Migalhas de Peso

O STF e o poder de investigação do Ministério Público

Não se tenciona retirar a competência das policias federal e civis do Estado, mas a ela acrescentar uma outra cumulativa a ser exercida pelo MP.

2/7/2012

Na sessão do dia 21 de junho, deste ano de 2012, o STF começou a julgar o Recurso Extraordinário 593727, no qual foi reconhecida a repercussão geral. No recurso, o cerne da questão gira em torno de se saber se o Ministério Público, representado por seus procuradores e promotores, poderia realizar investigações penais substituindo ou complementando o trabalho da polícia.

No caso, o ex-prefeito de Ipanema (cidade do interior de Minas Gerais), Jairo de Souza Coelho, discute a decisão do Tribunal de Justiça que recebeu denúncia imputando a ele crime de responsabilidade, na qual o Ministério Público mineiro subsidiou todo o procedimento administrativo investigatório, inexistindo participação da polícia. Os argumentos do acusado foram acolhidos pelo relator, Ministro Cezar Peluso, que declarou: "Do ponto de vista específico do ordenamento institucional, não subsiste, a meu aviso, nenhuma dúvida de que não compete ao Ministério Público exercer atividades de polícia judiciária, as quais, tendentes à apuração das infrações penais, seja lá o nome que se dê aos procedimentos ou à capa dos autos, foram, com declarada exclusividade, acometidas às polícias federal e civis pela Constituição Federal, segundo cláusulas pontuais do artigo 144".

O ministro Ricardo Lewandowski seguiu o voto de Peluso e o julgamento foi interrompido, devendo ser retomado brevemente, oportunidade em que devem ser proferidos e conhecidos os votos dos outros ministros.

De qualquer modo, é sabido que os demais ministros tendem a discordar do voto do relator, já que apoiam a tese de que pode e deve o MP investigar, muito embora concordem que se faz necessária uma regulamentação específica para essas atuações como, por exemplo, obediência às mesmas regras do inquérito policial, respeito a determinados prazos, liberação de provas permitidas para os investigados tomarem ciência e a supervisão das apurações por um juiz.

Inicialmente, há que se frisar que a Constituição Federal, com o espírito voltado para o alargamento das franquias democráticas, estabeleceu as funções do Ministério Público em seu artigo 129 e incisos, norma esta editada pelo Poder Constituinte Originário e em plena vigência. Usa a seguinte expressão no caput: "São funções institucionais do Ministério Público". Trata-se do cumprimento de um dever distribuído a uma Instituição, uma obrigatoriedade de ação, com a consequente autoridade para realizar todos os atos necessários para desempenhar a contento a tarefa determinada. Quando o Poder Público, para a realização de sua missão, outorga poderes a uma instituição, transformando-a em longa manus, confere a ela todos os poderes inerentes para a realização das atribuições, desde o ato de iniciativa até o ato final visando a persecução dos objetivos.

Dentre as inúmeras funções atribuídas ao parquet, destaca-se, por estar intrinsicamente ligado ao cerne da discussão, o inciso IX do referido artigo: exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas. As exceções fora propositadamente especificadas. Resta claro, portanto, que preferiu nosso legislador pátrio deixar em aberto esse último inciso, para que lei posterior (federal) regulasse a matéria e elencasse as demais funções que não poderiam ser exaustivamente previstas neste inciso.

Desta forma, verifica-se a existência de uma norma constitucional de eficácia limitada: este inciso IX somente tem aplicação se for complementado por uma lei, que passa a integrar e completar o texto constitucional, trazendo todos os elementos para que, a partir de então, se aperfeiçoe a norma, vez que terá todos seus elementos para plena eficácia.

A complementação, por seu turno, se deu com duas leis: 8.625/93 (lei Orgânica do Ministério Público – LOMP), aplicável a todos os MPs (federal e estaduais) e a LC 75/93 (Ministério Público da União). Insta salientar, ainda, que existem Leis Complementares de cada Estado, que regulam, por sua vez, a organização e as funções específicas do MP estadual (no caso de São Paulo, é a LC 734/93).

Com efeito, constata-se que foi atendido o comando constitucional de complementação da norma, tendo em vista que as duas leis supracitadas enumeraram as demais funções do parquet e, dentre elas, existe a expressa previsão do membro do Ministério Público instaurar procedimento administrativo para apurar a prática de crimes.

De qualquer forma, pode se dizer sem ambages, que outro não poderia ser o entendimento. Como absoluto titular da ação penal pública, o MP pode e deve investigar o fato em tese criminoso, para que sejam satisfeitos os dois requisitos do oferecimento da denúncia: prova da existência do crime (materialidade delitiva) e indícios suficientes de autoria. Ora, ao autor da ação deve ser conferida a possibilidade de colher todos os elementos que possam embasar sua exordial. E, ninguém melhor para elaborá-la estrategicamente do que o órgão responsável pela coleta investigativa. Fala-se uma só linguagem, sem necessidade de idas e vindas do procedimento policial para complementação probatória. O núcleo da investigação já está definido e só resta sua configuração.

Frise-se que não se pretende, de forma alguma, substituir o trabalho das polícias. Muito pelo contrário, o que se faz é somar esforços para melhor apurar os crimes que crescem numa progressão assustadora, principalmente aqueles mais visados pelas organizações criminosas voltadas para a prática de crimes de sonegação fiscal, sistema financeiro, ordem econômica, previdência social, lavagem de dinheiro, corrupção, dentre outros. Não se busca a prevalência ou exclusividade de uma grei. É sabido que a polícia, em que pese tenha profissionais do mais elevado gabarito, em geral não possui a estrutura necessária para investigar crimes praticados por grandes organizações (seja por número reduzido de pessoal, seja pela precariedade das estruturas, especialmente no interior dos Estados). Assim, muitas vezes se faz necessária uma complementação da atuação policial, tanto que o Código de Processo Penal permite que o MP requisite diligências indispensáveis ao oferecimento da denúncia (atente-se para o verbo requisitar, ou seja, é uma ordem, não podendo ser rejeitada), nos termos do artigo 16, CPP.

Por outro lado, o Ministério Público é também destinatário da notitia criminis e, qualquer pessoa do povo, na mais ampla legitimidade, quando se tratar de ação penal pública, poderá provocar a iniciativa do parquet, fornecendo a ele por escrito as informações sobre o fato e autoria, segundo a regra do artigo 27 do Código de Processo Penal.

Tal fato, por si só, faz ver que a intenção do legislador foi a de conferir ao cidadão a oportunidade de levar determinado fato delituoso ao órgão ministerial, que irá de imediato intentar a competente ação penal, desde que receba todas as informações necessárias para tanto. Os informes do particular substituem o procedimento investigativo policial. Se, no entanto, não encontrar presentes os requisitos da autoria e materialidade, o MP poderá realizar investigação para tanto ou ainda requisitar a instauração do inquérito policial, nos termos do art. 5º, II do estatuto processual.

Ainda na mesma linha de raciocínio, a delatio criminis do particular recebe o nome de peças de informação e se o MP entender que não há elementos de razoabilidade para deduzir a pretensão penal proporá o arquivamento de referidas peças. Já no mecanismo do art. 28 do estatuto processual, se o juiz discordar do pedido, irá remetê-lo ao Procurador-Geral de Justiça, que irá oferecer a denúncia, designará outro representante para fazê-la ou insistirá no pedido de arquivamento. Todo este procedimento tem como base as peças de informação. E, se for o caso de denúncia, o promotor designado, com base nas mesmas peças, ofertará o libelo acusatório, sem a necessidade do inquérito policial.

O estatuto processual apresenta a mesma opção a qualquer pessoa do povo para que, de posse das informações necessárias, possa apresentá-las verbalmente ou por escrito à autoridade policial que, verificada a procedência, instaurará inquérito policial. Se assim agiu o legislador é de se interpretar que o cidadão pode ter como destinatários o responsável pela polícia judiciária ou do representante do parquet. Não se pode olvidar que o Código de Processo Penal data de 1941, período em que a criminalidade era proveniente da própria simplicidade do povo brasileiro e o legislador não inseriu detalhes persecutórios detalhados, pois não se faziam necessários.

O dilema ora levantado e que bate às portas da mais alta Corte deve-se a um hábito inveterado instalado no processo penal que, em qualquer caso, deve ser instaurado inquérito policial nos crimes de alçada pública. Assim é que, inevitavelmente, a peça investigativa policial serve de suporte à denúncia. Se o MP, excepcionalmente, assume as rédeas do feito administrativo inquisitivo, tal fato é considerado contrário aos ditames consuetudinários, mas não em razão de vedação legal. Ora, se a lei, taxativamente, conferiu legitimidade ao órgão acusatório estatal não pode a própria lei erguer barricadas proibitivas. Não se deve confundir o todo, que é a intentio legis que move o pensamento do legislador, com a parte, que é a bifurcação da legitimidade para exercer uma mesma atividade. A melhor interpretação hermenêutica, segundo afirma Maximiliano, "não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio"1.

Também se ressalta que o artigo 144, da CF/88, dispõe única e tão somente sobre a competência da polícia federal, vale dizer, esclarece quais hipóteses reclamam a atuação desta polícia, quais da estadual. Não há qualquer relação com o Ministério Público, que é tratado no artigo 129, da CF/88. Tanto é que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que leva o 37-A. de 2011, pretende acrescentar o § 10 ao art. 144 da CF, para que fique expresso que "a apuração das infrações penais de que tratam os §§ 1º e 4º deste artigo, incumbe privativamente às polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal, respectivamente".

Se não tivesse qualquer outra interpretação em contrário, seria dispensada a alteração pretendida.

Não se tenciona retirar a competência das policias federal e civis do Estado, mas a ela acrescentar outra cumulativa a ser exercida pelo Ministério Público, não em todos os tipos de delitos, mas com relação àqueles que exigem uma investigação mais detalhada, já elencados acima, sem alardeamento, realizada intra muros, mas com toda a comunicação aos interessados, em obediência às garantias constitucionais.

Conclui-se, assim, que data maxima venia, ao MP deve ser concedida a possibilidade de também investigar o fato criminoso. Seja porque é o titular da ação, seja porque existem leis federais e complementares que autorizam, atendendo ao comando constitucional, expressamente o MP instaurar procedimentos administrativos. Entender de maneira diversa é se distanciar dos ditames de justiça, frustrando-se a missão constitucionalmente atribuída ao Ministério Público, como salientado pelo Procurador Geral da República, naqueles autos inicialmente citados: "Excluir a possibilidade de investigar é amputar o Ministério Público, retirando-se atribuição imprescindível ao cumprimento da sua missão constitucional".

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1MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 105.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado e reitor da Unorp






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