Migalhas de Peso

Brasileiro morto no Big Ben

Foi durante o dia. O BIG BEN tocou as badaladas que regulam, desde 1859, a vida do povo londrino. Não foi às cinco horas da tarde, como em Garcia Lorca, mas lhe atiraram na cara os milicos ingleses. A Inglaterra andava de luto.

28/7/2005

Brasileiro morto no Big Ben


(Ou “O vacilo de Harry Potter”)


Paulo Sérgio Leite Fernandes*

Foi durante o dia. O BIG BEN tocou as badaladas que regulam, desde 1859, a vida do povo londrino. Não foi às cinco horas da tarde, como em Garcia Lorca, mas lhe atiraram na cara os milicos ingleses. A Inglaterra andava de luto. Da explosão terrorista no metrô para a frente, qualquer coisa viva que se mexa depressa demais morre. O ministro saxão se desculpou, mas afirmou que é assim mesmo. Há terroristas suicidas, homens-bomba cheios de explosivos plásticos. As forças da lei precisam caçá-los antes que se explodam e levem consigo, misturados, braços, pernas, vísceras e cabeças de londrinos a caminho do trabalho, da cerveja ou do amor.

Há muito brasileiro lá fora. Pequenos municípios de Minas Gerais são acometidos por uma neurose especialíssima. De repente, um moço se manda para os Estados Unidos, via México, e escreve, enaltecendo a aventura, embora a “coisa lá esteja preta”. Daí, outros e outras vão atrás. Uns morrem no caminho, outros voltam, alguns são presos, pouquíssimos são vencedores. A grande maioria fica na rua, catando lata, ou fazendo faxina em hotéis, como acontece no Japão. Mas vão. Dia 22 de julho, a loteria da morte pegou um deles, a exemplo do tijolo que caiu na cabeça de um passante, em Copacabana, rachando-lhe o crânio, ou do raio que matou um só durante pelada no campo de futebol na várzea. É assim mesmo. O defunto leva cinco tiros, arrasta-se nas alpargatas “melissa”, protege-se com chapéu-coco ou escorrega em casca de banana no meio-fio, indo desta para melhor. Os jornais mostram que houve passeata de brasileiros, embaixo do grande relógio, protestando e exigindo justiça. Desistam. Fora as escusas diplomáticas, tudo continuará igual, sendo possível que a municipalidade até pague o enterro e o caixão, suprindo, se a família exigir, o transporte do corpo para Minas Gerais.

O grande problema, no fim de tudo, é o brasileiro ter sido assassinado lá fora. Nacionalizamos nossos assassinos oficiais, inadmitindo a estrangeiros igual comportamento. Somos especialistas em balas perdidas perfurando as entranhas de inocentes nas favelas. Os policiais brasileiros vivem perdendo balas e, nem por isso, o povo se escandaliza. Nossos facínoras e até transeuntes sempre morrem enquanto resistem, portando, invariavelmente, armas sem numeração. Queremos, portanto, exclusividade absoluta no extermínio.

Não significa que estejamos satisfeitos com o acontecido. Choram bordões, choram primas, soluçam todas as rimas, sentimo-nos pessoalmente injuriados pela ofensa à brasilidade e sofremos muito. Escandalizamo-nos, sim, mas precisamos confessar uma espécie de anestesia verde-amarela em relação aos nossos assassinados. Queremos ter o privilégio do homicídio. Nossos mortos são carregados sem cerimônia alguma dentro de carrinhos de construção, aparecendo por fora só os pés enegrecidos de lama e cheios de calos produzidos pelos pedregulhos barranqueiros. Por outro lado, se os ingleses têm seu “BIG-BEN”, podemos exibir, com alguma sorte de orgulho, o relógio da Estação da Luz. Não sei se aquilo funciona (preciso verificar) mas seria ótimo ventilador se rodasse os ponteiros para marcar, no “bas-fond” paulistano, ocorrências assemelhadas à saxônica. Às tantas horas da tarde, um sorumbático policial inglês disparou cinco tiros num brasileiro que não queria atrasar-se. Garcia Lorca morreu às cinco. Nossas vítimas costumam morrer nas madrugadas, mas a morte, aqui, tem preferência pelo ocaso. As invasões se dão, regra geral, quando o sol se põe. Dizem que é a hora em que morcegos começam a aparecer.
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*Advogado criminalista em São Paulo.






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