Há leis que caem na graça popular e transitam sem qualquer incidente com relação a sua execução e a restrição que traz nem sempre é vista como violação da liberdade. Pelo contrário. Trata-se de uma ferramenta eficiente e garantidora da paz social. A lei antifumo "pegou" e não encontra qualquer obstáculo, quer seja por parte dos cidadãos, quer seja por parte do Estado, por ser conveniente, oportuna e necessária. A lei tem um papel regulador no fenômeno social justamente para buscar uma concepção de sociedade justa.
A recente decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em votação apertada (5 votos a 4) definiu que ninguém será levado à prisão por dirigir embriagado, a não ser que haja demonstrativo probatório pelo bafômetro ou exame de sangue, ficando sem qualquer valia o exame clínico de constatação e a prova testemunhal. Isto porque a lei exige, para a configuração do ilícito, um grau mínimo de seis decigramas de álcool por litro de sangue. Tal valor não pode ser apurado pela testemunha e nem pelo exame clínico.
A conhecida lei seca veio para coibir o excesso de acidentes e mortes provocados por pessoas embriagadas ao volante. Contou também com o apoio popular que, maciçamente, difundiu aos quatro ventos suas virtudes elegendo-a como dispositivo regulador e pacificador do trânsito. Veio com um arsenal de condutas criminosas tipificadas e providências administrativas, todas de caráter punitivo.
Levando-se em consideração que o Brasil é um dos países que apresenta um índice elevadíssimo de morte no trânsito, parte provocada por ingestão de bebida alcoólica, o código que regulamenta a matéria, por si só, que datava de setembro de 1997, não atingiu os objetivos propostos e a ideologia do laissez-faire provocou uma acomodação social, com inúmeras famílias chorando seus mortos e pleiteando uma reformulação legislativa mais severa.
A nova lei atendeu o reclamo social, ajustou-se no rigorismo mundial de combate ao binômio álcool-direção, trouxe instrumentos e mecanismos de execução compatíveis com a realidade brasileira, porém pecou pelo seu preciosismo, em verdadeiro confronto com direito consagrado na Constituição Federal. Não se trata aqui de avaliar se a lei é justa ou não e, sendo injusta, justificaria a não obediência. A lei, mesmo sendo injusta, encontra-se no mesmo nível de legalidade das demais e deve ser questionada judicialmente a sua coerência, por se apresentar fora dos parâmetros constitucionais. Quando se elege o feitor das leis a ele se confere poder para assegurar as garantias da justiça básica, como sendo, segundo o ensinamento de JOHN RAWLS, as da liberdade política - liberdade de expressão e reunião - e a liberdade de participar das atividades públicas e influenciar por meios constitucionais, o curso da legislação.
O princípio do direito ao silêncio não compreende somente a zona de intimidade do infrator, mas, também, o alargamento das fronteiras defensivas, não permitindo, desta forma, que produza provas contra si mesmo, quando é convidado a testemunhar o próprio opróbrio, como diz Tomás de Aquino. A lei de trânsito prevê, com arrepios de inconstitucionalidade, que o eventual infrator será penalizado se recusar a se submeter a testes de alcoolemia, exames clínicos, periciais ou outros em aparelhos homologados pelo CONTRAN. E a penalização é idêntica à prevista para quem for flagrado dirigindo sob a influência de qualquer outra substância psicoativa.
A Carta Constitucional estende os braços para o princípio da presunção da inocência, que guarda estreita vinculação com a regra do nemo tenetur se detegere, direito assegurado nas constituições democráticas, conforme se constata da norte-americana no instituto do privilege against self-incrimination. O exercício desse direito não pode ser visto como uma penalização, um suplício, um antídoto da liberdade consagrada. E a liberdade do cidadão somente pode ser limitada em nome de outra liberdade mais prevalente, no critério estabelecido por seres iguais e livres, com liberdade de escolha.
Em outras palavras: se o cidadão se recusar a fazer o teste do bafômetro ou exame de sangue, no pleno exercício de um direito confirmado constitucionalmente, será penalizado sumariamente. Se ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, o cidadão que assim age, acobertado pela lei maior, na esfera do exercício de sua defesa, será considerado infrator e como tal penalizado penal e administrativamente. É um contrassenso legislativo e uma afronta ao direito ao silêncio a autoridade de trânsito lavrar o auto de infração, que desencadeará a somatória de sete pontos na Carteira Nacional de Habilitação do eventual infrator, a apreensão de seu veículo e a suspensão do direito de dirigir por um ano.
Incumbe ao Estado, por meio de seus agentes persecutórios, demonstrar a prática de um ilícito pelos meios probatórios admissíveis nas regras jurídicas e não coagir o eventual infrator a consentir na realização de provas invasivas, prostrando-o diante de sua própria cidadania. É o aniquilamento de direitos obtidos com muito custo pela população brasileira.
Aí, então, a lei "não pega", por culpa exclusiva do legislador que desatendeu as exigências previstas na própria Constituição.
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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado, mestre em Direito Público, doutor em Ciências da Saúde e reitor da Unorp
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