Migalhas de Peso

Indignação pela reflexão!

Não é uma Comissão de Juristas - a ser integrada, como sempre ocorre, por pessoas escolhidas muito mais por critérios políticos - que poderá, a seu talante, reescrever o que torto nasceu - o projeto do Código Comercial.

14/2/2012

Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França

Indignação pela reflexão!

Antes de responder ao inacreditável artigo publicado pelo autor do projeto de Código Comercial neste justamente prestigiado jornal, no dia 9.2.12, quero iniciar trazendo aos leitores mais algumas singularidades nele colhidas ao acaso.

Lê-se, assim, por exemplo, no art. 114: "A liberdade de associação é irrestrita no momento da constituição da sociedade empresária ou do ingresso na constituída, não podendo ninguém ser obrigado a se tornar sócio de sociedade contratual contra a vontade, mas, uma vez ingressando na sociedade empresária, o sócio não poderá dela se desligar senão nas hipóteses previstas neste Código" (grifei).

Prestaram atenção nesse achado? É possível alguém ser "obrigado a se tornar sócio de sociedade contratual contra a vontade"? O que o projeto provavelmente quis dizer, porém – com invejáveis clareza e precisão de linguagem, como se pode notar –, é que os herdeiros de sócio falecido não ingressam automaticamente em sociedade contratual. Deve ser por aí, pelo que eu pude depreender.

Agora, esse: "Art. 189 (...). Parágrafo único. Com a dissolução parcial, desliga-se da sociedade o sócio falecido,..." Ôpa! É isso mesmo que os leitores acabaram de ler: com a dissolução parcial, o sócio falecido desliga-se da sociedade!

Notaram, também, que apuro de linguagem?1

Alguém pode ter alguma dúvida séria, portanto, de que esse projeto foi feito às carreiras, aos trambolhões, para valer-se de um momento político? Torno a isso logo a seguir.

Vejam, ainda, o desprezo do projeto pela precisão de conceitos, essencial em qualquer diploma legal, ainda mais em um pretendido código! Logo após afirmar, corretamente, no art. 125, que "A sociedade empresária adquire personalidade jurídica com o arquivamento de seu ato constitutivo no Registro Público de Empresas" – logo após! – o art. 126 diz: "Termina a personalidade jurídica da sociedade empresária com a partilha, depois de regularmente dissolvida e liquidada".

O menosprezo, na verdade, não é só pela precisão conceitual, mas também pela lógica: se a sociedade adquire personalidade jurídica com o registro, ela só pode perdê-la, evidentemente, com o cancelamento do registro – como irrepreensivelmente dispõem, aliás, os arts. 51, § 3º, e 1.109 do Código Civil: "Art. 51. Nos casos de dissolução da pessoa jurídica ou cassada a autorização para seu funcionamento, ela subsistirá para os fins de liquidação, até que esta se conclua. (...) § 3º Encerrada a liquidação, promover-se-á o cancelamento da inscrição da pessoa jurídica"; "Art. 1.109. Aprovadas as contas, encerra-se a liquidação, e a sociedade se extingue, ao ser averbada no registro próprio a ata da assembléia".

Para o projeto, porém, a personalidade jurídica termina com a partilha. Imaginem a confusão que isso acarretará na prática...

É por tudo isso, e por tudo o mais que eu já disse nos artigos anteriores – e pelo que ainda vou dizer a respeito desse descosido projeto –: pelo seu menoscabo pela lógica, pela linguagem, pela terminologia, pelos conceitos, pelo Direito – e pelo Direito Comercial, enfim! – é por tudo isso que, como cidadão e professor de Direito Comercial, me tomei de indignação – mera consequência da análise objetiva do que está ali. Mera consequência de reflexão...

E essa indignação foi tanto maior pelo fato de ter-se arremessado esse desconjuntado texto – com total menosprezo pelas classes interessadas – diretamente no Congresso Nacional, tendo em vista critérios estritamente oportunistas, de compadrio – o que nem no período negro da ditadura militar ocorreu, como eu demonstrei (Migalhas, 27.12.11). Afinal, quem perde a capacidade de indignar-se, como diz o poeta, está morto.

E já respondendo ao artigo do dia 9.2.12, se esse processo todo não foi e não é profundamente antidemocrático, eu não sei o que será. Para que democrático fosse, como é óbvio, deveria ter resultado naturalmente de um Anteprojeto elaborado e publicamente debatido pelos segmentos da sociedade civil diretamente envolvidos; não é uma "Comissão de Juristas" – a ser integrada, como sempre ocorre, por pessoas escolhidas muito mais por critérios políticos – que poderá, a seu talante, reescrever o que torto nasceu.

Segundo diz o artigo ora comentado, o projeto "inova a definição de empresário, passando a adotar o critério formal. Quebra, assim, a tradição do direito comercial brasileiro, que sempre se pautou pela adoção do critério material (salvo em casos específicos, como o do exercente de atividade rural). A inovação visa tornar menos problemática a discussão sobre o âmbito de incidência do novo Código".

É simplesmente incrível essa "inovação". Quem conhece, minimamente, a história do Direito Comercial, sabe que normalmente os autores dividem-na, grosso modo, em três períodos: o período subjetivo, o objetivo e o moderno ou atual.

O primeiro período (subjetivo) abarca dos primórdios do Direito Comercial – séculos X a XI, aproximadamente – até princípios do século XIX, decompondo-se em duas fases: a corporativista e a mercantilista. Neste primeiro período, só era comerciante quem estivesse matriculado nas respectivas corporações – daí denominar-se período subjetivo, pois o caráter mercantil da atividade ocorria em função do sujeito – o comerciante regularmente matriculado.

No período objetivo, instaurado com o Código Comercial francês de 1807, quem quer que praticasse atos de comércio (no Brasil, quem quer que exercesse a mercancia, o que já denotava de certo modo a moderna ideia de atividade2) era considerado comerciante, fosse ou não matriculado no Registro do Comércio. Se não fosse inscrito, todavia, não gozava da proteção que o Código de 1850 liberalizava "em favor do comércio".

Finalmente, no período moderno, dos atos atomísticos de comércio passou-se para a noção de atividade empresarial – atividade organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços, exercida profissionalmente (art. 966 do Código Civil). A atividade constitui uma série de atos, jurídicos e materiais, que tem por escopo uma determinada finalidade – no caso da empresarial, a produção de bens ou de serviços para o mercado3.

Pois bem. A "inovação" que pretende o projeto de Código Comercial, como se percebe, é um retrocesso ao período medieval (e nem mesmo ao do Código de 1850!): empresário é somente aquele que está inscrito no registro (na corporação) e não aquele que exerce uma atividade de caráter empresarial! É um completo absurdo.

Mas, evidentemente – se nem sequer uma lei pode mudar a natureza das coisas, o que se dirá de um projeto! – essa lógica não se sustenta à luz do próprio projeto, que assim dispõe, no art. 16: "Empresário individual irregular é o que explora atividade empresarial sem que se encontre regularmente inscrito no Registro Público de Empresas".

Como se vê, empresário, como dissemos, é quem explora atividade empresarial, esteja ou não inscrito... O que a falta de inscrição acarreta é, única e simplesmente, a situação de irregularidade da atividade (ou irregularidade do empresário, como diz, canhestramente, o art. 16)4 – e não, evidentemente, a falta da condição de empresário.

E nem se diga, por fim, que essa "inovação" supostamente tornaria "menos problemática a discussão sobre o âmbito de incidência do novo Código". Por que razão, se o "empresário irregular" existe tanto no regime do Código Civil (art. 973 c/c 967) quanto no do projeto (art. 16 c/c 14)? Não é, pois, inovação nenhuma, é retrocesso puro mesmo.

Prosseguindo. Em nosso artigo publicado neste veículo informativo em 1º.2.12, iniciamos pelas "platitudes" contidas no projeto, tais como a do art. 276: "Em caso de inadimplemento, o empresário credor pode exigir judicialmente o cumprimento da obrigação". Ou mais esta, constante do art. 303, inciso II (que o artigo que combato não chegou nem sequer a mencionar, provavelmente devido a um acesso de pudor): "São princípios do direito contratual empresarial: (...) plena vinculação dos contratantes ao contrato"(!!!).

Para justificar tais platitudes, o autor do projeto diz o seguinte: "Todo Código e muitas leis possuem certas disposições que poderiam ser classificadas como 'óbvias'. O art. 276 e seu parágrafo único do Projeto contemplam comando normativo igual ao do art. 475 do CC. Não creio que este último tenha se tornado desnecessário apenas em razão de sua pretensa obviedade" (repare-se no disparate do argumento: evidentemente que o art. 276, que faz parte de um projeto de lei especial não poderia tornar desnecessário "este último" – o art. 475 do CC – um artigo da lei geral). E mais adiante arremata: "O Código Comercial é uma lei especial e, como tal, necessariamente acaba repetindo normas do regime geral. (...) Esta repetição contribui para tornar menos problemática a discussão sobre a incidência das normas especiais ou gerais".

Como se vê, a justificativa toda do artigo ora profligado se baseia em argumentos que eu chamaria de argumentos "par de vaso". Se o Código Civil tem determinada roupagem, o Código Comercial também precisa ter... Se o Código Civil diz que o credor pode exigir o cumprimento da obrigação, o Código Comercial também precisa dizer a mesma coisa. Se o Código Civil dispõe que os contratos vinculam os contratantes, igualmente deve afirmá-lo o Código Comercial.

Ora, como o próprio artigo diz, o Código Civil é a lei geral; o Código Comercial, a lei especial. Dessa forma, se determinados dispositivos já estão na lei geral, eles são absolutamente desnecessários na lei especial5. Esta excepciona aquela, como lex specialis que é.

Mas o que é mais absurdamente inacreditável é que o projeto contém ainda a seguinte disposição: "Art. 298. No que não for regulado por este Código, aplica-se aos contratos empresariais o Código Civil"!

Qual seria a função do art. 298, então? Poderia haver alguma dúvida de que, no tocante aos contratos, tem aplicação a lei geral no que não for regulado na lei especial? Percebem os leitores, assim, quanta prolixidade, como dissemos?

Relativamente à cláusula de impenhorabilidade de quotas sociais, o autor do projeto sai-se pela tangente, afirmando que "desde sempre, quem doa ou testa quotas de sociedade limitada pode gravá-las com a cláusula de impenhorabilidade. Desconheço autor que considere isto um estímulo às fraudes". Pois foi exata e precisamente o que eu disse: "Eu pensava que tal cláusula só pudesse ser instituída em favor de terceiros, mediante doação ou testamento" (Migalhas, 1º.2.12).

Mas o projeto "estende a possibilidade de instituição desta cláusula por meio do contrato social. Assim como o secular 'bem de família', o próprio devedor, por declaração unilateral, torna impenhorável um ativo de seu patrimônio. A publicidade do contrato social é suficiente para advertir os agentes econômicos, quando ponderarem se concedem ou não crédito a sócios de sociedades limitadas".

Como se vê, ignora-se a diferença entre tornar impenhorável bem de terceiro e tornar impenhorável o próprio bem (o bem de família é a exceção que confirma a regra; a sua instituição convencional, ademais, é cercada de cautelas). De outra parte, o problema da impenhorabilidade das quotas imposta por ato de arbítrio do sócio não afeta em nada a sociedade limitada; é algo que prejudica, sim, os credores particulares do sócio... E a pergunta que fica é esta: como ficaria a proteção adequada destes últimos na hipótese (excluída, naturalmente, a mera "publicidade do contrato social" ou o seu registro no "Registro de Imóveis"!)? A porta para a fraude está aberta!

No tocante à "cláusula leonina" (sic), veja-se que o projeto igualmente desconhece uma distinção totalmente elementar entre perdas sociais e responsabilidade dos sócios. A sociedade, como é gritantemente óbvio, pode dar lucros ou prejuízos, independentemente do regime de responsabilidade dos sócios. Tanto pode dar prejuízo uma sociedade em nome coletivo (em que todos os sócios são subsidiária, mas solidariamente responsáveis pelas obrigações sociais, cf. art. 1.039 c/c 1.040 e 1.024, CC), como uma sociedade anônima (em que a responsabilidade dos acionistas é limitada ao preço das ações subscritas ou adquiridas, cf. art. 1.088, CC, e 1º Lei de S/A).

Qualquer que seja o regime da responsabilidade dos sócios ou acionistas, porém, eles participam dos lucros e das perdas sociais. Dos lucros, mesmo que eles não sejam distribuídos, eis que o valor de sua participação social é, assim, aumentado6; pela mesmíssima razão, os sócios (ainda que não tenham responsabilidade subsidiária, como os acionistas de uma sociedade anônima ou os sócios de uma sociedade limitada com capital integralizado) participam das perdas, uma vez que o valor de sua participação social é, então, diminuído.

Isto, como eu disse, é elementar em direito societário. É, portanto, indisputavelmente nula a cláusula contratual ou estatutária que disponha que, numa sociedade limitada ou anônima, determinados sócios ou acionistas não participam dos lucros ou das perdas sociais.

De acordo com o projeto, porém (que adota como um dos "princípios do direito comercial societário" a "proteção dos sócios minoritários", cf. art. 113, inciso V), será inteiramente lícito prever, em uma sociedade limitada, como eu salientei em artigo anterior, "que a quota do sócio (a do controlador, por exemplo, por que não?) não sofra qualquer desvalorização em caso de prejuízo na atividade social", em face do disposto no art. 195: "É nula a cláusula que exclua qualquer dos sócios da participação nos lucros da sociedade". Da participação nas perdas, não... Na hipótese aventada, só a quota dos minoritários se desvalorizará. É outra inovação: a proteção da maioria...

No que diz respeito à "sociedade irregular" a explicação do projetista chega às raias do non sense. Prestem atenção: "Se a sociedade que funciona antes do registro é regular ou irregular, isto é a lei que diz (...). No Projeto, a existência e a personalização da sociedade decorrem do registro na Junta Comercial. Parece-me a solução mais adequada".

A existência da sociedade, portanto – e não só a personificação – decorre do registro. Pergunta-se, então: no que consiste uma sociedade não registrada? Que figura jurídica explica tal fenômeno? Pertence às pessoas, aos bens ou aos fatos jurídicos (Parte Geral do Código Civil)? Ou é um ornitorrinco?

Ademais, se a sociedade não registrada é algo inexistente, como é possível que o projeto a regule (arts. 132 e seguintes)? E ainda mais entre as sociedades (Livro II, Título I, Capítulo III)? Como se verifica, o projeto não é minimamente sério, e o "esclarecimento" dado a respeito pelo seu autor é, com a devida vênia, uma completa insensatez7.

A "explicação" sobre o regime de responsabilidade dos sócios da "sociedade irregular", por sua vez, é a seguinte: "Coerentemente com o afastamento das premissas adotadas pelo Código Civil, o Projeto prevê a responsabilização direta dos sócios, quando irregular a sociedade. Ora, se esta não terá personalidade jurídica, prescrever a responsabilidade subsidiária seria incongruente".

Ora, ora. No direito alemão e no direito italiano, as sociedades de pessoas também não têm personalidade jurídica, mas a responsabilidade dos sócios, nessas sociedades, é subsidiária, eis que há um patrimônio especial a garantir os credores. Como ocorre, aliás, no Brasil, com a sociedade em comum (art. 988 c/c 990, CC). O sócio que alegar o chamado benefício de ordem deve indicar à penhora bens da sociedade, situados na mesma comarca, livres e desembargados (art. 596 e § 1º do CPC). Protegem-se, assim, os sócios investidores e o credor, só respondendo diretamente perante este último o sócio que contratou pela sociedade (art. 990 cit.).

O que a personalidade jurídica traz, portanto, é simplesmente a autonomia patrimonial da sociedade. Mas isto não impede que haja patrimônios especiais8 destinados a determinada finalidade (no caso, ao exercício da atividade de sociedades não personificadas; tanto aqui como alhures). E a falta de personificação também não impede que a sociedade em comum seja parte em juízo, ativa ou passivamente (art. 12, VII, do CPC).

Outra questão diz com a liberdade na fixação dos juros moratórios (art. 281 do projeto), que o artigo ao qual replico diz constituir reivindicação dos próprios empresários, além de ser mais compatível com a liberdade de iniciativa. Tal liberdade, obviamente, deve se dar nos limites da lei, sob pena de consistir em incentivo à agiotagem, sem qualquer órgão fiscalizador ad hoc. Aliás, o que será que o Banco Central do Brasil, por exemplo, pensa a respeito?

O artigo em questão afirma, outrossim, a propósito da "referência genérica a dois contratos", que "os Códigos contemporâneos não são sistematizadores como eram os oitocentistas. Sua função, hoje, é de coordenação, e não de sistematização. A forma mais adequada de coordenar institutos, muitas vezes, consiste em simplesmente apresentar uma conceituação genérica e prever a remissão ao diploma legal específico. É assim, por exemplo, que o Código Civil trata a sociedade anônima, coordenando a matéria, sem a sistematizar. Não teria sentido considerar que os membros da Comissão Reale teriam 'enchido linguiça' quando optaram por esta maneira de coordenarem a matéria acionária".

Se a intenção foi coordenar, e não sistematizar (a diferença entre uma coisa e outra não é aqui sequer muito clara), fica então difícil explicar a opção adotada noutras partes do projeto, em que, longe de coordenar, o que se viu foi a tentativa de trazer uma disciplina geral, muitas vezes se sobrepondo àquilo que está no CC e em leis especiais, como ocorre, por exemplo, com a parte relativa aos títulos de crédito (arts. 445 a 593!), que cuida até mesmo da matéria relativa à Lei Uniforme de Genebra sobre letra de câmbio e notas promissórias!9 Isso foi uma coordenação?

Ademais, o Código Civil trata da matéria acionária – a exceção que confirma a regra, diga-se de passagem – porque, originariamente, o Anteprojeto (de 1972) tratava das sociedades por ações, tendo ao depois sido substituído, nessa parte, pela Lei 6.404/76 (LSA). E, mesmo assim, cuidou da matéria em apenas dois artigos (1.088 e 1.089) para dizer, no último deles: "Art. 1.089. A sociedade anônima rege-se por lei especial, aplicando-se-lhe, nos casos omissos, as disposições deste Código".

Já o projeto, além de repetir, prolixamente, diversas normas que já constam da LSA (arts. 144 a 149, 151 a 154, 158, 159 e 161), disse ainda, pretensiosamente (gigantesco pleonasmo!), o seguinte: "No que não for regulado neste Código, sujeita-se a sociedade anônima a lei especial"!

Deixei para o fim, propositalmente, esta pérola:

"Não há razão para que o literato e o artista, quando exercerem sua atividade de forma empresarial, ficarem à margem do Código Comercial".

Conforme argumentei em meu anterior artigo (Migalhas, 1º.2.12), o Código Civil exclui da conceituação de empresário "quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores..." (parágrafo único do art. 966).

Essa exclusão se dá, segundo a Exposição de Motivos do Anteprojeto, nessa parte elaborada pelo Prof. SYLVIO MARCONDES, porque – repita-se – apesar de o exercente de profissão intelectual "produzir serviços, como o fazem os chamados profissionais liberais, ou bens, como o fazem os artistas, o esforço criador se implanta na própria mente do autor, de onde resultam, exclusiva e diretamente, o bem ou o serviço, sem interferência exterior de fatores de produção, cuja eventual ocorrência é, dada a natureza do objeto alcançado, meramente acidental" (Problemas de Direito Mercantil cit., p. 141, negritos meus)".

Além dessa justificação, rememorei que o genial TULLIO ASCARELLI, comentando disposição semelhante do Código Civil italiano, acrescentava que isso ocorria também porque há uma diversa valoração social com relação ao trabalho intelectual. Não há produção em massa, há premissas de decoro da profissão, etc (cf. A atividade do empresário, Revista de Direito Mercantil [RDM] n. 132, p. 206-207). A sociedade valoriza de forma diversa o profissional intelectual – notadamente o literato ou o artista –, distinguindo-o do empresário.

Retornando agora ao projeto, para logo se verifica o claríssimo preconceito que revela o seu autor, ao excluir do conceito de empresário, nos termos do art. 13 c/c o art. 3°, apenas a pessoa física ou jurídica que exerça "atividade de prestação de serviços própria de profissão liberal, assim entendida a regulamentada por lei para cujo exercício é exigida formação superior" (cf. art. 13: "Não é empresária a pessoa física ou jurídica que explora as atividades relacionadas no art. 3º deste Código, ainda que conte com o concurso de auxiliares ou colaboradores").

Ou seja, os músicos de um grupo (cuja atividade não exige formação superior) que se unam para se apresentar ao público profissionalmente, com o concurso de auxiliares ou colaboradores, serão considerados empresários ou, se for o caso, participantes de uma sociedade empresária. Enquanto que uma grande banca de advogados, que conte com mais de um milhar de colaboradores (secretárias, office-boys, telefonistas, bibliotecários, etc.), como sóe acontecer, é sociedade não empresária10.

Na equivocada concepção do projeto, um escultor (relembro o magistral AUGUSTE RODIN, por exemplo), que produz bens (esculturas), para venda ao público – afinal é um profissional – e se cerca de auxiliares e colaboradores, é considerado um empresário!

Trata-se, definitivamente, de uma proposição delirante, um rematado disparate! O literato ou o artista são a antítese do empresário! Sem demérito para este último – que também é um profissional merecedor de respeito –, o objetivo daqueles é a criação, enquanto o do empresário é a produção ou distribuição. É por isso que o Prof. SYLVIO MARCONDES disse que o esforço do exercente de profissão intelectual se implanta na própria mente do autor. A eventual ocorrência de fatores de produção é, assim, puramente acidental – e não substancial, como na atividade empresarial.

Curiosamente, o autor do projeto se qualifica como de formação marxista. Um marxista ao avesso: transforma tudo em mercadoria!

P.S. (1) Relembro ao ilustre Professor ARMANDO ROVAI (Migalhas de 10.2.12), ex-presidente da Junta Comercial, que não sou apenas professor, mas também – e desde sempre – advogado militante, com muito orgulho. Por isso, também tenho "a barriga calejada nos balcões (dos fóruns, das Juntas Comerciais [onde com ele estive – et pour cause – por uma ou duas vezes, na época em que presidia aquela entidade], das empresas e demais repartições públicas ou privadas ou que tenham alguma relação com a dinâmica empresarial)". E também por essa razão, minhas críticas ao projeto não são somente de ordem doutrinária, mas de ordem prática, dada a total insegurança jurídica que o mesmo vai gerar, em função de suas gravíssimas e insuperáveis falhas. De outra parte, se esse projeto é um projeto para o Brasil, triste País! Vamos retornar à Idade Média, é o futuro sombrio do Direito Comercial.

P.S. (2) Esclareço a um desavisado leitor que fui professor da Faculdade de Direito da PUC-SP – que me é uma faculdade muito querida – durante nove longos anos. Também fui professor da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie durante um ano – e, apesar, desse pequeno período de docência, guardo igualmente as melhores recordações de lá. E sou professor da Faculdade de Direito da USP há onze anos. Acontece que não é de meu feitio ficar enfileirando cargos. Qualifico-me, assim, unicamente pelo atual – que com muito orgulho também exerço.

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1 Aonde quer que se encontre o grande JOSÉ MARIA EÇA DE QUEIROZ, estará ele com certeza tendo um frisson de arrependimento por não ter colocado a frase em questão na boca daquele famoso personagem d’O primo Basílio!

2 A mercancia, referida no art. 4º do Código Comercial, era estabelecida no art. 19 do Regulamento 737 de 1850.

3 Cf., a propósito, TULLIO ASCARELLI, O empresário, tradução de FÁBIO KONDER COMPARATO, na Revista de Direito Mercantil (RDM) 109, p. 183 e segs.

4 Irregularidade que traz as seguintes consequências, de acordo com o Código Civil e com o próprio projeto: “Art. 17. Além de outros impedimentos e sanções derivados da falta da inscrição no Registro Público de Empresas, o empresário individual irregular não pode: I – requerer a falência de outro empresário; II – requerer a recuperação judicial ou a homologação judicial de recuperação extrajudicial; III – autenticar seus livros e documentos no Registro Público de Empresas”.

5 Ó excelso CLÓVIS, mestre da concisão, ressuscitai, ressuscitai!

6 "(...) a participação do acionista no lucro da sociedade não se realiza, apenas, sob a forma de percepção de dividendo, mas de outras maneiras, segundo a sistemática legal de destinação dos lucros. O direito genérico do acionista consiste em não ser privado do benefício econômico gerado pela apuração de lucros no patrimônio social. Tal benefício econômico, no patrimônio individual dos acionistas, traduz-se, também, pelo aumento do valor patrimonial das ações de que são titulares, ainda que não aumentado o capital social" (FÁBIO KONDER COMPARATO, A constituição da reserva de lucros a realizar e o dividendo obrigatório, em Novos ensaios e pareceres de direito empresarial, Forense, Rio, 1981, p. 152, destaques nossos).

7 Poderia dar-se o caso de qualquer sociedade (que não as por ações) registrar-se, então, no Registro Civil de Pessoas Jurídicas e, a partir daí, adquirir personalidade jurídica? Seria por aí o tortuoso caminho em favor dos cartórios de Registro Civil?

8 Cf. PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, tomo 5, RT, 4ª ed., § 596, ns. 7 e 8, p. 378-380; e, antecipando a solução dada pelo Código Civil de 2002 à sociedade em comum, Tratado...cit., tomo 49, 3ª ed., RT, 1984, § 5.176, n. 3, p. 66. Cf., outrossim, SYLVIO MARCONDES, Problemas de Direito Mercantil, Max Limonad, 1970, p. 98-99.

9 Sob o seguinte – e manifestamente despropositado! – argumento, constante da "Justificação" do projeto: "Relativamente ao direito cambiário, além da regulação dos títulos eletrônicos, eliminando lacuna na ordem jurídica nacional, o projeto de Código Comercial importará o adequado cumprimento de uma Convenção Internacional, assinada pelo Brasil, ainda na década de 1930 – a Convenção de Genebra para a adoção de uma lei uniforme sobre Letra de Câmbio e Nota Promissória. Até hoje, esta Lei Uniforme não foi introduzida regularmente no direito nacional (isto é, com a devida tramitação no Poder Legislativo, aprovação da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, conforme previsto na Constituição), sendo matéria precariamente disciplinada por mero decreto do Poder Executivo, baixado em 1966"!!! (destaques nossos). Passados mais de 45 anos e já tendo o STF se pronunciado longamente sobre a matéria, alguma disputa séria e racional sobre se a Lei Uniforme integra o nosso ordenamento pode mesmo existir?

10 Esclareço que também não considero uma tal sociedade como sociedade empresária, pelas justificativas apresentadas no texto. Apenas ressalto a absolutamente injustificável diferença de tratamento.

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*Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França não é jurista; é Professor Doutor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP e advogado.




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