Migalhas de Peso

Dos aspectos relevantes da embriaguez no contrato de seguro – visão complacente do judiciário ao arrepio da legislação em vigor

Só se faz Justiça com a aplicação irrestrita da legislação em vigor.

11/7/2012

Este artigo pode até soar, para alguns, como um desabafo de cunho político-social.

Para outros, ele pode ser tido como uma tentativa fugaz de se justificar o posicionamento das seguradoras, as quais têm a fama de prometerem tudo quando da realização do negócio e, posteriormente, criarem subterfúgios para declinar o pagamento da indenização.

Na verdade, aqui não se busca nem uma coisa nem outra.

O simples ato de validar, inicialmente, a recusa de um sinistro nos casos em que o condutor ingeriu bebida alcoólica não significa, em última análise, que os ora subscritores referendam toda e qualquer conduta das seguradoras.

Sabe-se que os segurados são consumidores de um produto – ou serviço, para parte da doutrina – e que podem se deparar, eventualmente, com o rigorismo exacerbado de alguma seguradora, o que se repudia ao extremo e enseja a aplicação da legislação consumerista.

Todavia, nos caso de embriaguez a situação é diversa e o comportamento adotado pelas seguradoras se revela irretocável, seja quem for o segurado, tenha ele elevado ou nenhum grau de instrução.

A combinação nefasta de álcool e direção é um problema recorrente que precisa ser solucionado, e a atuação das seguradoras, dos advogados e, acima de tudo, do judiciário, possui grande interferência na recomposição do triste cenário nacional.

Os alertas partem dos próprios órgãos governamentais, mas o resultado prático das campanhas preventivas pressupõe a consciência da população e das próprias autoridades, o que está longe de ser uma realidade.

Conquanto o aspecto financeiro do contrato de seguro esteja intimamente ligado ao interesse político-social, pois ao preservar o patrimônio particular do segurado a apólice também atua em prol da higidez econômica de todo o país, a discussão aqui proposta não guarda contornos revolucionários e/ou partidários.

Aliás, se ela despertar a atenção sobre a matéria em comento o objetivo já foi alcançado.

Seria inocência extrema acreditar que um simples artigo, ainda que publicado em conceituado veículo de comunicação, modificaria, a um só tempo, a equivocada maneira de agir dos cidadãos e do próprio poder público.

Este é apenas o "pontapé inicial", relevante e necessário.

O assunto é emblemático, de extrema importância e reclama a reorganização estrutural dos Estados, o que não se faz, infelizmente, em curto lapso temporal, tampouco com a irresignação de parcela ínfima da sociedade.

Nem mesmo a significativa alteração do Código de Trânsito Brasileiro – ainda que morosa – foi suficiente para modificar o panorama até então existente sobre o elevado índice de acidentes envolvendo condutores alcoolizados.

As estatísticas mais recentes são alarmantes, para não dizer assustadoras.

Segundo a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e o Instituto Médico Legal de São Paulo (IML-SP)1, aproximadamente 44% das vítimas fatais de acidente de trânsito ingeriram algum tipo de bebida alcoólica, independentemente da quantidade.

Embora a Lei Seca já esteja vigorando há três anos, os números de acidentes envolvendo embriaguez no trânsito não diminuíram. Entre 2010 e 2011, o aumento foi de 128,67%, segundo dados do Comando de Policiamento Rodoviário de São Paulo. Destas ocorrências, 789 envolveram vítimas, sendo 44 delas fatais2.

Com todo respeito, não se pode admitir, diante desse cenário, uma política de trânsito instável pelo Poder Executivo, muito menos a complacência do Judiciário quando da aplicação da tutela.

Para que se possa atender aos anseios do legislador, seja no âmbito penal ou civil – e aí se inclui os desdobramentos decorrentes do contrato de seguro - é necessário avaliar a ingestão de bebida por outro prisma.

Trocando em miúdos, não se pode beneficiar o interesse particular em detrimento do interesse público, o que redunda na conclusão de que o infrator não receberá indenização securitária se, antes disso, infringiu a lei ao colocar em risco a incolumidade física de seus pares.

É inaceitável que o Judiciário, verdadeiro cânone do Estado Democrático de Direito, permita a impunidade e fomente, ainda que indiretamente, a direção de veículo após a ingestão de bebida, na contramão de toda a evolução legislativa conseguida num passado recente.

A harmonia dos poderes não consiste, tão somente, na divisão interna de suas atividades, mas também na manutenção da ordem pública, o que exige o cumprimento prévio da legislação ou, de outro lado, a exemplar aplicação da sanção.

No entanto, no tema que ora se propõe o Judiciário, salvo raras exceções, vem agindo com extrema condescendência.

Ora, se a Justiça é a toda evidência o órgão governamental hábil a garantir o rigorismo legal, porque suas decisões não se coadunam com a melhor hermenêutica aplicável a espécie?

Sem sombra de dúvidas, alguma coisa está errada e isso exige a necessária solução, ainda que o inconformismo parta, num primeiro momento, de um pequeno grupo de pessoas.

Será que a ingestão de bebida, apta a propiciar a aplicação de multa de trânsito e em alguns casos a prisão do infrator, não se prestaria a ancorar a recusa do pagamento da indenização securitária?

Definitivamente, compelir a Seguradora ao cumprimento da avença, mesmo existindo cláusula limitativa de direito que exclui o dever reparatório, é temerário não só porque deixa de coibir a prática delitiva ou administrativa, mas também porque interfere na correspondência entre o risco inicialmente assumido e aquele efetivamente suportado.

Inúmeros são os fundamentos utilizados para brindar o Segurado com o indevido pagamento da indenização, mas nenhum deles se sustenta diante do caso concreto.

De fato se vislumbrou, por muito tempo, uma grande impotência do Judiciário em reprimir os resultados originados pela reprovável combinação de álcool e direção, mormente porque a lei permitia o abuso ao exigir prova técnica sobre a ingestão da bebida e seu teor, na maioria das vezes fulminada pela incúria consciente dos motoristas, que se recusavam a assoprar o bafômetro ou colher amostra de sangue.

Atualmente a situação é distinta, pois além de ser prescindível a apuração de nível de álcool no sangue, as Cortes Superiores já elevaram o delito ao patamar de "crime de perigo abstrato", o que possibilita a atuação do Judiciário para punir, inclusive, o dano meramente potencial, tal como se verá mais adiante.

Apesar de tardia, a nova redação do artigo 276 do Código de Trânsito Brasileiro foi muito feliz, pois o consumo de álcool, mesmo em pequena quantidade, já é suficiente para interferir nos reflexos dos motoristas e aumentar a probabilidade de ocorrência de acidentes.

Note-se que a dificuldade que se verificava no passado, consistente na fixação do grau de embriaguez, ficou ultrapassada na esfera civil e/ou administrativa, haja vista que o teor alcoólico somente interfere no tipo penal.

Com extrema propriedade, o legislador também incluiu, no artigo 277 do Código de Trânsito Brasileiro, os parágrafos 2º e 3º que alargam, e simplificam, as possibilidades de provas hábeis a demonstrar que o motorista, envolvido no acidente, havia consumido bebida alcoólica, seja qual for a quantidade.

De igual modo, eles também preveem consequências para as hipóteses em que o condutor, premeditadamente, deixa de contribuir para a correta apuração dos fatos, prevalecendo, em tais casos, a presunção de que houve a ingestão de bebida.

Apesar dos inúmeros avanços, ainda são escassas as decisões desfavoráveis ao Segurado, principalmente porque se passou a utilizar, em prol do consumidor, a incorreta interpretação do artigo 768 do Código Civil.

Partindo do silogismo de que tal dispositivo prevê um agravamento de risco direto do Segurado, a perda do direito à indenização se tornou inaplicável nos casos em que o veículo é conduzido por terceiro, que não aquele contratante do seguro.

Sem razão, pois para efeito de seguro é indiferente se o Segurado participou diretamente do sinistro ou, ainda, se ele tem ou não controle sobre os atos da pessoa para quem empresta seu carro.

Daí porque as Apólices especificam, de forma clara e objetiva, que não haverá cobertura para toda situação que envolva o consumo de álcool pelo motorista, mesmo que ele não seja o Segurado.

Demais disso, o Segurado, em razão do "fato da coisa", é responsável por todo e qualquer dano causado pelo veículo, cujo fundamento reside na guarda, razão pela qual se firmou o entendimento doutrinário/jurisprudencial de que o proprietário sempre responde pelos atos culposos do terceiro a quem entregou o bem.

Ou seja, a conduta do condutor se estende ao Segurado e, havendo agravamento de risco por parte daquele, tais desdobramentos também devem recair sobre este.

Ainda que assim não fosse, a recusa da Seguradora não se baseia, necessariamente, no agravamento de risco previsto no artigo 768 do Código Civil. Ela está ancorada, na maioria dos casos, no alcance da cobertura segurada previamente contratada (artigo 757 do mesmo diploma), mais precisamente na cláusula limitativa de direito que inviabiliza a indenização.

Embora não se desconheça de julgados que reconhecem a exclusão apenas quando a embriaguez é do segurado3, tal dicotomia se torna inócua quando há cláusula específica no sentido de que inexistirá indenização se o veículo estiver sendo dirigido por motorista alcoolizado4.

Por fim, também não vinga o raciocínio de que a Seguradora deve demonstrar o nexo de causalidade entre o estado etílico do motorista e o sinistro, como sugerido em alguns julgados5, até porque este requisito é meramente presumido e, como tal, compete ao condutor ou ao Segurado elidi-lo.

Tanto o STJ6 quanto o STF7 reconheceram que o delito de embriaguez é um "de perigo abstrato", coibindo que motoristas possam conduzir veículos automotores expondo a “dano potencial” a incolumidade de outrem.

Em outras palavras, o delito se consuma no momento em que o condutor, após ingerir bebida alcoólica, assume a direção do automóvel, cause ou não dano a terceiros, tenha ou não relação entre o resultado e a ação comissiva.

Sendo certo que o objeto lícito é um dos pressupostos da relação jurídica e que o contrato de seguro garante o interesse do segurado – e não o bem material, propriamente dito – forçoso reconhecer que a indenização não será devida se originada por ato contrário a lei.

Neste caso, o contrato de seguro não opera seus efeitos enquanto persistir a ilicitude, motivo pela qual o pagamento não se consumará se ocorrer qualquer sinistro envolvendo o veículo segurado.

Vê-se, por todo o exposto, que apesar do posicionamento das Cortes Superiores, suficientemente hábil a lastrear a improcedência das demandas ajuizadas pelos Segurados, há inegável resistência do Judiciário em observar os contornos da Apólice de Seguro, como se isso originasse o enriquecimento indevido por parte das Seguradoras.

Não se perca de vista que o contrato de seguro tem caráter aleatório e que a limitação dos riscos é corolário lógico deste pacto, principalmente quando se veda a indenização oriunda de ato repudiado pelo próprio legislador.

Caminhar em sentido contrário seria compelir a Seguradora, pela via oblíqua, a responder por obrigação superior e diversa da inicialmente pactuada, que serviu de base para os cálculos atuariais.

É lamentável que no Brasil ainda se faça vistas grossas ao tema com base em teses infundadas e em dissonância com o entendimento jurisprudencial, premiando, com o recebimento de indenização securitária, aquele que cometeu um ato ilícito de grande repercussão, ao menos na letra fria da lei.

O Poder Judiciário também possui função social e deveria agir com severidade nestes casos, inclusive para evitar o ajuizamento de um sem número de ações judiciais que emperram a máquina Estatal.

Bem se sabe que a busca da tutela é direito constitucionalmente previsto e importante mecanismo de consolidação democrática, entretanto, há que se impor os devidos limites, o que exige, desde já, a mudança brusca de consciência visando o benefício da sociedade como um todo.

Cabe como uma luva, aqui, o slogan da campanha publicitária "não foi acidente!", aplicável aos segurados e aos demais motoristas em geral, que pode ser resumido em um único questionamento: "você vai tomar consciência ou mais um drink"?

Mais do que uma indagação, trata-se de verdadeiro alerta, ressaltando-se, em complemento, que só se faz Justiça com a aplicação irrestrita da legislação em vigor, daí porque se espera, num futuro não tão longínquo, que os Juízes apliquem a tutela com severidade, possibilitando que o caráter punitivo - que se estende à perda da indenização securitária - seja verdadeira fonte de desestímulo à combinação de álcool e direção.

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1Consulta 2/7/2012.

2Consulta 2/7/2012.

3(STJ, AgRg EDcl no REsp 995.861, Des. Rel. Fernando Gonçalves, j. 18/8/2009)

4(TJSP, AC 992.09.052166-7, Des. Rel. Kioitisi Chicuta, j. 25/2/2010)

5(STJ, AgRg no REsp 959.472, Rel. Min. Massami Uyeda, j. 18/12/2007)

6(STJ, HC 161.393, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 19/4/2012)

7(STF, HC 109.269, Min. Rel. Ricardo Lewandowski, j. 27/9/2011)

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*Danilo Leme Crespo e Ana Rita R. Petraroli são advogados do escritório Petraroli Advogados Associados.


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