Brasileiro morto no Big Ben
(Ou “O vacilo de Harry Potter”)
Paulo Sérgio Leite Fernandes*
Há muito brasileiro lá fora. Pequenos municípios de Minas Gerais são acometidos por uma neurose especialíssima. De repente, um moço se manda para os Estados Unidos, via México, e escreve, enaltecendo a aventura, embora a “coisa lá esteja preta”. Daí, outros e outras vão atrás. Uns morrem no caminho, outros voltam, alguns são presos, pouquíssimos são vencedores. A grande maioria fica na rua, catando lata, ou fazendo faxina em hotéis, como acontece no Japão. Mas vão. Dia 22 de julho, a loteria da morte pegou um deles, a exemplo do tijolo que caiu na cabeça de um passante, em Copacabana, rachando-lhe o crânio, ou do raio que matou um só durante pelada no campo de futebol na várzea. É assim mesmo. O defunto leva cinco tiros, arrasta-se nas alpargatas “melissa”, protege-se com chapéu-coco ou escorrega em casca de banana no meio-fio, indo desta para melhor. Os jornais mostram que houve passeata de brasileiros, embaixo do grande relógio, protestando e exigindo justiça. Desistam. Fora as escusas diplomáticas, tudo continuará igual, sendo possível que a municipalidade até pague o enterro e o caixão, suprindo, se a família exigir, o transporte do corpo para Minas Gerais.
O grande problema, no fim de tudo, é o brasileiro ter sido assassinado lá fora. Nacionalizamos nossos assassinos oficiais, inadmitindo a estrangeiros igual comportamento. Somos especialistas em balas perdidas perfurando as entranhas de inocentes nas favelas. Os policiais brasileiros vivem perdendo balas e, nem por isso, o povo se escandaliza. Nossos facínoras e até transeuntes sempre morrem enquanto resistem, portando, invariavelmente, armas sem numeração. Queremos, portanto, exclusividade absoluta no extermínio.
Não significa que estejamos satisfeitos com o acontecido. Choram bordões, choram primas, soluçam todas as rimas, sentimo-nos pessoalmente injuriados pela ofensa à brasilidade e sofremos muito. Escandalizamo-nos, sim, mas precisamos confessar uma espécie de anestesia verde-amarela em relação aos nossos assassinados. Queremos ter o privilégio do homicídio. Nossos mortos são carregados sem cerimônia alguma dentro de carrinhos de construção, aparecendo por fora só os pés enegrecidos de lama e cheios de calos produzidos pelos pedregulhos barranqueiros. Por outro lado, se os ingleses têm seu “BIG-BEN”, podemos exibir, com alguma sorte de orgulho, o relógio da Estação da Luz. Não sei se aquilo funciona (preciso verificar) mas seria ótimo ventilador se rodasse os ponteiros para marcar, no “bas-fond” paulistano, ocorrências assemelhadas à saxônica. Às tantas horas da tarde, um sorumbático policial inglês disparou cinco tiros num brasileiro que não queria atrasar-se. Garcia Lorca morreu às cinco. Nossas vítimas costumam morrer nas madrugadas, mas a morte, aqui, tem preferência pelo ocaso. As invasões se dão, regra geral, quando o sol se põe. Dizem que é a hora em que morcegos começam a aparecer.
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*Advogado criminalista em São Paulo.
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