Responsabilidade civil e segurança pública
Rui Stoco*
Surge então a indagação óbvia que todos fazem: se ao Estado cumpre proteger seus administrados a falha ou omissão dessa proteção enseja sua responsabilidade?
Aliás a questão não é nova, nem o tema posto é inédito. Vem sendo exaustivamente debatido pela doutrina.
A verdade é que o ponto sensível da controvérsia em torno dos problemas da responsabilidade, são os casos de ação ou falta de providências do serviço. É o que já se chamou de inércia da Administração na execução de serviços públicos que visam a segurança da população e dos usuários (Pierre Montané Dela Roque. L’inertie des pouvoirs publics. Paris, 1950).
Nesses casos, a responsabilidade se aproxima da culpa, pela omissão em tomar as providências exigidas para a segurança do serviço” (Themístocles Brandão Cavalcanti, voto proferido no julgamento do RE 61.387, da 2.ª T. do STF, j. 29.5.68, RDA 97/177), hipótese em que caberá à vítima provar a falta do serviço, quer dizer, a culpa, em sentido lato, da Administração Pública.
Dessume-se, portanto, que a distinção entre as duas teorias reside nos fundamentos que as sustentam, devendo-se reconhecer que a responsabilidade do Estado poderá ser objetiva ou subjetiva, dependendo da hipótese configurada, já que para a maioria dos autores, como enfatiza Leila Cristina Garbin Arlanch (Responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado por danos decorrentes de planejamento urbanístico e licenças urbanísticas, RT 677/43), há abrigo jurídico para as duas teorias, como se infere das disposições constantes do Código Civil e da Constituição Federal e, certamente, campos de aplicação diversos.
Essa, portanto, a solução mais adequada quando se cuida da responsabilidade do Estado.
Aliás, o Colendo Supremo Tribunal Federal, mais de uma vez, decidiu que, em se tratando de ato omissivo do Estado, deve o prejudicado demonstrar a culpa ou o dolo (Rel. Min. Marco Aurélio, RTJ 164/309, e Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 27.2.1998, p. 18).
Em voto lapidar proferido nesse Colendo Sodalício, o Ministro Sepúlveda Pertence professorou:
“Parece dominante na doutrina brasileira contemporânea a postura segundo a qual somente conforme cânones da teoria subjetiva, derivada da culpa, será admissível imputar ao Estado a responsabilidade pelos danos possibilitados por sua omissão. Sustentada por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, a tese, herdada e desenvolvida por Celso Antônio, tem colhido adesões de tomo (Maria Sylvia Z. Di Pietro, Sérgio de Andréa Ferreira, Odília da Luz Oliveira, Sérgio Cavalieri Filho, Lúcia Valle Figueiredo e Rui Stoco). Ora, se parte dessa visão, a mim parece claro que a fonte de regência da hipótese, que se deu por concretizada na espécie, não é o art. 37, § 6.o, da Constituição – que diz com a responsabilidade objetiva do Estado, à qual basta a relação de causalidade entre a ação do agente público e o dano – mas, sim, as normas ordinárias da responsabilidade subjetiva, a começar do art. 15 do Código Civil [atual art. 43]” (refere-se ao Código Civil de 1916). (Parte do voto proferido no RE 283.989-2, j. 28.05.2002, RT 804/166).
Dessa visão subjetivista se aproxima acórdão tendo como relator o Ministro Moreira Alves, no RE 85.079 (RTJ 87/944).
Colhe-se ainda importante julgado da Suprema Corte:
“Tratando-se de ato omissivo do Poder Público, a responsabilidade civil por tal ato é subjetiva, pelo que exige dolo ou culpa, numa de suas três vertentes: negligência, imperícia ou imprudência, não sendo, entretanto, necessário individualizá-la, dado que pode ser atribuída ao serviço público, de forma genérica, a faute du service dos franceses. Ação julgada procedente, condenado o Estado a indenizar a mãe do presidiário que foi morto por outro presidiário, por dano moral. Ocorrência da faute du service” (STF – 2.ª T. – RE 179.147-1 – Rel. Carlos Velloso – j. 12.12.1997 – DJU 27.02.1998, p. 18).
É fato notório que a criminalidade está exacerbada e fora de controle. Não menos certo que o Estado não mais consegue realizar o seu papel e atingir o objetivo de segregar aqueles que não mais podem, nem merecer viver em sociedade, nem mesmo de manter a criminalidade em níveis suportáveis.
Cabe obtemperar que ninguém desconhece que a prevenção e repressão ao crime; a polícia preventiva e judiciária, são atribuições do Estado. A ele cabe zelar pelo bem estar da comunidade.
O poder de polícia do Estado define-se pelo fim que tem em mira, e que é o de assegurar a tranqüilidade (ausência de riscos de desordem), a segurança (ausência de riscos de acidentes) ou a salubridade pública (ausência de riscos de moléstias) (cf. Laubadère. Traité élémentaire de droit administratif. 3.ª ed. 1963, p. 539).
Se não cumpre esse mister quando devia e podia, terá ocorrido falha do serviço.
Portanto, como acentuou Celso Antônio Bandeira de Mello, “é necessário que o Estado haja incorrido em ilicitude, por não ter acorrido para impedir o dano ou por haver sido insuficiente neste mister, em razão de comportamento inferior ao padrão legal exigível”.
E acrescenta:
“Não há resposta a priori quanto ao que seria o padrão normal, tipificador da obrigação a que estaria legalmente adstrito. Cabe indicar, no entanto, que a normalidade da eficiência há de ser apurada em função do meio social, o estádio de desenvolvimento tecnológico, cultural, econômico e da conjuntura da época, isto é, das possibilidades reais médias dentro do ambiente em que se produziu o fato danoso. Como indício destas possibilidades há que levar em conta o procedimento do Estado em casos e situações análogas e o nível de expectativa comum da sociedade (não o nível de aspirações), bem como o nível de expectativa do próprio Estado em relação ao serviço increpado de omisso, insuficiente ou inadequado. Este último nível de expectativa é sugerido, entre outros fatores, pelos parâmetros da lei que o instituiu e regula, pelas normas internas que o disciplinam e até mesmo por outras normas das quais se possa deduzir que o Poder Público, por força delas, obrigou-se, indiretamente, a um padrão mínimo de aptidão” (Ato administrativo e direitos dos administrados. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1981, p. 146).
E exemplifica:
“Ademais, solução diversa conduziria a absurdos. É que, em princípio, cumpre ao Estado prover a todos os interesses da coletividade. Ante qualquer evento lesivo causado por terceiro, como um assalto em via pública, uma enchente qualquer, uma agressão sofrida em local público, o lesado poderia sempre argüir que o ‘serviço não funcionou’. A admitir-se responsabilidade objetiva nestas hipóteses o Estado estaria erigido em segurador universal! Razoável que responda pela lesão patrimonial da vítima de um assalto, se agentes policiais relapsos assistiram à ocorrência inertes e desinteressados ou se alertados a tempo de evitá-lo omitiram-se na adoção de providências cautelares. Razoável que o Estado responda por danos oriundos de uma enchente se as galerias pluviais e os bueiros de escoamento de águas estavam entupidos ou sujos, propiciando o acúmulo de água. Nessas situações, sim, terá havido descumprimento do dever legal na adoção de providências obrigatórias. Faltando, entretanto, este cunho de injuridicidade, que advém do dolo, ou da culpa tipificada na negligência, na imprudência ou imperícia, não há de cogitar de responsabilidade pública” (ibidem, p. 147).
José Cretella Júnior alerta e posiciona-se no sentido de que: “se os responsáveis pela manutenção da ordem pública tivessem de tomar uma série de medidas de extrema prudência cada vez que exercessem autoridade contra os administrados, reprimindo-lhes os atos considerados nefastos, a interferência chegaria tarde quando os danos já se tivessem concretizado. Por isso, diversas legislações consagram o princípio da irresponsabilidade do poder público por atos de polícia administrativa ou judiciária, a não ser que tenha havido culpa grosseira ou abuso injustificado do agente. São comuns os casos em que, perseguindo malfeitores ou contrabandistas, a polícia tenha de fazer disparos com armas de fogo, atingindo, por aberratio ictus, transeuntes que nada têm a ver com a perseguição, ou, então, hipóteses de pessoas que não se detêm quando sentinelas dizem o ‘alto lá’, sendo atingidas por disparos: pessoas que, diante das barreiras que cercam as cidades ou se erguem nas fronteiras, ou diante de quartéis, não obedecem ao aviso dos guardas. Nestes casos, há presunção de irresponsabilidade do agente público, por um lado, reprimindo-se apenas o caso evidente de abuso ou excesso; por outro lado, já que se trata de arma de fogo, de engenho de alta periculosidade, basta que a vítima, não diretamente envolvida no caso, mas simples transeunte, prove a imprudência ou imperícia do agente policial” (O Estado e a obrigação de indenizar. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 123-124).
Mas a questão está longe de ser resolvida. O Estado, como guardião de cada cidadão, está falido, pois não mais consegue atingir o objetivo e cumprir a missão que lhe cometeu a Magna Carta ao enunciar que “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio...” (art. 144).
Não há – força reconhecer – como responsabilizar o Estado pela má atuação das autoridades constituídas, Polícia preventiva e repressiva, Ministério Público e Poder Judiciário, ou pela carência de verbas que permitam maior contingente policial, ou pelo reduzido número de presídios perante o avantajado número de condenados criminalmente ou por culpa anônima da Administração.
Se nessas hipóteses for possível vislumbrar nexo, próximo ou remoto, de causa e efeito entre o dano e a omissão ou carência do Estado para manter a segurança dos cidadãos, também será possível sustentar a existência de causas excludentes da responsabilidade, como a força maior, caracterizada, por exemplo, pela absoluta impossibilidade orçamentária, insuficiência de contingente policial, número reduzido e insatisfatório de membros do Ministério Público ou do Judiciário, carência de foros judiciais nos mais longínquos rincões e outras causas invencíveis.
A jurisprudência, unânime e pacífica pende para essa solução, como se verifica nos julgados abaixo:
“A alegada falta de policiamento no local onde ocorrido assalto não acarreta responsabilidade civil do Estado, eis que este só responde pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, nos termos do § 6.° do art. 37 da CF. Se o roubo não foi atribuído aos policiais, nem se omitindo estes, posto que não chamados a intervir, não há que se falar em indenização” (TJSP – 2.ª C. – Ap. – Rel. Urbano Ruiz – RT 672/110).
Responsabilidade civil do Estado. Morte de cidadão em via pública, em conseqüência de assalto. – “A tese da irresponsabilidade do Estado já está proscrita nas legislações da grande maioria das nações, haja vista que a culpa, existente no direito privado, ganhou novos domínios, fazendo com que a responsabilidade dos Estados, prevista nos Códigos, passasse a integrar o texto constitucional, como ocorreu no Brasil, não se podendo, porém, aceitar a tese do risco integral, gerador de brutalidades, capaz de levar a abusos e iniqüidades. O art. 37, § 6.°, da CF não responsabilizou objetivamente a Administração por atos predatórios de terceiros. O Estado somente poderá ser responsabilizado se a vítima demonstrar a falta de serviço ou a omissão dos agentes públicos, não bastando meras referências acerca do abandono da cidade. O julgador somente pode adotar a analogia em caso de omissão da lei” (TJRJ – 5.ª C. – Ap. – Rel. Miguel Pachá – j. 8.10.1996 – RT 738/394).
“A responsabilidade objetiva do Estado, prevista na regra constitucional da Carta Magna de 1988 (art. 37, § 6.º), somente se configura com relação aos danos causados diretamente pelos agentes do Poder Público. Não porém, quanto a furtos em vias e logradouros públicos. Desse modo, se o fato não foi atribuído a funcionário da administração, nem se agentes policiais assistiram à ocorrência inertes e desinteressados, tampouco foram alertados a tempo de evitá-lo, ausente está o nexo de causalidade, impondo o afastamento do dever reparatório do Estado” (TJRJ – 12.ª C. – Ap. 10.118/98 – Rel. Wellington Jones Paiva – j. 01.12.1998 – RT 767/356).
Mas o atual estado de insegurança e domínio dos espaços de liberdade pelos delinqüentes (assaltantes, matadores, traficantes e outros), quando um preso “ilustre” (repudiado por todos os Estados da Federação que não o quiseram em seu território), consegue manter a sociedade aterrorizada e comandar a atividade criminosa do interior de presídio tido como de segurança máxima, impondo o temor, o silêncio e o cárcere privado a cidadãos de bem; quando o arrojo e a certeza de impunidade os compele e incita a eliminar integrantes dos poderes constituídos, como Juízes de Direito, Delegados de Polícia, policiais e agentes da fiscalização, tem-se que admitir que o Estado faliu, está anômico, não cumpre a sua finalidade e não mais responde aos estímulos e, portanto, está incapacitado para reagir e proteger.
É um doente terminal.
Neste caso, é chegada a hora de repensar esse modelo e de estabelecer, no plano da responsabilidade civil, a socialização dos encargos, de modo que o Estado responderá e deverá reparar sempre, mas exigirá de cada um que se associe, obrigatoriamente a esse sistema socializado, contribuindo para a manutenção de um fundo securitário nacional de reparação de danos.
Esta é a reflexão que se coloca para os leitores do site “Migalhas” e uma convocação a todos os nobre integrantes dessa maravilhosa classe dos advogados, que são os verdadeiros precursores das teses que se apresentam inicialmente como pretensão, materializam-se como tendência e se consolidam como solução adequada.
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* Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo
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