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Água e meio ambiente: da escassez ao controle de sua qualidade

As catástrofes ecológicas estão se multiplicando. Dilapidamos os recursos do planeta. Gangrenado pela poluição, em todos os gêneros, cada dia mais estamos sentindo, percebendo e constatando mais desastres.

12/7/2005


Água e meio ambiente: da escassez ao controle de sua qualidade


Jayme Vita Roso*

I - A escassez

1. As catástrofes ecológicas estão se multiplicando. Dilapidamos os recursos do planeta. Gangrenado pela poluição, em todos os gêneros, cada dia mais estamos sentindo, percebendo e constatando mais desastres. Os Estados, na sua grande maioria, cada vez mais retardam a tomada de soluções e a atuação, para que sobrevivam nossos filhos. Por quê? Enormes são vagalhões de políticos, pessoas influentes nas sociedades, cientistas, banqueiros, financistas, industriais, que fazem pressões políticas, econômicas e técnicas – como veremos no texto – para bloquear a tomada de decisões e de práticas concretas de um mundo que, quiçá, poderá sobreviver. Por quê?

Soluções claras, acessíveis e economicamente factíveis necessitam que as alternativas se mostrem possíveis. Para isso é preciso ter a coragem de se pronunciar, de se indignar, de denunciar, de se engajar nos movimentos que surgem para transformar mentalidades, antes de se pretender transformar o mundo.

Aí nos vem a questão da água. Dividiremos este artigo em duas partes. Na parte inicial, mostraremos como alguns renomados personagens contemporâneos se pronunciaram sobre esse recurso natural; na segunda, as últimas decisões políticas, materializadas em ordenamentos sobre a água in genere. Nessa, indicaremos as virtudes e os defeitos que encontramos em a novel legislação: em suma, a rule of law, mas sua atuação, para ser eficaz.

2. A parte inicial, com artigos e depoimentos, publicados na obra intitulada “Stop”1.

2.1. Cuidam os autores de, através de fotos tomadas em vários cantos do mundo, mostrar as conseqüências do esgotamento das reservas de água, no mundo (p. 184);.a poluição da água doce (190); a poluição dos oceanos (228) e os depoimentos de verdadeiras tribunas sobre o tema água, oferecidos por Maude Borlow, John Stanber e Roberto Kennedy Jr. (p. 254).

2.2. Em Stop, o ar é estudado e fotografado, exacerbando as conseqüências da poluição do gás carbônico, da poluição química e das radiações; a terra, com o esgotamento dos solos, o desflorestamento, a poluição genética e a bio-invasão terrestre; por fim, os animais e a conservação da biodiversidade (considerado o maior desafio deste século), porque, “para a criança... menos importa saber do que sentir”.

3. Voltando à água, que nos dizem os autores, sobre o esgotamento das reservas de água?

3.1. Maude Barlow, Presidente do Conselho Canadense, o maior grupo de pressão desse país, inicia o seu texto com a chamada Fortune Magazine, que produz calafrios: “a água promete ser no século XXI aquilo que o petróleo foi no século XIX – uma matéria-prima preciosa que determina a riqueza das nações”. Suas palavras são candentes, uma vez que se trata de um ativista totalmente descompromissado com grupos e faz um brado de altera realmente importante: “a água como matéria-prima é de tomar o partido inverso. A água deve ser declarada e compreendida, no presente e no futuro, como propriedade comum de todos. No mundo onde tudo está em curso de privatização, devem os cidadãos estabelecer um perímetro claramente definido ao redor desses espaços, que são, por sua vez, consagrados para a vida e necessários à sobrevivência do planeta. Simplesmente, a água é um direito do homem e um bem de interesse geral, que deve ser protegido em todos os níveis, por todos os governos de todas as épocas”.

3.2. No tocante à desinformação da sociedade quanto ao problema da água, John Stauber, fundador da PR Watch e criador de um neologismo greenwashing ou a desinformação verde, diz que essa palavra, por enquanto, ainda é desconhecida da maioria das pessoas e das entidades. Trata-se, na verdade, de uma fórmula derivada de lavagem que se aplica notadamente à reciclagem de fundos de origem duvidosa. A desinformação verde designa a tática aplicada pelas empresas em matéria de publicidade e de relações públicas, visando apresentar uma empresa poluente como empresa responsável e preocupada com o meio ambiente. A “reciclagem verde” tornou-se uma poderosa ferramenta útil de propaganda na gestão da imagem de um grupo feito para contornar as críticas e entravar os projetos de intervenção estatal. Conclui ele o seu artigo com palavras realmente tocantes, quando diz: "os desinformadores, pagos pelos conglomerados econômicos, exigem ter em face dos partners ecologistas interesses conciliatórios. Os militantes ecologistas deveriam recusar as subvenções do mundo econômico e fechar seus conselhos de administração aos dirigentes de empresas. O sucesso da desinformação verde é, por sua vez, a causa e o sintoma da incapacidade desses militantes verdes de construir um movimento político forte, capaz de enfrentar as multinacionais e de iniciar uma reforma econômica e ambiental de fundo. Incumbe aos ecologistas que se consagram a uma mudança real compreender como eles são vencidos e marginalizados pelos desinformadores verdes e enfrentar o desafio: mobilizar-se para criar o movimento de renovação".

3.3. O advogado, filho do ex-senador assassinado e sobrinho do presidente também assassinado, Robert. F. Kennedy Jr., consagra na obra um artigo virulento contra a atual política republicana americana quanto ao meio ambiente, intitulando-o “Nós queremos saber o que vocês fazem daquilo que vocês não têm mais”, ou seja, de todos os bens resultantes da chamada decisão ou escolha entre a prosperidade econômica e a ambiental. Sustentando que o que se faz hoje é resultante do que já começou antes, sobretudo nos anos 60 com o DDT. Por isso, ele, como advogado civilista que é, combate nos tribunais as grandes sociedade petrolíferas, agrícolas e florestais, dizendo, claramente, que essas sociedades despedaçam o bolo que nos pertence, o nosso, o vosso e o de nossos filhos “o ar puro do qual os nossos filhos têm necessidade para respirar sem sofrer de asma, a água não poluída, os pesqueiros produtivos, os animais selvagens, esses bens que são nossa propriedade e de todos e que nós todos confiamos a gestão aos poderes públicos”, donde a clareza do título ao escrever esse artigo. Candentes são suas palavras finais: “penso que Deus nos fala por inúmeros vetores, mas em nenhuma parte com tanta clareza, diversidade de estruturas, exuberância e pormenores que não seja através de sua criação. Assim, para mim, quando nós destruímos os recursos como o estreito de Long Island, atentamos não só contra a moral da mesma forma quando rasgamos as últimas páginas da última bíblia, tora, talmud e corão sobre a terra a um custo que não temos o direito, a meu ver, de impor aos nossos filhos nem a nós mesmos”.

4. Portanto, conclui o escriba, diante desse quadro tenebroso, o título da obra Stop não deve ser só entendido, como praticado literalmente, a fim de que possamos, quiçá, sobreviver às próximas catástrofes ambientais.

II - O controle de qualidade da água

5. O Presidente da República do Brasil, recentemente, assinou o Decreto nº 5440 (4/5/2005), através do qual o Estado passou a estabelecer definições e procedimentos sobre o controle de qualidade da água e o sistema de abastecimento e a instituir mecanismos e instrumentos para divulgação de informação ao consumidor sobre a qualidade da água para consumo humano. Essa sistemática se aplicará, por ser obrigatória, em todo o território nacional.

6. O referido Decreto, em dezoito artigos, passa a estabelecer definições e procedimentos sobre o controle de qualidade da água, de sistema de abastecimento público, fato que já era assegurado por leis anteriores para o mesmo viés (Leis nºs. 8078/90; 8080/90 e 9433/97 e Decreto Federal n° 79367/77).

7. Foram incumbidos, pelo governo, vários órgãos para acompanharem o cumprimento dessa determinação legal, que tem importância fundamental para a saúde pública de modo particular. Assim foram incumbidos os Ministérios da Saúde, da Justiça, das Cidades, do Meio Ambiente e as autoridades estaduais do Distrito Federal, dos Territórios e Municípios, cada um deles dentro do âmbito de suas respectivas competências. Foi criada, com essa nova legislação, uma forma que anteriormente não existia no Brasil, ou seja, os consumidores saberem sobre a qualidade de água que lhes é fornecida. E isso será feito das seguintes formas: informações mensais na conta de água que os consumidores recebem e relatório anual que lhes será passado até o dia 15 de março de cada ano.

7.1. A informação prestada ao consumidor obedecerá os seguintes parâmetros:

a. ele terá conhecimento da qualidade e das características físicas, químicas e microbiológicas da água;

b. a informação deve ser verdadeira e comprovável;

c. a informação deve ser precisa, clara, correta,ostensiva e de fácil compreensão, e

d. a informação terá caráter educativo, a fim de promover consumo sustentável da água e possibilitar o entendimento da relação entre sua qualidade e a saúde da população.

8. Toda sistemática de informação acima colocada, como, também, as demais estão contidas no Anexo ao Decreto nº 5440/05 e, a fim de que não existam dúvidas sobre o que será fornecido, o Anexo adotou algumas definições importantes que facilitarão não só a fiscalização, como, também, a aplicação rigorosa dos controles da água consumida para fins humanos. São estas as principais definições:

a. água potável (água para consumo humano cujos parâmetros microbiológicos, físicos, químicos e radioativos atendam ao padrão de potabilidade e que não ofereça riscos à saúde);

b. solução alternativa coletiva de abastecimento de água para consumo humano: toda modalidade de abastecimento coletivo de água distinta do sistema público de abastecimento de água, incluindo, dentre outras, fonte, poço comunitário, distribuição por veículo transportador, instalações condominiais horizontais e verticais;

c. controle da qualidade da água para consumo humano: conjunto de atividades exercidas de forma contínua pelos responsáveis pela operação de sistema ou solução alternativa de abastecimento de água, destinadas a verificar se a água fornecida à população é potável, assegurando a manutenção desta condição;

d. vigilância da qualidade da água para consumo humano: conjunto de ações adotadas continuamente pela autoridade de saúde pública, para verificar se a água consumida pela população atende aos parâmetros estabelecidos pelo Ministério da Saúde, e avaliar os riscos que os sistemas e as soluções alternativas de abastecimento de água representam para a saúde humana;

e. vigilância da qualidade da água para consumo humano;

f. sistemas isolados (que abastecem isoladamente bairros, setores ou localidades);

g. sistemas integrados (sistemas que abastecem diversos municípios simultaneamente ou quando mais de uma unidade produtora abastece um único município, bairro, setor ou localidade);

h. unidade de informação: área de abrangência do fornecimento de água pelo sistema de abastecimento e

i. ligação predial: derivação da água da rede de distribuição, que se liga às edificações ou pontos de consumo por meio de instalações, assentadas na via pública até a edificação.

9. A lei assegura ao consumidor, na prestação de serviço de fornecimento de água, o direito de:

a. receber suas contas mensais devidamente claras e precisas, inclusive com orientação para saber onde encontrar as informações sobre cuidado necessário em situações de risco à saúde, resultado mensal da qualidade e as características e problemas que lhe possam causar riscos e prejuízos à saúde, além de alterá-lo, dando ênfase de que a qualidade é especialmente considerada para crianças, idosos e pacientes de hemodiálise;

b. receber do prestador de serviço de distribuição de água mais informações setoriais, conjunturais, particulares e onde encontrar essas informações que lhes serão disponibilizadas.

10. A conta mensal de água e o relatório anual deverão trazer esclarecimentos quanto ao significado dos parâmetros nela mencionados, em mensagem que lhes é acessível, ou seja, o legislador brasileiro, a todo custo quer evitar que os consumidores sejam enganados ou fraudados sobre esse bem que lhes é fornecido e que é decisivo para a sua existência saudável. Da mesma forma, essas informações serão transmitidas aos condomínios horizontais e verticais e o encarregado da administração desses condomínios deverá passá-las aos moradores.

11. Quando houver problemas mais sérios quanto ao fornecimento da qualidade da água, os relatórios mencionarão, expressamente, “fora dos padrões de potabilidade”.

12. Em virtude da escassez da água em diversas regiões do país, os prestadores de serviço de transporte de água para consumo humano por carros-pipa, carroças, barcos, dentro outros, devem observar padrões de higiene e qualidade da água, além de fornecerem informações precisas aos consumidores sobre a cor, cloro residual livre, ph e coliformes totais, que forem registrados no fornecimento.

13. Essas informações serão sempre colocadas e disponibilizadas à população de todas as formas possíveis, tanto que há um capítulo inteiro na lei sobre os canais de comunicação complementares, que se destinarão a não só dar informações através de meios eletrônicos, ligações telefônicas, boletins em jornal de circulação local, folhetos, cartazes e outros meios de comunicação e de fácil acesso ao consumidor, como, também, em caso de perigo de contaminação, promover o alerta para que toda população fique engajada para o fim de prevenir risco à saúde pública.

14. Toda essa sistemática, prevista na legislação recentemente divulgada, que visa garantir a qualidade da água, sem dúvida nenhuma está muito bem elaborada. O grande problema, que todos sabemos, é como isso será fiscalizado de forma que não ocorram problemas de conflito de competências e, depois que a população for afetada na sua saúde, se encontrem desculpas baseadas, sobretudo, em escapatórias burocráticas, como ultimamente sucedeu com os hospitais localizados no Rio de Janeiro e que tanto dano ocasionou à população mais carente daquele estado.
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NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1BARTILLOT, Laurent; RETALLOCK, Simon. Stop. Paris: Éditions du Seuil / Le Grand Livre du Mois, 2003. 453 p. Tradução de Phillipe Paringaux. ISBN 2-7028-5928-3, € 27,00.
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*Este trabalho foi apresentado na XLI Conferência da Federação Interamericana de Advogados, no Comitê de Recursos Naturais e Proteção Ambiental, do qual o autor é Presidente e no qual foram inscritas mais seis apresentações para serem discutidos importantes temas ambientais das Américas por outros membros.
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* Advogado do escritório Jayme Vita Roso Advogados e Consultores Jurídicos














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