Gustavo Alves Pinto Teixeira
O uso indiscriminado do "bafômetro" e o equivocado crime de perigo abstrato
Por que nos olvidamos dos princípios constitucionais fundamentais de maneira tão pouco refletida? Será que os fins devem realmente justificar os meios?
Muito se fala da presunção de inocência e seu possível antagonismo com o teste do chamado "bafômetro". Há quem defenda que o uso de tal aparelho se destina a evitar que o arbítrio do agente da autoridade, do alto de sua fé pública, possa tolher direitos individuais e, também, que o cidadão se valeria deste mecanismo como forma de defesa.
Mas o que se vê na prática não é bem isso. A regra é invertida a não mais poder.
Façamos ligeiro exercício prático: seja parado em uma "blitz" da chamada Operação Lei Seca e, mesmo não aparentando qualquer indício que lhe pudesse atribuir a pecha de embriagado – sem qualquer indicação de ter consumido bebida alcoólica, lhe será feita "singela" proposta para assoprar o aparelho, já que "quem não deve, não teme".
O convite feito de forma aparentemente descontraída reverte-se em verdadeira inversão jurídica de princípios elementares do nosso ordenamento jurídico, impondo ao cidadão a obrigação de provar ao agente de trânsito a sua aptidão para conduzir o veículo. À mulher de César não basta ser honesta, tem de parecer honesta.
A Constituição Federal já concede a todos nós o benefício da inocência até prova contrária, respeitando-se o devido processo legal. Exigir o inverso é fazer ouvidos moucos da garantia posta para refrear os arroubos da máquina estatal. Notem que aqui estamos nos atentando aos comandos legais para que uma acusação no âmbito criminal possa minimamente prosperar.
Há enorme abismo entre as garantias elencadas nos procedimentos criminal e administrativo, e com razão, visto a gravidade das sanções impostas em cada um dos campos do Direito. E é diante das penas possíveis em cada seara que a celeridade do processo e as garantias individuais são determinadas. Quanto mais grave for a hipótese de punição estatal, mais garantias o mesmo Estado deve assegurar para que o cidadão comum consiga se defender e efetivamente ver seus direitos individuais reconhecidos.
Curvamo-nos aos anseios da coletividade de que devamos ter leis que eficazmente resguardem a vida no trânsito, ainda mais quando esta se vê ameaçada pelo fatal binômio álcool-direção, mas não podemos fazer tábula rasa de princípios como a presunção de inocência e o devido processo legal que, até onde se sabe, não são meras ficções e ainda estão em vigor.
Sabemos que já passamos do momento de incutir senso crítico aos nossos motoristas, mas por que o uso do chamado aparelho repressivo criminal nessa tarefa?
E se pudéssemos acreditar que ele é o mais acurado para tal fim, por que o utilizamos – ou ao menos tentamos – desrespeitando os seus próprios princípios basilares?
E aí, neste ponto, é que encontramos outro óbice: a crença de que o crime descrito no artigo 306 do CTB (clique aqui) melhor atenderia ao clamor social, se considerado de perigo abstrato.
Como muitos sabem, a 2ª turma do Excelso Pretório se manifestou recentemente sobre o tema – ainda que de forma não definitiva e muito menos em sua constituição plena – e decidiu, ao que se tem notícia, que a conduta descrita no artigo 306 do CTB seria de mero perigo abstrato. Tal conclusão, ao nosso sentir, data maxima venia, não parece ser a mais correta.
Com a nova redação ditada pela lei 11.705/08 (clique aqui), o artigo 306 da lei 9.503/97, Código Nacional de Trânsito, assim passou a definir o crime de dirigir sob os efeitos do álcool: "conduzir veículo automotor na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência".
Narrava o artigo 306, antes da modificação: "conduzir veículo automotor na via pública, sob a influência de álcool ou de substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem".
Parece claro que a intenção do legislador era de atribuir à conduta a figura do crime de perigo abstrato, uma vez que ele excluiu do novo tipo penal as expressões "sob influência do álcool" e "expondo a dano potencial a incolumidade de outrem", e limitou a configuração do delito apenas ao quantum de álcool encontrado no sangue.
Ora, tal entendimento gera uma presunção legal de que toda direção de veículo, por motorista advindo de ingestão de álcool, acima do limite determinado, passe a significar necessariamente perigo a incolumidade de outrem. Sabemos que tal situação é imprecisa, para se dizer o mínimo.
Não se pode admitir, sob a égide de um Estado Democrático de Direito, que a máquina judiciária seja acionada, levando-se um cidadão às barras dos Tribunais, para responder a um processo de natureza criminal, acompanhado de todos os sofrimentos e constrangimentos dele decorrentes, com base apenas em meras presunções, sem que haja a ocorrência de elementos indiciários mínimos para a deflagração da mencionada ação, ou seja, a existência de justa causa.
O professor Luiz Flávio Gomes1, ao dissertar sobre a tipicidade material, assevera que "sem uma concreta ofensa ao bem jurídico tutelado, resulta excluída a tipicidade entendida em sentido material, isto é, uma conduta, para ser materialmente típica, deve não só adequar-se à literalidade do tipo legal senão também ofender de forma relevante o bem jurídico protegido. Diante da ausência de lesão ou de perigo concreto de lesão ao bem jurídico não se pode falar em fato ofensivo típico".
Já Fernando Capez2 afirma: "é imperativo do Estado Democrático de Direito a investigação ontológica do tipo incriminador. Crime não é apenas aquilo que o legislador diz sê-lo (conceito formal), uma vez que nenhuma conduta pode, materialmente, ser considerada criminosa se, de algum modo, não colocar em perigo valores fundamentais da sociedade".
É de bom alvitre relembrar que o princípio da ofensividade foi acolhido por nossa Carta Magna, por força do inciso I, do art. 98, da Constituição Federal da República (clique aqui). Exige-se, pois, em qualquer infração penal, a existência de uma lesividade ao bem jurídico penalmente tutelado.
Luiz Flávio Gomes3 ainda apregoa: "uma vez que se concebe que a ofensividade é condição necessária, ainda que não suficiente, de intervenção penal e que o delito é expressão de uma infração ao Direito (lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido), tem relevância ímpar exigir do legislador a descrição do fato típico com uma ofensa a um determinado e específico bem jurídico".
Embora não conste na definição do tipo do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro o "estar sob a influência de álcool", é inafastável a conclusão de que tal influência faça parte do tipo penal, pois seria um absurdo tê-la na infração administrativa (art. 165 do CTB), que é o menos, e não a ter no crime, que é o mais.
Aliás, para não nos alongarmos mais no tema que já é palco de discussões acaloradas, sugere-se a seguinte ponderação: resguardar para a seara criminal tão-somente aquelas situações em que tenha existido real e concreto resultado danoso, deixando para o âmbito administrativo a conduta meramente de perigo abstrato, que poderá ser passível de inúmeras medidas cautelares determinadas pelo órgão de trânsito competente, como apreensão de carteira de habilitação por prazo determinado, reciclagem do condutor em aulas práticas e teóricas, entre outras.
Assim, firmamos a convicção de que a educação no trânsito possa ser transmitida aos cidadãos de forma pedagógica e não somente punitiva, primeiro passo para alcançarmos a tão almejada conscientização dos deveres dos motoristas, sem que nos desfaçamos de princípios constitucionais inerentes a um Estado Democrático de Direito.
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1 Em "Direito Penal", Edit. RT, 2007, vol. I, pág. 515, depois de afirmar, na página 510, que "a lesão ou o perigo concreto de lesão ao bem jurídico faz parte da tipicidade material".
2 Em "Princípio da ofensividade no Direito Penal", Ed. RT, 2002, pág.55.
3 Em "Princípio da ofensividade no Direito Penal", Ed. RT, 2002, pág.55.
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*Gustavo Alves Pinto Teixeira é advogado criminal do escritório Silvio & Gustavo Teixeira Advogados Associados. Membro da Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativas da Ordem dos Advogados – CDAP – Seção Estado do Rio de Janeiro
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