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O formalismo processual e o cristianismo

Antes que me acusem de confundir direito e religião (seu firme defensor do Estado laico), permito-me excepcionalmente o perigoso cruzamento apenas por conta de enxergar no direito positivo a influência inevitável dos conceitos morais, e, na moral, por sua vez, a interferência filosófica do bem e do mal, alimentados quase sempre pelas crenças espirituais.

30/8/2005


O formalismo processual e o cristianismo


Mário Gonçalves Júnior*


"Amar o próximo como a si" é o artigo 1o. da Constituição do maior legislador moral da história. Impossível não vislumbrar algo mais do que bondade no conselho nazareno. Há nele, também, muito de eqüidade.


Antes que me acusem de confundir direito e religião (seu firme defensor do Estado laico), permito-me excepcionalmente o perigoso cruzamento apenas por conta de enxergar no direito positivo a influência inevitável dos conceitos morais, e, na moral, por sua vez, a interferência filosófica do bem e do mal, alimentados quase sempre pelas crenças espirituais.


Faço-o, todavia, não sem uma certa licença poética, ciente das complicações de estabelecer limites entre o que é certo e errado partindo de dogmas, e não ignorando as distorções que o fanatismo causou e ainda causa às sociedades onde supera e subjuga o próprio Direito.


Mas esta máxima de Jesus é de uma universalidade que transcende o campo das preferências para se lançar ao nível de princípio, até mesmo jurídico, eis que dele depende nada menos do que a convivência.


Como dizia, há mais que bondade nesta máxima cristã. É isonômica. Se fosse admissível julgar de maneira a distribuir o que nos infelicitaria, como resolveríamos o seguinte paradoxo: se considero ruim determinada situação, como considerar-me capaz do direito de submetê-la ao meu semelhante? Seria arbítrio na sua versão mais crua, a desigualdade indisfarçável até para quem lhe desse causa.


Por este ângulo, o formalismo na interpretação e aplicação das regras do processo judicial não pode deixar de incomodar.Extinguir processos só pela falta de determinada expressão em arrazoados, ou pelo número do dispositivo legal digitado equivocadamente em recurso, ou, ainda, porque o gosto pessoal do postulante preferiu um verbo a outro na redação do pedido (às vezes sinônimo!), não poderá ser considerado normal.

Haverá de chegar o dia no qual quem julga pressentirá, sempre, o impacto da intolerância formal sobre o jurisdicionado, mesmo sobre os que tenham cometido a humana característica de serem únicos ou diferentes entre milhares que redigem petições.


Enquanto não se chega a esse grau de maturidade, mínimo suficiente para compreender que o Direito Material não pode ser seqüestrado pelo Direito Processual, um exercício mental precedente ao menor ímpeto formalista é de todo aconselhável aos que julgam: perguntar-se se gostariam de assistir um filho ser condenado irremediavelmente por uma questão meramente burocrática (e não interessa à própria consciência se jamais julgaríamos um filho por impedimento legal decorrente do parentesco!).


Afinal, se não alcançamos ainda o amor incondicional do Cristo, a ponto de considerarmos os semelhantes iguais ao menos em dignidade (reconhecida incontinenti, e às vezes cegamente, aos nossos próprios filhos), esta pode ser uma boa técnica para medir, antes de infligir, as conseqüências do formalismo sem sentido. E, claro, de ser enfim apresentado ao princípio da isonomia.
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*Advogado do escritório Demarest e Almeida Advogados

 

 

 

 

 

 

 

 

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