Migalhas de Peso

Crítica à concepção do projeto do novo Código Comercial sobre o Direito societário (i)

Está instalada uma completa bagunça, pois o juiz terá de resolver no caso concreto se quem contratou com a sociedade o fez como empresário ou como não empresário, pois o tratamento proposto é diferenciado (alô, alô, Constituição Federal!).

1/3/2012

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

Crítica à concepção do projeto do novo Código Comercial sobre o Direito societário (i)

O projeto em questão vem recebendo acerbas críticas de diversos comercialistas (entre os quais modestamente me incluo), veiculadas neste "Migalhas" e em outros veículos especializados (veja-se também entrevista que dei ao Jornal do Advogado, nº 369, fev/2012. Pg. 13), tanto pela sua origem não democrática (fator que também se estende à consulta pública ora em curso), quanto pelo seu conteúdo sofrível. Neste artigo pretendo abordar algumas questões relativas ao direito societário do ponto de vista geral, o primeiro de uma mini série que pretendo desenvolver.

Cabe lembrar, como advertência prévia, que sou absolutamente contrário à promulgação de um novo código comercial, como já deixei marcado em texto anterior, preferindo a adoção de outras soluções para a correção e atualização dos problemas relacionados ao Direito Mercantil, a ser feita pela manutenção dos micro sistemas jurídicos já existentes e outros que venham a ser criados.

O art. 113 do projeto ao mesmo tempo em que estabelece como princípio do direito comercial societário a autonomia patrimonial da sociedade empresária, mantém a subsidiariedade da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais. Tratando-se de uma pretensa modernização desse ramo do direito, o papel do comercialista seria o de estabelecer verdadeiramente a separação patrimonial entre sociedade e sócios, acabando do uma vez por todas com o recurso ao patrimônio dos sócios para o pagamento dos credores sociais. A exceção ficaria tão somente para o caso do abuso da personalidade ou de fraude à lei. Isto implicaria em deitar por terra os antigos modelos societários não mais necessários nem utilizados entre nós, tal como ainda previsto no projeto quanto à sociedade em nome coletivo e a comandita simples, resquícios de tempos de antanho (art. 120).

A propósito, a denominação atualmente adequada para a anônima é simplesmente a de companhia, uma vez que as ações ao portador estão desaparecidas do nosso direito desde a década de noventa do século passado e, portanto, os acionistas não são mais anônimos (identificados apenas no momento em que comparecessem às assembleias gerais para votar), mas conhecidos mediante a verificação dos registros feitos nos livros competentes. Expurgada do nosso direito societário a sociedade em comandita por ações a denominação da companhia também poderia corresponder à de sociedade por ações, pois não haveria outra desta espécie.

Para o fim de atender adequadamente à atividade empresarial de menor magnitude econômica outros ordenamentos jurídicos mais sábios do que o nosso criaram sociedades unipessoais e estabelecimentos comerciais dotados de plena autonomia patrimonial, resultando em ganhos de eficiência que o legislador brasileiro não regulou, exceto por uma tentativa que já se revela mal sucedida, inerente à empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI), cuja verdadeira identidade jurídica é completo mistério, conforme as manifestações contraditórias sobre ela já manifestadas pela doutrina.

Sob o aspecto em foco o referido artigo 113 briga consigo mesmo, pois, conforme visto acima, no inciso II trata da autonomia patrimonial da sociedade empresária; no inciso III cuida da responsabilidade subsidiária dos sócios; e no inciso IV determina a limitação da responsabilidade daqueles pelas obrigações sociais. Estes três princípios não conseguem andar juntos. São incompatíveis entre si em parte.

O art. 114 é de uma inutilidade absoluta, pois nada mais faz do que confirmar a norma constitucional relativa à liberdade de associação. E dispondo sobre a saída do sócio como restrita tão somente às hipóteses previstas em seu texto, o projeto também afronta a liberdade constitucional porque nenhuma disposição legal pode impedir que o sócio desligue-se da sociedade quando não mais desejar nela continuar mesmo que, no limite, sua pretensão leve à dissolução total da sociedade. Afinal de contas, a escravidão oficial já desapareceu entre nós há muito tempo.

Outra inutilidade está no art. 115 onde se lê que a sociedade empresária não se confunde com os seus sócios. Isto é óbvio, na medida em que todos os nossos tipos societários são personificados, do que resulta não ser possível a confusão entre essas pessoas. Entre elas não se conta a chamada sociedade em comum de que fala o Código Civil, pois se trata de uma comunhão de bens. Mais uma vez ressalve-se a EIRELI.

Enumerado entre os dispositivos que cuidam dos princípios do direito comercial societário (portanto, de natureza geral), o art. 116 não corresponde à verdade uma vez que, de um lado, na companhia os acionistas jamais respondem com o seu patrimônio pelas obrigações sociais e na limitada esta responsabilidade subsidiária (e solidária entre os sócios) se dá tão somente quando o seu capital social não está integralizado, o qual é precisamente o limite de tal responsabilidade. Ou seja, neste tipo social também é o capital social o limite da responsabilidade dos sócios que surge no momento em que tal principio foi desrespeitado na origem da sociedade ou durante a sua vida. A diferença entre a companhia e a limitada neste ponto é que nenhum acionista responde pelo inadimplemento do preço de emissão das ações de outros acionistas, enquanto os sócios da limitada respondem pelos demais, o que implicaria em uma certa culpa in vigilando.

O art. 120 introduz uma novidade terminológica dispensável ao dizer que o investimento do sócio minoritário é protegido mediante a responsabilização do majoritário no caso de exercício abusivo dos direitos societários.

Tradicionalmente em nosso direito societário o sócio controlador responde por abuso de poder de controle, cuja definição é bastante conhecida entre nós. Já o denominado exercício abusivo de direitos societários mostra-se um conceito muito aberto e, consequentemente extremamente amplo. E sabe-se que em nosso direito societário que tanto o minoritário como o majoritário correm o risco da perda do seu investimento caso a sociedade tenha a falência decretada.

O art. 123 introduz a figura do fiscal judicial temporário, para todos os tipos de sociedades, a ser designado pelo juiz, a pedido justificado de sócio com participação mínima de 5% no capital social, não importando se isto resulta de ações ordinárias ou preferenciais, quando se trata de companhia. Como se percebe, tal novidade implicará na permissão para o nascimento de um foco permanente de tensões na sociedade, inteiramente injustificáveis. Evidentemente ela não poderia ser aplicada às companhias abertas, pois infringiria as normas sobre o mercado de capitais, especialmente por invadir a competência fiscalizatória da CVM. Vejamos os pressupostos para a designação de tal fiscal e o que caberia a ele fazer.

Primeiro, a atuação do aludido fiscal está fundada em um pedido justificado do sócio. Justificado com base em que? Para toda e qualquer situação de insatisfação do sócio quando aos rumos tomados pelos administradores em sua gestão? Que autoridade e conhecimento técnico teria o juiz para tanto?

Como resultado da sua designação o fiscal fiscalizará (como é óbvio, diria o caríssimo Conselheiro Acácio) o campo das atividades determinadas pelo juiz. Quais e para quê? A lei societária apresenta soluções geralmente consideradas satisfatórias para o abuso do poder de controle e na administração das sociedades.

No que diz respeito às limitadas, sabe-se que o Código Civil vigente devastou a boa estrutura existente na lei anterior, tendo-lhe criado tantos problemas para o seu funcionamento razoável, que praticamente a tornou inviável. O ideal, pois, seria uma reforma no sentido da restauração do seu caráter predominantemente contratual, em cuja instituição os sócios tivessem plena liberdade de construírem o sistema de fiscalização interna segundo a sua vontade e para cada caso concreto, a partir de um mínimo legal. E, em uma sociedade de pequeno e médio porte, a intromissão de terceiro como órgão de fiscalização no interesse de sócios minoritários somente traria custos desnecessários.

Quanto à companhia, os acionistas têm na lei à sua disposição instrumentos diversos para a defesa dos seus interesses, sem necessitar da intromissão do juiz e de um terceiro como pressuposto para tal finalidade. Será uma instância a mais, desnecessária e onerosa.

E, no tocante ao Judiciário, já assoberbado de trabalho, criar-se-ia uma obrigação de natureza não judicante, alheia à sua competência natural.

O sentimento que acode ao intérprete diante de uma novidade desta espécie é o de que os sócios minoritários são considerados eternos incapazes relativos, sem competência para autonomamente cuidarem dos seus interesses, que, a cada momento, precisam da intervenção do Estado paternalista (concepção própria dos falidos regimes socialistas em contradição direta com o que diz o projeto no seu artigo 5º, inciso I, quando se refere ao fato de que vivemos em um sistema capitalista), aqui na pessoa do Judiciário para verem os seus direitos protegidos, mesmo no campo da iniciativa individual. O autor do projeto parece desconhecer que, em determinados casos de associação empresarial o sócio minoritário pode corresponder a uma empresa multinacional de grande porte e, mesmo assim, ela seria dotada de uma proteção especial.

E qual o efeito prático de tudo isto? Digamos que o fiscal encontre problemas dentro da sociedade e os relate ao juiz. E daí? Não tem competência para tomar de ofício medidas contra os administradores e o controlador, conforme o caso. Ele dependerá do ajuizamento da competente ação que, por sua vez, precisará seguir o rito previsto na lei, segundo a qual o acionista interessado precisará respeitar as instâncias adequadas, que muitas vezes se revelarão inviáveis. Isto porque, como se sabe, a iniciativa de responsabilização interna nas sociedades compete originariamente à assembleia geral. Quando muito, portanto, o relatório do fiscal teria a natureza de um princípio de prova, sujeito a ser contrariado no curso de uma ação judicial, com agravamento dos seus custos.

Como se verifica, o melhor destino para esta ideia é a sua completa rejeição.

O art. 124 traz a conhecida regra segundo a qual a sociedade não se obriga pelos atos dos administradores que ultrapassem os poderes que lhes são dados pelo contrato social ou pelo estatuto. Mas são criadas duas outras novidades, representadas pelo tratamento diferenciado entre as relações inter empresariais e aquelas com pessoas físicas ou jurídicas não empresárias.

Volta no art. 124, § 1º a noção de que o micro empresário e o empresário de pequeno porte são pessoas desprovidas de entendimento e que precisam de uma proteção extra, mesmo à custa da sociedade com a qual contratam e, consequentemente, dos sócios minoritários que a integram (os quais, também eventualmente poderiam ser classificados como burros). Daí que a solução do projeto resultaria em proteger alguns burros em detrimento de outros, o que quebraria o principio da igualdade.

Veja-se que o parágrafo terceiro do mesmo dispositivo faz pesar sobre a sociedade o ônus de provar que a pessoa física ou jurídica não empresária que com ela contratou tenha agido de má fé, como pressuposto para isentar-se de responsabilidade por atos ultra vires dos seus administradores.

Está instalada uma completa bagunça, pois o juiz terá de resolver no caso concreto se quem contratou com a sociedade o fez como empresário ou como não empresário, pois o tratamento proposto é diferenciado (alô, alô, Constituição Federal!).

Por hoje ficamos por aqui, computado um amplo escore contra o projeto. Mas a novela continua. Vamos aos comerciais!

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* Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP e consultor do escritório Mattos Muriel Kestener Advogados

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