Migalhas de Peso

De Vladimir Herzog a Siegfried Ellwanger

O julgamento do HC impetrado por Siegfried Ellwanger perante o STF envolve o tema mais caro à legião dos construtores da ordem constitucional vigente: CIDADANIA plena, constituída de direitos civis, políticos e sociais em uma sociedade.

9/4/2003

 

De Vladimir Herzog a Siegfried Ellwanger

Elisabeth V. De Gennari*

O julgamento do habeas corpus impetrado por Siegfried Ellwanger perante o Supremo Tribunal Federal, a ter seguimento possivelmente na sessão plenária de hoje (9/4/03), envolve o tema mais caro à legião dos « construtores » da ordem constitucional vigente: CIDADANIA.

E não é qualquer CIDADANIA. É a cidadania plena, constituída de direitos civis, políticos e sociais em uma sociedade e sem preconceitos, como consta do preâmbulo da Constituição.

Apresentada como Constituição-cidadã por Ulysses Guimarães, a Carta de 1988 tem como um dos seus pontos fortes a ampliação e defesa dos direitos de cidadania1.

"Esta Constituição, o povo brasileiro me autoriza a proclamá-la, não ficará como bela estátua inacabada, mutilada ou profanada.

O povo nos mandou aqui para fazê-la, não para ter medo.

Viva a Constituição de 1988!

Viva a vida que ela vai defender e semear

!"2

A vida semeada e defendida pela Constituição é a do cidadão.

Esse o pressuposto jurídico sobre o qual se assenta o « Estado Democrático brasileiro, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos ».3

Esse modelo social é consentâneo com os movimentos populares pelos direitos humanos no Brasil desde o golpe de 64 (e especialmente depois de 1969) .

Consolidado o regime democrático, a luta pelos direitos humanos passou a ser pela efetiva implementação dos direitos assegurados pela nova ordem.

Nesse sentido, multiplicaram-se os documentos de informação e defesa do CIDADÃO, como o denominado Brasil, Gênero e Raça, lançado pelo Ministério do Trabalho, encontram –se definidos:

Racismo –

"a ideologia que postula a existência de hierarquia entre grupos humanos";

Preconceito –"

uma indisposição, um julgamento prévio negativo que se faz de pessoas estigmatizadas por estereótipos";

Discriminação –

"é o nome que se dá para a conduta (ação ou omissão) que viola direitos das pessoas com base em critérios injustificados e injustos, tais como: a raça, o sexo, a idade, a opção religiosa e outros".

A manifestação comportamental do preconceito se revela em discriminação, no sentido de manter e isolar as características do seu grupo de referência, bem como sua posição privilegiada

Do cotejo do preâmbulo da Constituição com as definições singelas acima reproduzidas ressalta a conclusão que a sociedade brasileira SEM PRECONCEITOS é a sociedade que veda, de forma absoluta, a DISCRIMINAÇÃO.

É possível afirmar, sem muita margem de erro, que a sociedade brasileira projetada na Constituição seria a exata antítese daquela projetada em "Mein Kampf".4

O nacional-socialismo de Hitler pretendeu fundar o conceito de nação e de nacionalidade com bases étnicas, na "raça alemã", tomada por valor de superioridade em face das demais etnias. O nazismo resultou da combinação da idéia de reforma do mundo pela engenharia racial com a formação de uma cadeia de comando disciplinada e disposta a executar as ordens de um líder.

Enquanto o "Mein Kampf" sustentou a Ditadura de Hitler, a Constituição de 88 assegura o Estado Democrático Pluralista que elegeu, pela quarta vez consecutiva, seu dirigente.

Pois bem. Enquanto o fortalecimento do sentimento de cidadania, e a organização da sociedade civil brasileira fez emergir dos anos de chumbo, a "Constituição Cidadã", da extrema direita européia e americana nascia o « revisionismo » ou « negacionismo ».

O negacionismo (revisionismo) passa, a partir dos anos 70, a ser o elemento central de uma estratégia que se destina a criar condições para a recomposição ideológica de grupos políticos nazistas .

Quando os primeiros livros revisionistas começaram a ser vendidos no Brasil, com o selo da Revisão Editora, de propriedade de Siegfried Ellwanger, pouco se sabia no Pais sobre esse tipo de literatura.

O Revisionismo fez de pequenas livrarias, como a de Siegfried Ellwanger em Porto Alegre, e a de Jean Plantin, em Lyon, sua fonte de dissiminação.

Em "Holocausto: Judeu ou Alemão’’, de autoria de Ellwanger, lê-se que os judeus "lutam contra nós mais eficazmente que os exércitos inimigos. (...) É de lamentar que todo Estado, há tempo, não os tenha perseguido como a peste da sociedade e como os maiores inimigos da felicidade da América’’ (p.59).5

Essa literatura é consumida pelos "nacionalistas de Niterói"6; pela Internacional Third Position (ITP); pelos skinheads de São Paulo que assasinaram um adestrador de cães, ou do estigmatizado obsedo de Taiúva (SP), que invadiu a escola na qual estudava, feriu seis alunos, uma professora, o caseiro e se matou com um tiro na cabeça.7

O revisionismo, o negacionismo, o neo-nazismo é a doutrina do racismo moderno em torno do qual uniram-se os extremistas xenófogos da direita e da esquerda e os intolerantes em geral.

O "racismo moderno", ou qualquer outra forma discriminatória, foi repudiado pela "nossa" Constituição "Cidadã" ao preconizar a sociedade sem preconceitos .

Sempre tive para mim que a constituiição cidadã começou a ser escrita na Catedral da Sé, em São Paulo, por quase 10 (dez mil) pessoas, em 31 de outubro de 1975, no culto ecumênico em memória do jornalista Vladimir Herzog .

Claro que poderia ser apenas a visão tendenciosa de uma primeira anista da São Francisco que, após enfrentar horas de caminhada, consiguira juntar-se, ainda que em anônima a parceira, aos seus líderes ideológicos.8

Mas assim profetizara Dom Hélder Câmara "Senhor Cardeal, é hoje que começa a derrocada da ditadura militar"9 e reconheceram as entidades que concederam ao cardeal D. Paulo Evaristo Arns, ao rabino Henry Sobel e ao pastor Jaime Wrigth os títulos de "Cardeal ", "Rabino" e "Pastor da Cidadania", respectivamente, por aquela corajosa celebração religiosa.

A verdade é que daí para a frente, a mobilização social não parou de crescer. A luta pela abertura era articulada por diversos setores e entidades, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a União Nacional dos Estudantes (UNE), dentre outras, além da própria imprensa.

O coroamento dessa evolução veio em 29 de outubro de 1978, no processo nº 136//76, com a condenação histórica da União pela tortura e morte de Herzog pelo Dr. Márcio José de Moraes MM. Juiz da 7a. Vara Federal, em São Paulo.

Em 31 de outubro de 1999, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reformando sentença absolutória, impôs ao proprietário da Editora Revisão, Siegfried Ellwanger, a pena de 2 anos de reclusão, por crime de incitação ao racismo, suspendendo, por 4 anos, a execução da reprimenda. Em março de 2000, essa condenação foi confirmada pelo STF.

Após o trânsito em julgado foi impetrado, no Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus em favor Siegfried Ellwanger alegando que como "os judeus não são raça" e como o paciente não foi responsabilizado por racismo, mas por um delito "contra os judeus, contra o judaísmo, contra a comunidade judaica" não se pode, como fez o aresto transitado em julgado, considerar imprescritível (art. 5º, LXII, da CF) o crime por ele cometido.

Em 18 de dezembro de 2001, sob a relatoria do Min. Gilson Dipp, foi denegada, por maioria de votos, a ordem:

"Não há ilegalidade na decisão que ressalta a condenação do paciente por delito contra a comunidade judaica, não se podendo abstrair o racismo de tal comportamento, pois não há que se fazer diferenciação entre as figuras da prática, da incitação ou do induzimento, para fins de configuração do racismo, eis que todo aquele que pratica uma destas condutas discriminatórias ou preconceituosas, é autor do delito de racismo, inserindo-se, em princípio, no âmbito da tipicidade direta." 10

Em 13 de setembro de 2002 nova impetração, agora para o Supremo Tribunal Federal, sob a mesma fundamentação (HC 82424) , a qual começou a ser julgado em 12 de dezembro de 2002 pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.

O relator, ministro Moreira Alves, à luz de vários autores que abordaram o tema "racismo", entendeu que, realmente, "os judeus não podem ser considerados uma raça".

Afirmando que "não se pode qualificar o crime por discriminação pelo que foi condenado Siegfried Ellwanger, como delito de racismo", concedeu a ordem para declarar extinta a punibilidade do acusado, pois já consumada a prescrição

Abriu divergência o ministro Maurício Corrêa, ao questionar a "interpretação semântica" e restrita dada ao artigo 5º, inciso XLII, da CF/88, considerando que o conceito de racismo é mais amplo do que a definição dos tipos raciais (brancos, negros, índios, etc.). Em seguida, pediu vista do processo.11

Foi convidado para se pronunciar como Amicus Curia12 pelo Ministro Maurício Corrêa o « Rabino da Cidadania», Henry Sobel. O advogado Décio Milnitzky13 o coordenou os trabalhos dessa contribuição ao STF, subscrevendo com o Rabino Sobel, o Memorial com o qual foram oferecidos pareceres preparados pelos Professores Doutores Celso Lafer, Miguel Reale Jr., Izidoro Blickstein e Sonia Ramagem.

« A impetração propõe curiosa alternativa: ou os judeus são raça bem definida, como afirmado por Hitler em Mein Kampf (trecho nela citado), ou não são, como afirmam cientistas, rabinos e escritores judeus.

Desse dilema se extrai curiosa conclusão. Segundo a singular ratio da impetração, se a Suprema Corte concordar com a "autoridade antropológica, sociológica e política" de Hitler, concluindo que "judeu é tipo racial", o Paciente está bem condenado e o crime não prescreve. Porém, se a Corte divergir dessa autoridade de Hitler, vá lá que o Paciente ofenda os judeus e incite seus leitores a odiá-los, importa é que o crime está prescrito. » (Memorial, Henry Sobel e Décio Milnitzky).

Com a Constituição de 1988, o Brasil mostrou uma « nova cara ». Essas feições foram forjadas sob um valor maior. Esse valor que não permitiu fosse aceita a versão de suicídio ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog14 e levou dez mil pessoas, sob as lideranças de Dom Paulo Evaristo Arns, Rabino Henry Sobel e vários outros, a lotar, além da Catedral, todos os espaços da Praça da Sé, foi a disposição de reconquistar os direitos da cidadania.

Se o Decreto nº 63.223 de 6 de setembro de 1968, do Presidente Costa e Silva determinou o cumprimento e execução da Convenção relativa à Luta contra a Discriminação no campo do Ensino15, que dispõe:

"...o termo "discriminação" abarca qualquer distinção, exclusão, limitação ou preferência que, por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião publica ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, condição econômica ou nascimento, tenha por objeto ou efeito destruir ou alterar a igualdade de tratamento em matéria de ensino... "

Forçoso reconhecer, com todo acatamento às opiniões contrárias, que

« ..negar a proteção da imprescritibilidade a qualquer das vítimas potenciais ou efetivas do racismo, sob o perigoso manto de que sua prática é impossível em face da real inexistência de raças, corresponderia a vulnerar a humanidade, mais do que fazer tábula rasa da Constituição e do papel e dos compromissos do Brasil no cenário internacional. » (Memorial, Henry Sobel e Décio Milnitzky).

As práticas preconceituosas criminalizadas perpetuamente pela Constituição Cidadã não são as que atentam à uma específica etnia em particular e, sim, ameaçam a dignidade de toda humanidade.

O "constituinte brasileiro" - nesse senso incluídos todos os partícipes do "Culto Ecumênico em memória de Vladimir Herzog" - ao instituir a punibilidade imprescritível uniu o intuito maior de coibir qualquer ato de discriminação, seja ela racial, religiosa, étnica, social, sexual ou cultural.

"Brasil, mostra a sua cara."

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1 Brasil - História e Sociedade, de Francisco M. P. Teixeira. São Paulo, Ática, 2000. p. 314.

2 Discurso pronunciado pelo Presidente Ulysses Guimarães, na Sessão da Assembléia Nacional Constituinte, em 27 de julho de 1988.

3 Preâmbulo da Constituição Federal de 1988.

4 "Minha Luta" de Adolf Hitler.

5 Com os memsos fundamentos « Orgulho Paulista » e « Determinação e Coragem » dois skinzines editados em 1990 por um estudante de História, discriminando as populações nordestinas.

6 Cf. sítio eletrônico "Avante".

7 "Hitler em Taiúva"– Alberto Dines, e "A imprensa também matou em Taiúva" - Claudio Julio Tognolli, ambos em "Observatório da Imprensa".

8 « O professor paulista José Reinaldo de Lima Lopes observou bem que do ponto de vista das classe sociais a história recente dos direitos humanos pode ser dividida em dois momentos: do Golpe Militar até 1975; e de 1975 até nossos dias. » (Maurício José Nardini, ASPECTOS CONSTITUCIONAIS E PRÁTICAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS).

9 Depoimento de D. Paulo Evaristo, CARDEAL ARNS, em 13 de outubro de 2000 (Homenagem a Vladimir Herzog).

10 HC 15155 / RS – 5a. Turma do STJ.

11 Fonte : Notícias do STF - 12/12/2002 - 19:57 - STF julga Habeas Corpus de editor acusado de divulgar idéias anti-semitas

12« Amigo da Corte »

13 O Dr. Décio Milnitzky, honrandos-me com sua confiança, facultou-me o acesso a esse material, após a entrega ao destinatário.

14 Vladimir Herzog nasceu em Osijsk, na Iugoslávia,e veio com os pais para o Brasil ainda pequeno fugindo do nazismo que assolava a Europa no início do século passado.

15 Adotada a 14 de dezembro de 1960, pela Conferência Geral da UNESCO, em sua 11.ª sessão, reunida em Paris de 14 de novembro à 15 de dezembro de 1960.

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* do escritório Bottallo e Gennari, Advogados, é Professora de Processo Civil da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e empreende a pesquisa sobre Discriminação à Mulher nos Meios Jurídicos.

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