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É inconstitucional a exigência de certidões negativas para o pagamento de precatórios

No final do ano passado foi editada a Lei nº 11.033/04 alterando a tributação do mercado financeiro e de capitais e instituindo o regime tributário para incentivo à modernização e à ampliação da Estrutura Portuária - Reporto. Tal lei, não despertaria grande interesse dos credores das Fazendas Públicas se não fosse o previsto em seu artigo 19: "o levantamento ou a autorização para depósito em conta bancária de valores decorrentes de precatório judicial somente poderá ocorrer mediante a apresentação ao juízo de certidão negativa de tributos federais, estaduais, municipais, bem como certidão de regularidade para com a Seguridade Social, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS e a dívida ativa da União, depois de ouvida a Fazenda Pública".

14/9/2005


É inconstitucional a exigência de certidões negativas para o pagamento de precatórios


Rogerio Molica*


No final do ano passado foi editada a Lei nº 11.033/04 alterando a tributação do mercado financeiro e de capitais e instituindo o regime tributário para incentivo à modernização e à ampliação da Estrutura Portuária - Reporto. Tal lei, não despertaria grande interesse dos credores das Fazendas Públicas se não fosse o previsto em seu artigo 19: "o levantamento ou a autorização para depósito em conta bancária de valores decorrentes de precatório judicial somente poderá ocorrer mediante a apresentação ao juízo de certidão negativa de tributos federais, estaduais, municipais, bem como certidão de regularidade para com a Seguridade Social, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS e a dívida ativa da União, depois de ouvida a Fazenda Pública".


A referida disposição revela mais uma vez o excessivo e desnecessário privilégio dos Entes Públicos. Tal como em outras normas recentes, esta também foi editada na equívoca lógica de que a Constituição Federal teria sido promulgada para proteger o Ente Público do cidadão e não o contrário, como se espera de um regime democrático.


Assim, por não conseguirem os Entes Públicos cobrar de forma eficaz os seus devedores por meio dos instrumentos processuais que lhes são assegurados (execução fiscal) e com todos os privilégios que a lei confere, criou-se agora um facilitador para a cobrança da dívida pública.


Aquele que pagou tributo indevidamente, que foi desapropriado, que perseguiu direito à indenização das Fazendas Públicas, após litigar muitos anos (subordinando-se à legislação processual repleta de privilégios à Fazenda); após obter provimento judicial definitivo e saber que o seu crédito vai ser liquidado em dez "suaves" prestações (Emenda Constitucional nº 30), para receber terá de pagar o que deve (ou o que se diz que se deve).


Ao se examinar o processo legislativo que deu origem à Lei nº 11.033/04 é possível constatar que a previsão contida no artigo 19 não constava da MP nº 206 que a originou. Tal artigo foi incluído por meio de emenda (nº 34) apresentada pelo deputado Paulo Bernardo, do PT do Paraná. A justificativa à emenda não deixa dúvida de que a intenção foi a de se fazer uma espécie anômala de compensação, pois segundo o seu autor "A emenda objetiva garantir o encontro de contas, minorando-se os custos de recuperação dos créditos fazendários.”


Parece louvável a preocupação com a cobrança dos bilhões de Reais que se encontram inscritos na dívida ativa e pendentes de pagamento, entretanto, a compensação proposta não parece ser a melhor forma, pois, como se sabe, muitos desses débitos estão quitados e são executados erroneamente por diferenças nas declarações ou erros no sistema de cruzamento de dados dos Entes Públicos. Logo, não caberia a simples compensação, como previsto no artigo 19 da Lei nº 11.033/04, justamente por falta de amparo legal e ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa.


Todos os requisitos para o recebimento de créditos por meio de ofício precatório estão previstos no artigo 100 da Constituição Federal. Tais requisitos podem ser assim resumidos: sentença transitada em julgado, requisição do Presidente do Tribunal competente até o dia 1º de Julho, pagamento atualizado até o final do exercício seguinte, em valores atualizados monetariamente, observada a ordem cronológica de apresentação. Assim, não há qualquer exigência quanto à apresentação de certidões de regularidade fiscal, não podendo a lei ordinária criar uma limitação não prevista no texto constitucional.


Essa norma do artigo 19 parece extrapolar ainda mais o razoável e o legítimo ao prever não apenas a apresentação da certidão negativa de tributos da Fazenda Pública pagadora do precatório, mas de todos os tributos, bem como do INSS e do FGTS. Ora, definitivamente não parece admissível que a União deixe de pagar um precatório pela existência de débito de tributo municipal. Nesse caso, também não se mostra constitucional ou legal a "compensação recíproca" entre Entes Públicos que parece ser o objetivo da norma.


Não se pode criar obstáculo ao exercício de direito fundamental como mecanismo coercitivo para pagamento de tributo. Nossos tribunais há muito já repelem a aplicação de meios coercitivos indiretos para a cobrança de débitos (Súmulas 70, 323 e 547 do STF).


A OAB ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3.453 em face dessa descabida exigência das certidões.A ADI foi distribuída à Ministra Ellen Gracie em 31/03. O procurador geral da República já apresentou parecer opinando pela inconstitucionalidade do referido dispositivo, sendo ainda aguardada a decisão sobre a liminar pleiteada pela OAB.


Não obstante a ADI, o fiscalismo que se instalou no país tem causado cada vez mais perplexidade. A obrigação prevista no artigo 19 se mostra praticamente de impossível cumprimento. Isto porque, caso o contribuinte consiga juntar todas as certidões, vai ser aberta vista para a Fazenda Pública muito tempo depois da juntada e os procuradores vão exigir a juntada de novas certidões atualizadas. Assim, teremos um ciclo sem fim do credor que busca receber o que lhe é devido e foi assegurado por sentença judicial, em total ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito.
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*Advogado do escritório Demarest e Almeida Advogados









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