Isabella Henriques
Classificação indicativa para poucos
Sexo, drogas e violência liberados na tevê aberta em todos os níveis, a qualquer hora, em qualquer dia da semana. Pois bem. É o que a tevê aberta brasileira poderá mostrar para nossas crianças se prevalecer o voto do Exmo. Ministro Toffoli no julgamento da ADIn nº 2.404, proposta pelo Partido Trabalhista Brasileiro – PTB
Isso porque nesse julgamento está em discussão a constitucionalidade da expressão "em horário diverso do autorizado" constante do artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente, lei federal 8.069/90, que delineia as sanções cabíveis para o caso de descumprimento da chamada 'vinculação horária', determinada pelo artigo 220, §3º, I e II da Constituição Federal.
De acordo com o mencionado voto, que, diga-se de passagem, já foi acompanhado pelos Exmos. Ministros Ayers Britto, Cármen Lúcia e Luiz Fux, a regulação por parte do Poder Público acerca dessa questão consubstanciaria censura, ou seja, cerceamento à liberdade de expressão do pensamento.
Mas, como explicar isso a um pai e a uma mãe típicos da realidade brasileira, que não têm acesso a outras formas de diversão ou meios culturais e permitem que seus filhos assistam à tevê – aberta, claro, porque não fazem parte da minoria da população com acesso a canais por assinatura – nas tardes após o retorno da escola, enquanto estão trabalhando fora de casa. É uma pergunta e tanto. Não saberia como fazê-la. Liberdade de expressão de quem? Talvez fosse essa a primeira pergunta que esse pai e mãe fariam se conseguissem expressar sua quase certa indignação.
Para o Exmo. Ministro a resposta parece simples: a indicação da adequação do programa que o deve anteceder bastaria para que os pais, exercendo seu poder familiar, permitissem – ou não – que seus filhos assistissem ao conteúdo da programação. Ainda que durante as 'sessões da tarde', enquanto a imensa maioria dos adultos está trabalhando fora de casa e sem condições de atentar para a indicação da faixa etária da programação – a qual, ademais, não é informada durante os comerciais da programação, nem, tampouco, nos jornais e páginas da Internet onde se encontra a programação diária televisiva...
Parece-me que sob a escusa de se manter intacta a garantia constitucional da liberdade de expressão o campo da radiodifusão brasileira acabaria por se tornar terra de ninguém, na qual nem a Constituição Federal chegaria, nem mesmo em um exame quanto à proporcionalidade de uma restrição em relação à necessidade de proteção de uma parcela da sociedade sabidamente vulnerável, como são crianças e adolescentes.
Aliás, para o voto do Exmo. Ministro Relator, a vida dos filhos, sua educação, formação e valores interessam exclusivamente a seus pais, na medida que qualquer ação vinda do Poder Público poderia redundar em um paternalismo estatal. Então, fico pensando na obrigatoriedade do uso de cadeirinhas nos automóveis para o transporte de crianças e também na violência doméstica. Será mesmo que não interessa ao Estado garantir o disposto no artigo 227 da Constituição Federal, que, aliás, transfere essa responsabilidade pelo bem-estar infanto-juvenil também ao Estado, de forma compartilhada com os pais e com a sociedade? Parece claro que interessa sim.
Permitir que crianças e adolescentes tenham contato com conteúdo audiovisual impróprio a sua faixa etária é certamente uma violência. Violência tamanha que já foi comprovada em inúmeros estudos realizados em todo o mundo e que embasaram não só a política da Classificação Indicativa do Ministério da Justiça, mas diversas outras políticas em países onde a liberdade de expressão e a democracia são consolidadas e, de fato, há muito mais tempo do que no Brasil.
Nem mesmo a garantia constitucional da liberdade de expressão é absoluta. Não existe garantia constitucional absoluta. E na discussão do presente caso há um flagrante confronto com a também constitucional garantia do desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes.
Urge que o Poder Judiciário retome com serenidade o caminho da Justiça e não jogue no ralo um dos pouquíssimos avanços havidos recentemente no campo da comunicação brasileira.
A Classificação Indicativa é uma conquista de toda a sociedade brasileira. Pais, mães, filhos, filhas, avôs, avós, netos e netas. É o interesse dessa sociedade que merece ser observado e respeitado nesse julgamento. Sob pena de se ter uma classificação indicativa de faz de conta, que em última análise poderia, vá lá, servir tão somente para os poucos pais e mães que não trabalham fora ou contam com a ajuda de babás para cuidarem de seus filhos e, assim, acompanharem em tempo real tudo o que os pequenos consomem em termos de programação televisiva.
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* Isabella Henriques é coordenadora geral do Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana
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