Edson Vidigal
Viva a noite
Mas quando é chegada sua hora, assim que o sol despenca em cansaços, ela se veste inteirinha de noite para sua noitada.
Então, ela, a noite, reserva os espaços próprios para os boêmios, para os notívagos, para os amantes, e até para os ladrões, e segue em suas penumbras às instigações mais caprichosas, poéticas, líricas, devassas, libertas ou encabuladas.
Quando a lua se faz cheia sombreando o clima que vai ficando do passear das nuvens, a noite desfila prateada em movimentos lúdicos como se espalhasse sobre os telhados, sobre as ladeiras, sobre os despenhadeiros, sobre os gramados, sobre as lagoas, sobre os rios e mares pedaços bem significativos dos seus arranjos assim, digamos, florais.
Ela, a noite, é assim generosa também com as canções, instiga os seresteiros, semeia alegria, inspira amores e sonhos acordados com paixões incansáveis e já bem antigas de tão inalcançáveis.
Há poetas bêbados de tantas inspirações que ela, a noite, instila em suas vagueações. Há esperanças sonâmbulas se diluindo em cartas por aquele amor que nunca chega e, se aparece, nunca aquiesce.
Ela, a noite, já parecendo um tanto cansada, mas sem perder a pose de dona de si mesma, ou seja, de dona noite, desfila seus encantos e estímulos em meio à brisa que o atlântico sopra para uma vetusta rua, quando de repente um poeta, violão em punho, acorre a uma janela e anuncia – trago esta felicidade que achei na minha rua...
Mesmo os sempre cansados, os indispostos, os que têm pressa em dormir mais cedo, mesmo os desalentados, os insossos para qualquer alegria, os que nem são esperados porque nunca sequer saíram de si mesmos para lugar nenhum, sabem da força e do poder que tem a noite sobre todas as coisas no mundo toda a noite.
Os postes das avenidas e das ruas, uns só na amostragem com suas lâmpadas quebradas, outros derramando luz tímida, conspiram como se convocassem transparências às peripécias da noite.
Os ratos, os morcegos, as formigas, mas também as corujas, ao que parece se dão bem com a noite. É muito extenso conquanto imensurável o seu manto protetor.
Todos precisam de alguma treva para se esconder de alguma coisa ou até mesmo para descansar por algum instante a sua própria vergonha.
É injusto comparar com a noite um tempo, por menor que o tenha sido, de ditadura. Não cabe equiparar à noite as trevas em que um Povo é mergulhado nas iniquidades de uma oligarquia.
A noite não tem nada a ver com a pobreza das pessoas, com a miséria nas comunidades, com o atraso social nas cidades. Isto é coisa do despreparo, da falta de compromisso, da insensibilidade, do egoísmo, da vaidade, sempre latentes nos corações gelados de alguns homens.
A noite é ela só em suas fragrâncias e sombras, nas cumplicidades telúricas que acoberta, nas inspirações e nas liberdades que enseja.
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*Edson Vidigal é ex-presidente do STJ e professor de Direito na UFMA
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