A Lei de Responsabilidade Fiscal e a Emenda Constitucional nº 37
Ana Carolina Barbosa*
I - INTRODUÇÃO
A eficiência e responsabilidade na gestão da coisa pública são princípios básicos de qualquer estado de direito. Todavia, em um país de dimensões continentais e modelo federalista como o nosso, tornaram-se comuns desvirtuamentos desses princípios por parte dos administradores públicos, que comprometidos com objetivos casuístas e imediatistas e sem adequado mecanismo de controle de sua gestão, prejudicavam, muitas vezes, a administração de governos subseqüentes, em prejuízo de toda a população.
Por outro lado, o empresariado brasileiro tem sido submetido a uma carga tributária das mais pesadas que se tem notícia na história do país. Esse aumento da arrecadação tinha que ser acompanhado do adequado controle dos gastos públicos, o qual, necessariamente, deverá levar a uma melhoria das condições sociais do país.
Dentro desse contexto, procuraremos, no presente trabalho, analisar, criticamente, as diversas medidas que têm sido adotadas nesse sentido, bem como as contradições e eventuais falhas existentes no modelo posto até então.
Entendemos que a análise da atividade financeira da Administração Pública deve estar contextualizada dentro desse movimento de reforma do Estado. Sendo assim, faremos uma abordagem da Lei de Responsabilidade Fiscal, e as tentativas de minimizar a guerra fiscal. Por derradeiro, a Emenda Constitucional nº 37 de 12 de junho de 2002 e fixação de uma alíquota mínima para o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), como medida de contenção da guerra fiscal.
II - DO PACTO FEDERATIVO
A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu art. 1º, que a República Federativa do Brasil é “formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”.
O modelo de Estado Democrático de Direito instituído remete a uma aparente incongruência; qual seja, por um lado princípios do Estado de Direito (igualdade, liberdade, segurança...), que caracterizam um modelo de bloqueio, e por outro a exigência de democratização da sociedade, características de um Estado Social, politicamente ativo.1
Não obstante, a forma Federalista também encontra dificuldades de definição entre os constitucionalistas pátrios e estrangeiros, tendo em vista que o instituto é extremamente variável, e certamente deve ser adequado à situação cultural e estrutural de cada país.
No caso brasileiro o Estado não surgiu federativo, não houve um processo de associação política para formação dos Estados culminando com a formação da Federação, na verdade, o poder central assumiu a forma federativa e a partir daí foram determinadas as regras, tendo em vista a idéia de cooperação entre as unidades e o objetivo comum, qual seja a democracia e o desenvolvimento. Ressalta-se o entendimento da ilustre Prof. Misabel Abreu Machado Derzi:2
“...a doutrina vê no federalismo, como forma de assegurar a liberdade e promover a democracia, os fundamentos mais importantes e inafastáveis. A doutrina constitucional reconhece que o Estado Federal não cumpre apenas uma função histórica tradicional, de preservação das diferenças sociológicas, culturais, éticas e econômicas regionais ou locais. Em países, como no Brasil, em que ele resultou menos da pressão da realidade como um fato sociológico anteposto, e mais de uma decisão político-jurídica, passou a cumprir uma importante função adicional, que não pode ser negligenciada: a de configurar uma evasão do poder vertical e uma preservação da democracia.”
Neste contexto as unidades federadas que compõem a República brasileira possuem autonomia financeira, administrativa e política, de modo que cada ente possa exercer o poder estatal de maneira descentralizada, assim estabelece o art. 18, verbis:
“Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.”
Assim, a competência de cada ente foi determinada pela Lei Maior, e deverá ser exercida conforme as regras gerais do ordenamento jurídico.
No âmbito do Direito Tributário ressalta-se que cada ente é competente para estabelecer, recolher e gerir os recursos provenientes dos tributos de sua competência específica, em observância às normas gerais estabelecidas pela União através de lei complementar, e esta competência confere, ou pelo menos deveria conferir, receita suficiente, para que seja realizada uma boa administração pública, voltada às necessidades da sociedade local, contribuindo em última instância ao desenvolvimento global da Federação através da distribuição do excedente.
Ocorre que, principalmente no que diz respeito aos Municípios, percebe-se uma renúncia a este poder de tributar, e a subsistência destes se dá somente mediante o repasse de recursos provenientes da contribuição dos demais entes federados.
Desta forma, Municípios muitas vezes bem localizados e dotados de grande potencialidade acabam se sustentando às custas dos demais, extraviando recursos de outros Municípios que realmente necessitariam dos recursos provenientes do fundo especial.
Neste contexto percebe-se que a estrutura federalista está sendo fortemente alterada por instrumentos normativos diversos, no intuito de conter a guerra fiscal entre Estados-Membros (principalmente no âmbito do ICMS), e entre Municípios.
III - DA GUERRA FISCAL
A competição exercida entre os estados e municípios para servirem de sede para empresas de grande porte não é uma situação nova em nosso país, mas se intensificou de forma alarmante nas duas últimas décadas.
O Governo Federal vem disseminando esta política de incentivos fiscais de diversas formas, visando o desenvolvimento de determinadas regiões do país. Dentre os instrumentos fiscais utilizados ressalta-se o FINOR, no Nordeste, no Amazonas a FINAM, Isenção P/Zona Franca de Manaus, Suframa, no Espírito Santo (FUNRES), etc.
A implantação de uma política neoliberal, a globalização e os investimentos maciços do grande capital estrangeiro em economias emergentes como o Brasil, vieram intensificar a disputa entre Estados e Municípios para sediar empresas estrangeiras.
A denominação de "guerra fiscal" é devida às batalhas desempenhadas pelos governos no oferecimento de benefícios de toda ordem, principalmente fiscais, no intuito de seu território ser o escolhido para a instalação das empresas.
Entretanto, ressalta-se que a opção de uma empresa por determinado local nem sempre está ligada aos incentivos fiscais, uma vez que estes têm sido oferecidos de maneira uniforme, e sim à eficiência administrativa do local escolhido, à posição geográfica, e às boas condições de infra-estrutura e qualidade de vida.
O saldo positivo desta “Guerra Fiscal” tem sido a descentralização do desenvolvimento, ou seja, o crescimento de outras regiões que não tinham como concorrer com o Sudeste, proporcionando um aumento da oferta de emprego e conseqüentemente desencadeando o processo de horizontalização da economia.
Enquanto "sadia", esta disputa entre os estados, atrás dos investimentos, não deveria trazer problemas internos ao país. O problema é que as Administrações Públicas têm utilizados de mecanismos inconstitucionais para alcançarem seus objetivos, principalmente no que diz respeito a concessões de incentivos para certas empresas em total afronta ao princípio da isonomia contido no art. 150, inciso II da Constituição Federal.
No âmbito do ICMS o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou várias vezes acerca do tema. Pouco depois do advento da Constituição Federal de 1988 foram suspensos vários incentivos fiscais concedidos pelo Estado do Alagoas no julgamento da ADIMC 128, cujo Relator foi o Ministro Sepúlveda Pertence e as decisões posteriores sempre foram no sentido de condenar a redução de alíquotas do ICMS e a concessão de benefícios fiscais pelos Estados sem o arrimo dos Convênios, em afronta aos dispositivos constitucionais.
O repúdio à guerra fiscal foi explicitado no julgamento da ADIMC 2.021 (Relator Ministro Maurício Corrêa, j. 4.8.99, DJ 25.5.2001) onde fixou-se o entendimento de que qualquer prática levada a efeito por Estado-Membro que desonerasse o ICMS e que gerasse efeitos danosos aos demais Estados da Federação estaria contrária à Constituição Federal. Destaca-se o entendimento do Ministro Ilmar Galvão:
“Tenho por guerra fiscal qualquer medida unilateral posta em prática por um Estado, de natureza tributária, que possa acarretar prejuízo aos demais.
Indubitavelmente esta guerra fiscal pode ser observada também no âmbito dos Municípios, e é sob esta ótica que será desenvolvida a análise da Lei Complementar nº 101 e da Emenda Constitucional nº 37.
O ponto comum entre os mencionados instrumentos normativos é o objetivo de extirpar a guerra fiscal. Entretanto, os mecanismos utilizados pelo Estado para impedir a concessão de incentivos fiscais pelos demais entes federados acabam por infringir a autonomia inerente ao modelo Federalista implementado.
Destaca-se que para os Estados ou Municípios onde não existem indústrias, a concessão de incentivos fiscais seria instrumento fundamental para sua promoção, e a instalação de uma indústria atraída pela isenção, além de não implicar renúncia a arrecadação, promove o aumento desta por via indireta, na medida em que aumenta a renda e o conseqüente poder de compra, com a oferta de novos empregos.
O ideal seria que os Estados e Municípios tivessem inteira liberdade para dispor a respeito de seus tributos, o que, ademais, é uma decorrência lógica do próprio federalismo. Dessa forma os administradores poderiam demonstrar suas habilidades, não necessitando exclusivamente da atuação do Governo Federal no sentido de atenuar as desigualdades regionais.
Dignos de louvores, portanto, os governadores que, enfrentando todas as dificuldades apresentadas pelo jurídico, ainda estimulam, pelos meios ainda possíveis, a implantação, em seus territórios, de novas indústrias. Este é o meio mais eficaz de realizar a redução das desigualdades regionais que a Constituição preconiza.
O incentivo fiscal para empreendimentos novos é a melhor forma de promover o desenvolvimento econômico das regiões pobres do país, que é como dispõe a Carta Magna um de principais objetivos do federalismo (art. 3º, inciso II e III da CF/88) e assim reduzir as desigualdades econômicas regionais. Por isto mesmo, a rigor, as restrições trazidas pela lei complementar e pela Emenda Constitucional padecem de inconstitucionalidade, porque impedem que se realize a meta que, como acima explicado, é preconizada na Lei Maior enfática e repetidamente.
IV - LEI COMPLEMENTAR Nº.101/2000 E O TRATAMENTO DISPENSADO AOS INCENTIVOS FISCAIS
A Lei de Responsabilidade na Gestão Fiscal, Lei Complementar nº 101/2000, em vigor desde o dia 05 de maio de 2000 (data de sua publicação), reúne em um único veículo normativo normas de Planejamento, Orçamento, Receita, Despesa, Dívida Pública e Endividamento. É uma Lei que busca principalmente o Controle dos atos da Administração objetivando uma gestão fiscal responsável.
Uma gestão fiscal responsável se caracterizaria principalmente pela tentativa de diminuição da dívida acumulada, advinda de resultados negativos (déficits) acumulados em exercícios anteriores.
A Lei Fiscal visa combater o déficit criando normas e estabelecendo limites que impeçam a geração de novas despesas, controlem as despesas, determinando ajustes de compensação para a renúncia de receitas e exigindo critérios e condições para repasses entre governos e destes para instituições privadas.
Neste sentido, vale destacar o magistério do ilustre Prof. Ives Gandra Martins3:
“...a tônica dominante, por mim fartamente elogiada, era de que as despesas não devem superar as receitas; as projeções orçamentárias, em que o fenômeno da superação ocorra, devem ter fontes de financiamento compatíveis; a administração da dívida pública tem que ser sustentável, com previsão das fontes futuras de receitas, que não podem ser superdimensionadas; e os remanejamentos ou aumentos de despesas, tanto na proposta do Executivo para o Legislativo quanto na própria execução orçamentária, devem estar sempre na dependência da contrapartida de ingressos, financiados ou de receita própria, com o que a irresponsabilidade na gestão da coisa pública deve desaparecer, principalmente após a aprovação da lei referida no artigo 163.”
Sendo assim, o intuito da Lei Complementar 101/2000 é a gestão fiscal responsável, que deverá ocorrer mediante cuidadoso planejamento, cuja execução busque o equilíbrio das contas públicas, a prevenção de riscos, a correção dos desvios verificados em sua execução, o cumprimento das metas propostas, e principalmente a transparência de todos os atos da Administração.
A Lei de Responsabilidade na Gestão Fiscal foi editada para regulamentar os artigos 163, 165, 167 e 169 da Constituição Federal, que tratam das Finanças Públicas e dos Orçamentos.
Há expressa exigência de compatibilidade do Orçamento com os objetivos e metas fiscais. Foram proibidos créditos imprecisos ou dotação ilimitada. A dotação para investimentos será limitada para cada exercício financeiro, possibilitando um controle mais preciso.
Na Execução Orçamentária exige a Lei rigorosa análise quanto ao cumprimento das metas estabelecidas nos Anexos que acompanham a Lei de Diretrizes Orçamentárias e nos demonstrativos da Lei Orçamentária Anual. O cumprimento das metas e as receitas auferidas serão avaliados pelos Órgãos da Administração. O Poder Executivo promoverá automática limitação de empenho e de movimentação financeira sempre que constatar que a receita não atingiu as metas e que os resultados não poderão ser atingidos tal como previstos. Todos os Entes, Órgãos e Entidades sujeitos à Lei deverão promover automática limitação de empenho, sempre que a receita não atingir as metas propostas, até porque poderá ocorrer a suspensão total ou parcial de repasse de numerário pelo Poder Executivo, nessas situações. Uma vez restabelecido o cumprimento da meta (e em havendo receita disponível) será disponibilizado o numerário legalmente atribuído a cada Ente ou Órgão Público, que poderá livremente restabelecer os empenhos.
Com relação às Receitas, que é a parte que mais nos interessa neste trabalho, prevê a Lei a obrigatoriedade de instituição de todos os tributos cujas competências estiverem previstas na Constituição Federal. Para o caso do descumprimento desta norma, criou a lei uma penalidade: a vedação das transferências voluntárias.
A renúncia de receita somente poderá ocorrer se o montante da receita objeto de concessão do benefício fiscal não estiver computado no total das Receitas previstas para o exercício a que se refere (e para os demais onde produzirá efeitos); ou mediante a implementação prévia de medidas de compensação (que redundem em acréscimo de receita ao Ente Político: majoração de alíquota, de base de cálculo, ampliação da sujeição passiva, revogação de benefícios fiscais, etc.). As medidas de compensação serão exigíveis quando o valor decorrente da renúncia (ante a concessão do benefício fiscal) estiver contido no cálculo geral das Receitas previstas para o exercício em que for implantado o benefício.
De qualquer sorte, toda renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa de impacto na arrecadação.
Como se pode perceber a Lei de Responsabilidade Fiscal não pode ser considerada um instrumento adequado para combater a Guerra Fiscal, uma vez que ela não prevê que a renúncia de receita até então inexistente seria vedada.
A Lei determina a obrigatoriedade na instituição de todos os tributos, por todos os Entes Políticos, e esta questão não é pacífica na doutrina. A maioria dos doutrinadores entende que a competência tributária é exercida facultativamente pelo Ente Político, sendo indelegável e imprescritível seu exercício. Parcela dos tributaristas, no entanto, entende que em se tratando de bem público, o produto da tributação é indisponível, portanto, a instituição de todos os tributos e o exercício da competência tributária pode ser exigido do Legislador e do Administrador Público.
Da mesma forma, impõe a Lei a efetiva cobrança dos tributos, tanto na esfera administrativa quanto na judicial. Conseqüentemente, constituirá infração à Lei a não inscrição dos créditos tributários e não tributários em dívida ativa; a não emissão de certidão (título executivo extrajudicial) e o não ajuizamento da execução fiscal correspondente. Da mesma forma, constituirá infração à lei a ausência de defesa em processo judicial que implique em prejuízo ao erário.
Embora a Lei de Responsabilidade Fiscal contenha normas de questionável constitucionalidade (ante o rigor do legislador quanto às penalidades previstas para seu descumprimento, e ante algumas exigências que estão até a contrariar conceitos e princípios tributários) não podemos deixar de admitir que ela responde aos anseios da sociedade. A gestão fiscal responsável é a única que se espera do Administrador Público. O princípio da eficiência, inscrito no art. 37 da CF (desde a Emenda Constitucional nº19/98), está a exigir uma conduta coerente do Administrador quanto ao planejamento de suas ações, quanto ao cumprimento das metas propostas e contidas na Lei, quanto aos gastos públicos adequados às receitas, e quanto à divulgação dos relatórios de gestão fiscal responsável de forma a que toda a sociedade participe da Administração.
Ocorre que tanto a Lei de Responsabilidade Fiscal quanto às recentes alterações trazidas pela Emenda Constitucional nº37/2002, na tentativa de minimizar a Guerra Fiscal entre Estados-Membros e Municípios instituíram regras que agridem o modelo Federalista além de outros princípios básicos constitucionais, como será demonstrado.
Não há como se questionar a importância dos estímulos fiscais, sejam na forma de subsídios, incentivos, isenções, alíquotas zero, remissões, tanto para o desenvolvimento de uma região em particular como para o crescimento do país.
Os incentivos fiscais são um conjunto de normas, destacado das demais normas do ordenamento jurídico, cujo objetivo é o estímulo de uma atividade empresarial com vistas ao desenvolvimento econômico.
As isenções e demais incentivos fiscais concedidos através de convênios são sujeitos a determinadas regras que devem ser observadas pelo beneficiário, normalmente eles serão concedidos por prazo determinado.
Acerca dos incentivos fiscais destacamos José Souto Maior Borges4:
“Logo, ao instituir o programa de apoio ao desenvolvimento econômico estadual, a norma incentivadora coloca-se a serviço de um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a promoção do desenvolvimento econômico e recebe fundamento bastante de validade nos respectivos preceitos constitucionais, que não veiculam simplesmente normas, mas princípios e garantias constitucionais fundamentais, assim nomeados pela própria CF, no seu Título I. E se o incentivo é dado na Região Nordeste, p.ex., põe-se a serviço de uma política de redução das disparidades regionais, outro objetivo fundamental da federação (CF, arts. 3º,III, e 170, VII)”
Contudo, a concessão destes estímulos fiscais pela Administração Pública deve estar sempre aliada aos princípios constitucionais que a regem, nunca perdendo de vista a previsão orçamentária. Assim destaca o magistério de Ives Gandra Martins5:
“Todo o incentivo fiscal que não se vincule a uma receita programada, para o qual não haja qualquer projeção de gastos, ou seja, em que o custo municipal para sua concessão é zero, refoge a rigidez orçamentária à falta de elemento capaz de perturbar o equilíbrio entre receita e despesas publicas.”
Dessa forma a Administração Pública deve sempre atentar aos possíveis impactos causados pela concessão de incentivos, que ocorrerão com maior freqüência nos entes federados onde são instituídas empresas novas. No caso destes serem negativos perante o orçamento, é mister que se realize um controle mais rigoroso.
É exatamente neste sentido que dispõe o art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal, vejamos:
“Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa de impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto da lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:
I- demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;
II- estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado do ‘caput’, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.
§ 1º. A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.
§ 2º. Se o ato de concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de que trata o ‘caput’ deste artigo decorrer da condição contida no inciso II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso.
§ 3º. O disposto neste artigo não se aplica:
I- às alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incisos, I, II, IV e V do artigo 153 da Constituição, na forma do seu § 1º;
II- ao cancelamento de débito cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança.”
Analisando o ‘caput’ do dispositivo pode-se observar a preocupação do legislador com aqueles estímulos capazes de causar algum impacto orçamentário, ou seja, aqueles dos quais decorram renúncia de receita programada. Dessa forma, o artigo 14 não será aplicável aos estímulos fiscais ‘a custo zero’, na medida que eles não causarão nenhum impacto sobre a receita ou sobre o orçamento.
Ao pretender estabelecer regras para a concessão de benefícios fiscais no âmbito municipal, a lei complementar compromete o princípio constitucional da autonomia dos Municípios, inserto na Lei Maior em seu art. 30, inciso III:
“Art. 30. Compete aos Municípios:
.....
III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;”
Ora, tal preceito constitui verdadeiro direito público subjetivo e não pode de forma alguma ser suprimidos sob pena de violação ao Pacto Federativo.
Alguns autores ainda afirmam a inconstitucionalidade da Lei de Responsabilidade Fiscal, uma vez que esta estaria ferindo o Princípio da Igualdade, quando em seu art. 63 ela dispõe:
“Art. 63. É facultado aos Municípios com população inferior a 50.000 habitantes optar por:
I- aplicar o disposto no art. 22 e o § 4º do art. 30 ao final do semestre;
II- divulgar semestralmente:
a) (vetado)
b) o Relatório de gestão fiscal;
c) os demonstrativos de que trata o art. 53;
III- elaborar o Anexo de Política Fiscal do plano plurianual, o Anexo de Metas Fiscais, e o Anexo de Riscos Fiscais da lei de diretrizes orçamentárias e o Anexo de que trata o inciso I do art. 5º a partir do quinto exercício seguinte ao da publicação desta Lei Complementar.
§ 1º. A divulgação dos relatórios e demonstrativos deverá ser realizada em até 30 dias após o encerramento do semestre.
§ 2°. Se ultrapassados os limites relativos à despesa total com pessoal ou à dívida consolidada, enquanto perdurar esta situação, o Município ficará sujeito aos mesmos prazos de verificação e do retorno ao limite definidos para os demais entes.”
Conforme se observa, para os Municípios que possuem população inferior a 50.000 habitantes, foi dado tratamento diferenciado e bem menos rigoroso com relação aos incentivos onerosos.
Porém, esta exceção não infringe o Princípio da Igualdade, uma vez que a Carta Magna de 1988 veda à União, no inciso I do art. 151 “instituir tributo que não seja uniforme em todo o território nacional, ou que implique distinção ou preferência em relação a Estado, ao Distrito Federal ou a Município, em detrimento de outro, admitida a concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do País”. (grifos nossos)
Ora, a Lei de Responsabilidade Fiscal visa, sem dúvida nenhuma, o progresso dos Municípios, Estados, enfim, da Federação, e muitas vezes, o desenvolvimento econômico destas pessoas jurídicas de direito público pode ser alavancado pela concessão de incentivos, que atrairão investimentos, gerarão empregos e conseqüentemente receita, como já foi destacado anteriormente.
V - DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº37/2002: A FIXAÇÃO DE UMA ALÍQUOTA MÍNIMA PARA O IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA – ISSQN E A PROIBIÇÃO DE INSTITUIÇÃO DE BENEFÍCIOS FISCAIS.
A Emenda Constitucional nº 37 de 12 de junho de 2002 teve o condão de prorrogar a CPMF e em seu artigo 8º, alterou o art. 156 da Constituição Federal no que diz respeito ao Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza, verbis:
“Art. 88. Enquanto lei complementar não disciplinar o disposto nos incisos I e III do § 3º do art. 156 da Constituição Federal, o imposto a que se refere o inciso III do caput do mesmo artigo:
I – terá alíquota mínima de dois por cento, exceto para os serviços a que se referem os itens 32, 33 e 34 da Lista de Serviços anexa ao Decreto nº 406, de 31 de dezembro de 1968;
II – não será objeto de concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais, que resulte, direta ou indiretamente, na redução da alíquota mínima estabelecida no inciso I.”
Neste aspecto a proposta do Deputado Jutahy Júnior objetivou acabar com a Guerra Fiscal entre os Municípios, e esta intenção foi ressaltada pelo Relator Deputado Delfim Neto em seu parecer, vejamos:
“A Emenda é extremamente oportuna. É fato que diversos municípios fixam suas alíquotas do ISS em patamares muito baixos, como forma de atrair contribuintes para seus territórios. Esses Municípios beneficiam-se indevidamente da receita, graças a sua localização, prejudicando os Municípios onde efetivamente ocorre o fato gerador do imposto. A distorção fiscal é evidente, pois, globalmente, diminui a arrecadação tributária.
A fixação de alíquotas mínimas balizará o esforço de arrecadação dos Municípios, ensejando que, na lei de diretrizes orçamentárias federal, se possa condicionar as transferências voluntárias de recursos da União não apenas à comprovação de que o beneficiário instituiu, regulamentou e arrecada todos os tributos de sua competência como, no caso do ISS, que aplica, sem exceções, a citada regra.
Portanto, tendo em vista as distorções que se têm constatado na política tributária de diversos Municípios, geradoras de verdadeiros “paraísos fiscais”, no dizer do ilustre Autor da emenda em apreço, entendemos oportuno e conveniente dispor sobre a matéria, na forma do Substitutivo anexo.”
Ocorre que, para alguns Municípios a concessão de benefícios fiscais é a única alternativa para o desenvolvimento econômico, e a fixação de uma alíquota mínima somente beneficiaria os Municípios já industrializados, que também estariam impossibilitados de concederem benefícios fiscais na medida que já possuem em seu território grande parte das empresas prestadoras de serviços.
Sendo assim, tais determinações afrontam ao art. 3º, inciso II e III da CF/88, que colocam como objetivo da Federação a erradicação das desigualdades regionais e sociais e a garantia do desenvolvimento nacional.
A fixação de uma alíquota mínima e a proibição de concessão de benefícios fiscais pelos Municípios, instituídas pela Emenda Constitucional nº 37, ainda ferem a autonomia atribuída a estes entes federados garantida pelo art. 18 da Constituição Federal de 1988 e conseqüentemente o Pacto Federativo, considerado cláusula pétrea, em flagrante afronta ao inciso I, §4º do artigo 60 da Lei Maior, verbis:
“§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;”
Ora, o Congresso Nacional poderia, no exercício de seu poder constituinte derivado, introduzir emendas à Constituição, entretanto, não poderia alterar substancialmente a área constituída por cláusulas pétreas.
As matérias listadas pelo §4º, dentre elas a forma federativa de Estado, formam núcleo intangível da Constituição. Analisando as limitações a este poder reformador do Congresso Nacional, Gilmar Ferreira Mendes aponta que tais cláusulas de garantia traduzem um esforço do constituinte para assegurar a integridade da Constituição, obstando que eventuais reformas provoquem a destruição, o enfraquecimento ou impliquem profunda mudança de identidade, pois a constituição contribui para a continuidade da ordem jurídica fundamental, à medida que impede a efetivação do término do Estado de Direito democrático sob a forma da legalidade, evitando-se que o constituinte derivado suspenda ou mesmo suprima a própria constituição.6
Ademais, a fixação de uma alíquota mínima para o ISSQN, longe de acabar com a Guerra Fiscal entre os Municípios, dificultará ainda mais a administração dos recursos fiscais, num embate claro com as novas tendências legislativas que exigem uma postura cada vez mais rigorosa com relação ao fechamento das contas, assim como vimos com a Lei de Responsabilidade Fiscal.
A intenção da emenda parece-nos ser a de esvaziar ainda mais o poder dos governos municipais e, ao mesmo tempo, evitar que se altere a acumulação crescente de poder nas mãos da União.
VI - CONCLUSÕES
Como já dizia o saudoso mestre Aliomar Baleeiro7 “a atividade financeira outra não é senão a própria atividade administrativa disciplinada pelo direito específico, que lhe é peculiar”. Por outro lado, a vinculação das Ciências das Finanças ao Direito Financeiro assume feição umbilical, uma vez que uma e outra cuidam dos mesmos fenômenos, embora os contemplem de ângulos diferentes. Com efeito, da mesma forma que a estrutura constitucional e jurídica fornece material a ser analisado pela Ciências das Finanças, os legisladores se inspiram nas observações e lições de economistas e financistas para que a elaboração e a execução das normas jurídicas financeiras atinjam os fins da política legislativa do país.
Dentro desse contexto, procurou-se, no presente trabalho, abordar, em que medida as alterações legislativas estão contribuindo para a solução de nossos problemas institucionais, políticos e financeiros.
1) No que diz respeito à Lei de Responsabilidade Fiscal, ressalta-se sua importante função em tentar moralizar a Administração Pública, estabelecendo controles mais rígidos e uma participação cada vez maior da população na gestão da coisa pública. Sua observância certamente contribuirá para o desenvolvimento de todas as esferas administrativas.
2) Entretanto ressalta-se que o art.14 fere a autonomia dos Municípios colocando em risco o Pacto Federativo, que tem caráter de cláusula pétrea na Lei Maior.
3) A fixação de uma alíquota mínima e a proibição de concessão de incentivos fiscais pelos Municípios para o ISSQN, instituída pela Emenda Constitucional nº 37/2002, além de ofender a autonomia dos Municípios e as bases do modelo federalista de Estado, não terá o condão de dar fim às disputas entre os Municípios, disputas que podem, de certa forma, serem responsáveis para o desenvolvimento das regiões menos favorecidas.
Finalmente, com relação à problemática da Guerra Fiscal, enfrentada pelos Estados-membros e Municípios da federação, vimos que as soluções apresentadas pelo governo ainda são insuficientes e fundamentadas em bases errôneas.
As reformas são fundamentais, porém elas não podem ocorrer em confronto com direitos e garantias fundamentais, conquistados ao longo de tantos séculos de sofrimentos e batalhas, uma vez que os governantes têm a obrigação de zelar por eles e não contribuir para sua implosão.
A verdadeira justiça tributária consiste em cobrar de todos, sempre com moderação e observância das diretrizes citadas.
O cuidado e o controle da atividade administrativa e financeira do Estado, são essenciais ao atendimento das necessidades técnicas ou a universais de justiça, igualdade do ser humano que o direito busca realizar, mas que não são do domínio exclusivo dessa ou daquela ciência, porém fundamento ético comum a todas as demais.
VII - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALEEIRO, Aliomar. Curso de Direito Tributário. Ed. Forense, 11ª edição, Atualizada por Misabel de Abreu Machado Derzi.
BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Ed. Forense, 7ª edição, Atualizada por Misabel de Abreu Machado Derzi.
BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à ciência das Finanças. Ed. Forense, 15ª edição.
BASTOS, Celso Ribeiro. Emendas à Constituição de 1988, ed. Saraiva. São Paulo.
BORGES, José Souto Maior. Introdução ao Direito Financeiro. Editora Max Limonad, 1998, São Paulo.
BORGES, José Souto Maior. “A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e sua Inaplicabilidade a Incentivos Financeiros Estaduais”. Revista Dialética de Direito Tributário, nº 63, dezembro/2000.
CASSONE, Vittorio. Direito tributário. 10ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 1997.
CASTRO, Flávio Régis Xavier de Moura e (coord.). Lei de Responsabilidade Fiscal: Abordagens Pontuais – Doutrina e Legislação. Editora Del Rey, Belo Horizonte, 2000.
DERZI, Misabel Abreu Machado. “Reforma Tributária, Federalismo e Estado Democrático de Direito” in Revista da Associação Brasileira de Direito Tributário, Ano II, nº 3, Maio/Agosto. Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 1999.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. “Guerra Fiscal, Fomento e Incentivo na Constituição Federal”, in SCHOUERI, Luís Eduardo e ZILVETI, Fernando Aurélio (Coords.), Direito Tributário: Estudos em Homenagem a Brandão Machado, São Paulo, Dialética, 1998, pp. 275-177.
MACHADO, Hugo Brito de. Curso de Direito Tributário. 14ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1998.
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Pacto Federativo. Belo Horizonte, Mandamentos, 2000.
MARTINS, Ives Gandra. “Inteligência do artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000) – Estímulos sem Impacto Orçamentário não são pelo Dispositivo Abrangidos”. Revista Dialética de Direito Tributário nº 72, setembro/2001.
MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade: aspectos políticos e jurídicos. São Paulo: Saraiva, 1990.
REIS, Élcio Fonseca. Federalismo Fiscal: Competência Concorrente e Normas Gerais de Direito Tributário.Belo Horizonte, Mandamentos, 2000.
SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais, São Paulo, Malheiros, 4ª edição.
____________
1FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. “Guerra Fiscal, Fomento e Incentivo na Constituição Federal”, in SCHOUERI, Luís Eduardo e ZILVETI, Fernando Aurélio (Coords.), Direito Tributário: Estudos em Homenagem a Brandão Machado, São Paulo, Dialética, 1998, pp. 275-177.
2DERZI, Misabel Abreu Machado. “Reforma Tributária, Federalismo e Estado Democrático de Direito” in Revista da Associação Brasileira de Direito Tributário, Ano II, nº 3, Maio/Agosto. Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 1999.
3“Inteligência do artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000) – Estímulos sem Impacto Orçamentário não são pelo Dispositivo Abrangidos”. Revista Dialética de Direito Tributário nº 72, setembro/2001, p.139.
4“A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e sua Inaplicabilidade a Incentivos Financeiros Estaduais”. Revista Dialética de Direito Tributário, nº 63, dezembro/2000, p. 82.
5Ob. Cit., p. 141.
6MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade: aspectos políticos e jurídicos. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 95.
7BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à ciência das Finanças. Ed. Forense, 15ª edição, p. 2.
____________
*Advogada do escritório Homero Costa Advogados
______________