Migalhas de Peso

O suicídio, a embriaguez e a exclusão do direito à cobertura do seguro

Nem a premeditação e nem o tempo mínimo de vigência do contrato deveriam ser os fatores determinantes para a fixação da responsabilidade da seguradora em relação ao pagamento ou não da indenização.

18/6/2012

Recentemente o Superior Tribunal de Justiça divulgou em seu site na internet uma matéria intitulada “Suicídio e embriaguez não geram exclusão automática do direito à cobertura do seguro”1, matéria esta que foi veiculada em diversos informativos jurídicos.

Para aqueles que trabalham com seguros de vida é certo que a notícia do site do STJ não foi nenhuma novidade, todavia o tema é muito interessante tendo em vista especialmente as mudanças que se tem verificado no país nos últimos anos.

Antes de adentrarmos especificamente no tema do presente artigo, se faz necessário salientar que aqui não se pretende fazer nenhum juízo de valor, nem mesmo consignar que as decisões do STF, STJ ou outros Tribunais pátrios estão incorretas, pretende-se aqui tecer apenas breves comentários que levem o leitor a refletir sobre o tema e daí tirar suas próprias conclusões.

O contrato de seguro é o contrato pelo qual o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo à pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados (CC, art. 757), desta forma, verifica-se que o contrato de seguro abrange três elementos essenciais: o risco, a mutualidade e a boa-fé. Na sociedade moderna o contrato de seguro tem papel fundamental uma vez que por servir como “garante” dos riscos proporciona segurança além de indiretamente contribuir para a evolução e progresso do contratante haja vista que este não mais teria aquele temor que eventualmente poderia o impedir de prosseguir, nos mais diversos aspectos da vida.

Por óbvio que quem contrata um seguro, seja para proteger a sua vida ou para proteger um bem, não quer efetivamente morrer ou quer que seu bem seja destruído, furtado, danificado etc., pelo contrário, o agente ao contratar tais espécies de seguro quer, em regra, viver, quer ter seu bem intacto e no caso de alguma fatalidade ou eventualidade quer receber algum valor para reaver o bem ou mesmo para garantir alguma condição financeira aos familiares sobreviventes, no caso de morte.

No tocante ao suicídio embora o artigo 798 do Código Civil mencione que “o beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso”, é certo que a jurisprudência majoritária se posiciona no sentido de que independentemente do tempo decorrido entre a estipulação do contrato e a ocorrência do evento suicídio, o que determinará a responsabilidade da seguradora em indenizar ou não será o fato do suicídio ter sido ou não premeditado, sendo que competirá a esta o ônus de provar tal situação.

Entendemos que embora a intenção do legislador tenha sido a de evitar fraudes, o artigo supramencionado não conseguiu atender satisfatoriamente sua finalidade haja vista que simplesmente determinou uma “carência” para o segurado se suicidar2. A questão que surge ou o exemplo que se dá é o seguinte: e a pessoa que mantém desejos ou ideias suicidas pela vida inteira em sua mente sem divulgá-los ou expressá-los claramente, sem tratar dessa tendência e vem a cometer suicídio três anos após a assinatura do contrato? Nesse caso a premeditação ocorreu durante anos até a consumação do ato, entretanto a seguradora terá que indenizar uma vez que ultrapassado o prazo de “carência”. Não obstante o disposto no artigo 798 e a própria intenção do legislador ao criar tal artigo, no nosso entendimento, face à situação hipotética apresentada, o dispositivo não atende sua finalidade tendo em vista que a má-fé do contratante está claramente configurada.

Os postulantes talvez se perguntem: “ora, se o segurado nunca manifestou seus desejos suicidas, nunca haverá como provar essa tendência!”, o que é uma verdade, a situação apresentada foi apenas para demonstrar a fragilidade do artigo e de uma certa forma a do entendimento majoritário que paira nossos tribunais já que nem a premeditação e nem o tempo mínimo de vigência do contrato deveriam ser os fatores determinantes para a fixação da responsabilidade da seguradora em relação ao pagamento ou não da indenização. A “carência” é um fator por demais simplista para determinar uma obrigação tão importante e a premeditação, por sua vez, é um fator extremamente subjetivo, dificílimo de ser comprovado o que acaba contribuindo indiretamente para ocorrência de fraudes.

Ainda que o agente sofra de depressão ou de alguma patologia que diminua sua capacidade mental ou mesmo o seu ânimo de viver e nessa situação venha a tirar sua própria vida antes do decurso do prazo do artigo 798, a jurisprudência considera que o suicídio não foi premeditado. Esse entendimento é diametralmente oposto a algumas legislações alienígenas, tais como a alemã que exclui a responsabilidade da seguradora nos casos de suicídio cometido “em estado de desarranjo mental patológico” nos três primeiros anos da contratação do seguro3.

Conforme asseverado no início do presente artigo, não se pretende aqui dizer quem está certo ou errado, mas apenas para demonstrarmos a importância do tema na atualidade para as seguradoras e para a população em geral, citamos a seguir alguns dados recentes sobre suicídio no Brasil.

Em que pese o Brasil não tenha uma cultura suicida tais como alguns países da Europa, infelizmente tal situação tem mudado. Atualmente, no país, já se considera o suicídio como um problema de saúde pública tamanha sua agravação.

Dados da Organização Mundial de Saúde, divulgados em 2010, evidenciam que oficialmente no Brasil 25 pessoas se matam por dia, o que representa aproximadamente 9.125 mortes por ano e o que coloca o país no 11º lugar do ranking mundial de suicídios. Os pesquisadores do tema admitem inclusive que esse número pode ser ainda maior em razão de tal estimativa ser feita com base na certidão de óbito que por vezes pode conter outra caracterização4. Em dez anos a taxa de suicídio no Brasil cresceu 17%5 e a tendência é a de continuar a aumentar. No Brasil, o suicídio afeta mais homens e idosos, no entanto a prática vem crescendo entre os jovens6.

Em relação à embriaguez, a situação não é diferente. Embora nos últimos anos tenha-se tentado endurecer as penas no que tange à conduta de dirigir embriagado, especialmente nos aspectos criminal e administrativo, a jurisprudência cível majoritária relacionada à responsabilidade da seguradora de indenizar ou não têm se posicionado em sentido oposto.

Embora o artigo 762 do Código Civil mencione que “nulo será o contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado, do beneficiário, ou do representante de um ou de outro”, podendo este dolo ser direto ou eventual (quando o agente assume o risco de produzir o resultado), a jurisprudência, assim como no caso de suicídio, vem dificultando a vida das seguradoras quando se trata da prova do fato, sendo que somente a comprovação do estado de embriaguez não é suficiente para excluir a responsabilidade da seguradora.

Há de se mencionar que a sociedade como um todo tem clamado por uma legislação penal mais dura e uma penalização mais efetiva dos agentes que cometem crimes no trânsito sobre a influência de álcool ou outra substância de efeitos análogos. A caracterização de tais delitos tem mudado nos últimos anos, o que antes era necessariamente conduta culposa (decorrente de negligência, imprudência ou imperícia) hoje em dia já é considerada como dolo eventual. Não obstante a separação das esferas, esse enrijecimento da punição do agente deveria ser estendido inclusive aos aspectos civis uma vez que o sujeito que dirige embriagado assume o risco de produzir diversos resultados e talvez se tivesse a consciência de que ainda que segurado, ocorrendo sua morte nessas circunstâncias a família do mesmo ficaria desamparada haja vista que não receberiam uma indenização, quem sabe assim não se evitariam alguns acidentes haja vista que ele iria pensar duas vezes antes de dirigir embriagado.

Pelo que fora exposto, podemos concluir que mais do que uma questão econômica, o suicídio já é uma questão de saúde pública que deve ser observada com atenção pelas autoridades seja na edição de medidas que evitem a difusão dessa prática, bem como com a criação de meios efetivos de prevenção e tratamento dos que sofrem dessa tendência. Da mesma forma, a simples imposição do Judiciário de determinar indistintamente o pagamento da indenização pela seguradora nos casos de suicídio considerando tão somente fatores subjetivos e temporais, não resolve o problema, sendo certo que cada caso, seja de suicídio ou embriaguez, deve ser analisado particularmente recebendo assim a medida de justiça que lhe for compatível.

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1 Matéria publicada em 18/03/2012 em: https://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=105077&tmp.area_anterior=44&tmp.argumento_pesquisa=suic%EDdio%20e%20embriaguez

2 Sergio Cavalieri Filho, Programa de Responsabilidade Civil, 6ª ed., Malheiros editores, 2004, páginas 464 e 465.

3 https://www.endividado.com.br/materias_det.php?id=26158

4 Dados disponíveis em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/822652-indice-de-suicidios-no-brasil-e-problema-de-saude-publica-diz-especialista.shtml

5 Dados disponíveis em: https://www.estadao.com.br/noticias/geral,taxa-de-suicidio-no-brasil-sobe-17-em-10-anos-puxada-por-indigenas,684055,0.htm

6 Dados disponíveis em: https://noticias.r7.com/saude/noticias/suicidio-no-brasil-afeta-mais-homens-e-idosos-mas-cresce-entre-jovens-aprenda-a-identificar-os-sinais-20111010.html

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* Aline Albuquerque Ferreira é advogada do escritório Rayes Advogados Associados

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