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Capitalização de juros

Toda e qualquer análise de negócio jurídico implica a verificação do cumprimento de uma série de regras legais, tais como aquelas referentes à sua validade, constantes do artigo 104 do Código Civil (agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável; forma prescrita ou não defesa em lei) e à sua formalização, contidas no artigo 109 do Código Civil (em negócio jurídico celebrado com cláusula de não valer sem instrumento público, este é da substância do ato).

20/7/2005

Capitalização de juros


Renato Sampaio Brígido*

Bruno Rotundo Gagliardi*

1. Análise do negócio jurídico:

Toda e qualquer análise de negócio jurídico implica a verificação do cumprimento de uma série de regras legais, tais como aquelas referentes à sua validade, constantes do artigo 104 do Código Civil (agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável; forma prescrita ou não defesa em lei) e à sua formalização, contidas no artigo 109 do Código Civil (em negócio jurídico celebrado com cláusula de não valer sem instrumento público, este é da substância do ato).

Além dessas, outras características do negócio jurídico são objeto de verificação a fim de confirmar se todos os aspectos negociados entre as partes foram atendidos. Assim, por exemplo, no caso de compra e venda de bens, é necessário identificar o bem a ser entregue, método de transporte, o preço e forma de pagamento do mesmo, etc. Dependendo da complexidade e magnitude do negócio jurídico, os aspectos que exigem cuidado em sua análise (do ponto de vista legal e negocial) começam a se desenvolver. O mesmo pode ser dito quanto àqueles contratos que possuem uma característica financeira entendo-se, neste estudo, por característica financeira, aquela situação em que há o desembolso de valores por uma parte a outra, criando-se uma dívida a ser paga no futuro. É o caso, por exemplo, do mútuo federatício, através do qual uma instituição financeira empresta recursos a um de seus clientes.

Da mesma forma que ocorre com contratos de compra e venda de bens, os contratos com características financeiras também apresentam características que lhe são próprias1. Invariavelmente, esses contratos conterão cláusulas dispondo a respeito do valor de principal a ser desembolsado pelo mutuante; como esse valor será desembolsado e se o desembolso está subordinado a condições suspensivas; qual o prazo para o pagamento da dívida; o índice a ser aplicado no cálculo da correção monetária, multas e juros moratórios (a serem pagos em caso de atraso no cumprimento das obrigações do mutuário), etc. Outro item, sempre presente nos contratos com características financeiras, corresponde aos juros remuneratórios, que abordaremos no item a seguir.

2. Juros remuneratórios:

Assim como qualquer outra empresa com fins lucrativos, o Banco (mutuante) busca ser bem remunerado pelos serviços e “produtos” que disponibiliza a seus clientes. Em outras palavras, e como não poderia deixar de ser, o Banco objetiva lucro. Especificamente em relação às operações de empréstimo, o lucro é obtido principalmente através da cobrança de juros (remuneratórios ou compensatórios) sobre o valor de principal do empréstimo. Cite-se, nesse sentido, Maria Helena Diniz: “os juros constituem o proveito tirado do capital emprestado e podem ser compensatórios, se representarem a renda ou o fruto do dinheiro mutuado, compensando o mutuante pela indisponibilidade do dinheiro, ou seja, pelo uso que dele fez o mutuário...”2.

Pode-se dizer, assim, que o valor de principal e juros compensatórios correspondem ao “preço” de um produto (empréstimo) que é vendido pelos Bancos a seus clientes, sendo que os juros compensatórios correspondem, em parte, ao lucro do Banco. Não se pode esquecer que o Banco, como qualquer outra empresa, incorre em custos para “fabricar” seus produtos. No caso do empréstimo, o Banco precisa captar recursos no mercado que, posteriormente, são repassados a seus clientes. Essa captação de recursos assemelha-se à compra de matéria-prima (nesse caso, recursos financeiros) a ser utilizada na elaboração de um bem (o empréstimo) e, da mesma forma que ocorre em outros setores da atividade econômica, o custo dessa “matéria-prima” é repassado ao consumidor (tomador do empréstimo). Uma das formas de captação de recursos por Bancos corresponde à emissão de títulos de dívida no mercado internacional, sobre os quais incidem juros e outros encargos a serem pagos pelos Bancos, que correspondem, assim, ao custo da “matéria-prima”. No mesmo sentido, é preciso ter em mente que o Banco também é onerado, no processo de captação de recursos, com tributos e despesas operacionais, que acabam por influenciar o preço do empréstimo. Tem-se, portanto, que os juros e encargos cobrados por um Banco ao disponibilizar recursos a seus clientes têm o objetivo de ressarci-lo das despesas que incorreu para tornar possível a concessão do empréstimo e, também, de gerar uma margem beneficiária (lucro) de sua atividade, sem a qual a mesma deixa de ser atrativa e, portanto, passaria a não existir.

O cálculo do valor do lucro leva, ainda, em consideração, uma série de fatores, como o prazo do empréstimo; a probabilidade do mesmo ser ou não pago; se o mutuário é uma pessoa (física ou jurídica) em quem o Banco pode confiar no que diz respeito à intenção de cumprir com suas obrigações e assim por diante, não podendo ser esquecida a máxima de que quanto maior o risco existente em uma operação, maior o lucro almejado através dela. Assim, os juros cobrados pelos Bancos são uma conseqüência normal de sua atividade e sua cobrança e exigência é legítima e esperada, da mesma forma que ocorre quando empresas de outros ramos de atividades procuram obter lucros através de sua manufatura ou prestação de serviços. Ressalte-se, inclusive, que esse preceito está contido no próprio Código Civil brasileiro (art. 591): “Destinando-me o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual”.

Isso não quer dizer, entretanto, que não existem parâmetros ou regras a serem observadas quando da contratação de operações que envolvam o pagamento de juros. Uma dessas limitações refere-se à proibição da prática conhecida como “capitalização de juros”, objeto do próximo item.

3. Capitalização de juros:

A capitalização de juros corresponde à prática através da qual juros são calculados sobre os próprios juros devidos. Tal prática foi proibida pela Lei de Usura (Decreto no 22.626, de 7 de abril de 1933) que, em seu artigo 4º dispõe que “é proibido contar juros dos juros; esta proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta-corrente de ano a ano”. Posteriormente, esse entendimento veio a ser confirmado pelo Supremo Tribunal Federal, através de sua Súmula de nº 121: “É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada”.

Estaria consolidado, então, o entendimento de que a capitalização de juros é proibida no sistema legal brasileiro. Porém, é necessário ressaltar, tal consolidação não foi pacífica no que diz respeito à aplicação dessa vedação a instituições financeiras, principalmente em razão da Súmula nº 596 do STF, que determinou que a Lei de Usura não se aplica às instituições financeiras: “As disposições do Decreto 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional”. O teor dessa Súmula deu margem a entendimentos de que a proibição contida no artigo 4º da Lei de Usura (vedação à capitalização de juros) não seria aplicável aos empréstimos concedidos por instituições financeiras e que, portanto, estariam elas livres para adotar tal prática.

Como não poderia deixar de ser, questionamentos a esse respeito foram feitos no Judiciário que terminou por entender que a Súmula 596 não exclui a proibição objeto da Súmula 121, inclusive em relação a instituições financeiras, pois refere-se (a Súmula 596) às “taxas de juros e aos outros encargos”, mas não ao anatocismo (cobrança de juros sobre juros). Esse o entendimento do Recurso Extraordinário no 100.336 – PE (1ª Turma)3, em dezembro de 1984 – em seu voto, o Relator (Sr. Ministro Néri da Silveira) diz que “na conformidade dos julgados que informam a Súmula 121, a proibição do anatocismo constitui ius cogens. Da proibição posta no enunciado não estão excluídas as instituições financeiras. A Súmula 596 não afasta a aplicação da Súmula 121, na espécie”. Outro julgado (novembro de 1989) corresponde ao Recurso Especial nº 1.285 – GO4, no qual o Relator (Sr. Ministro Sálvio de Figueiredo), dispôs que “...a Súmula 121 não está superada pela de nº 596. Na verdade, embora relacionadas ambas com juros e com o Decreto 22.626/33, apresentam nítida distinção ... Enquanto o enunciado nº 596 se refere ao art. 1º do Decreto 22.626/33, o verbete 121 se apóia no art. 4º do mesmo diploma, guardando sintonia com a regra que veda o anatocismo, ou seja, juros de juros ou capitalização de juros”.

4. Exceções à vedação do anatocismo:

A regra sobre ser proibido cálculo de juros sobre juros possui exceções, que correspondem àqueles casos permitidos em lei específica. Assim, além da hipótese prevista na própria Lei de Usura (parte final do artigo 4º, referente aos saldos líquidos em conta-corrente, de ano a ano), admite-se a capitalização de juros em casos envolvendo cédulas de crédito rural, industrial e comercial. Nesse sentido, a Súmula nº 93 do Superior Tribunal de Justiça: “A legislação sobre cédulas de crédito rural, comercial e industrial admite o pacto de capitalização de juros”.

Nada impede que outras exceções à proibição da capitalização dos juros sejam instituídas, tal como foi feito em relação às Cédulas de Crédito Bancário – a Lei 10.931, de 02 de agosto de 2004, dispõe, em seu artigo 28, § 1º, sobre a possibilidade de ser pactuada a capitalização dos juros sobre a dívida representada no respectivo título. Como essa exceção foi criada através de lei específica, é ela, em princípio, uma exceção legítima à regra que proíbe o anatocismo.

Por fim, cabe ressaltar que o artigo 591 do Código Civil de 2002 supra citado permite a capitalização anual em mútuos de fins econômicos. Será necessário verificar, com o tempo, como doutrina e jurisprudência se portarão com relação a essa ressalva.
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1As características aqui listadas não são exclusivas de contratos com características financeiras e nem sempre obrigatórias. Dependendo da estrutura de uma operação financeira ou, senão, dos termos da negociação entre as partes, essas características podem ser significativamente alteradas ou, mesmo, eliminadas.
2Maria Helena Diniz in “Curso de Direito Civil Brasileiro, 3º volume, Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais”, Ed. Saraiva, 17ª Edição (2002).
3Ementa: Juros. Capitalização. A capitalização semestral de juros, ao invés da anual, só é permitida nas operações regidas por leis ou normas especiais, que expressamente o autorizem. Tal permissão não resulta do art. 31 da Lei 4.595, de 1964. Decreto nº 22.626/1933, art. 4º. Anatocismo: sua proibição. Ius cogens. Súmula 121. Dessa proibição não estão excluídas as instituições financeiras. A Súmula 596 não afasta a aplicação da Súmula 121. Exemplos de leis específicas, quanto à capitalização semestral, inaplicáveis à espécie. Precedentes do STF. Recurso extraordinário conhecido, por negativa de vigência do art. 4º, do Decreto nº 22.626/1933, e contrariedade do Acórdão com a Súmula 121, dando-se-lhe provimento (RTJ do STF, v. 124/616).

4Ementa: Direito Privado. Juros. Anatocismo. Vedação incidente também sobre instituições financeiras. Exegese do enunciado nº 121, em face do nº 596, ambos da súmula do STF. Precedentes da Excelsa Corte. A capitalização de juros (juros de juros) é vedada pelo nosso direito, mesmo quando expressamente convencionada, não tendo sido revogada a regra do art. 4º do Decreto 22.626/33 pela Lei nº 4.595/64. O anatocismo, repudiado pelo verbete nº 121 da súmula do Supremo Tribunal Federal, não guarda relação com o enunciado nº 596 da mesma súmula. (Revista do STJ, ano 3, nº 22, junho de 1991).
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*Advogados do escritório Felsberg, Pedretti, Mannrich e Aidar - Advogados e Consultores Legais









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