção2. Houaiss3, por sua vez, assim define: “que pode ser fisicamente ferido; sujeito a ser atacado, derrotado, prejudicado ou ofendido”. Demonstra sempre a incapacidade ou a fragilidade de alguém, motivada por circunstâncias especiais. A mitologia grega relata que Tétis, mãe de Aquiles, untou o corpo do filho com ambrosia e manteve-o sobre o fogo. Após, mergulhou-o no rio Estige com a intenção de fazê-lo invulnerável. Segurou-o, porém, por um calcanhar que não foi tocado pela água, e, dessa forma, ficou desprotegido. Foi morto por Páris, que o atingiu com uma fechada no calcanhar vulnerável.
Na realidade, a lei prega olhos cegos e ouvidos moucos quando se trata de circunstância de idade da vítima nos crimes contra a dignidade sexual. Estabelece a delimitação da faixa etária e quem sem encontrar em seu círculo recebe a tutela legal, independentemente de não ter uma vida sexual recomendada pela idade. O critério é o da idade e não da conduta reprovável do infante.
Os instrumentos legais para a proteção da criança e adolescente visam proporcionar um desenvolvimento regrado pelos melhores princípios de moralidade, justamente pela fragilidade e vulnerabilidade da idade. Se os pais não têm como ofertar a devida proteção aos filhos menores, o Estado assume o poder que lhe foi conferido pela lei e estabelece suas normas punitivas ao infrator. Se as barreiras da idade forem quebradas surge um vácuo permissivo e liberatório de qualquer conduta rotulada como crime sexual contra menor de 14 anos.
O Supremo Tribunal Federal, de forma reiterada, vem entendendo que o consentimento da ofendida para a conjunção carnal e mesmo sua experiência anterior, não elidem a presunção de inocência para a caracterização do crime de estupro4.
Apesar de que, em sentido contrário, ainda da mesma Corte Suprema, registra-se a decisão proferida pelo ministro Marco Aurélio5.
Cada caso deve ser analisado detalhadamente, cum grano salis, com as lentes da experiência e da vida. Muitas vezes a realidade da lei é severa demais e carrega uma carga exagerada de conteúdo condenatório. É a diferença entre a lei e a realidade. A lei não é um instrumento pronto para ser aplicado de forma imediata, como uma vestimenta prêt-à-porter. Exige um estudo aprofundado, uma adequação acertada, pois é do atrito das realidades que se encontra a justiça, assim como do atrito das pedras brota o fogo.
É certo que, no momento atual, em razão das radicais transformações dos costumes, é temeroso dizer que uma adolescente menor de 14 anos seja desconhecedora das práticas sexuais. Conhece sim e muitas vezes já vem praticando com frequência, até mesmo em se prostituindo com a conivência dos pais para ajudar no sustento da casa. Mas, o entrave reside justamente na faixa etária de proteção, que presume a violência quando se tratar de vulnerável. Jure et de jure e não juris tantum.
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1 Diz textualmente:”Submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do art. 2º desta Lei, à prostituição ou à exploração sexual”. A mesma lei esclarece que criança é a pessoa até 12 anos incompletos e o adolescente entre doze e dezoito anos.
2 De acordocom o Dicionário Morfológico da Língua Portuguesa, organizado pelos Professores Evaldo Hecker, Sebald Back e Egon Massing. Editora Unisinos, 1984.
3 HOUAISS, ANTONIO. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetivo Ltda, 2001, verbete vulnerável.
4 HC nº 94.818, Rel. Min. Ellen Gracie, julgado em 24/6/2008, Segunda Turma, DJE de 15.8.2008; HC nº 97.052, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 16/8/2011 Primeira Turma, DJE de 11/9/2011; HC 101.456, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 09/3/2010, Segunda Turma, DJE, de 30/4/2010.
5 HC nº 73.662, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 21/5/1966, Segunda Turma, DJE de 20/9/1996.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado e reitor da Unorp
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