O terceiro setor no Brasil: uma abordagem inicial e aspectos tributários gerais relacionados às entidades sem fins lucrativos
Antonio Carlos M. Guzman*
A incapacidade do Estado em suprir totalmente as necessidades de educação, saúde, habitação, segurança, etc, principalmente para a maioria da população mais carente, que não tem acesso aos serviços proporcionados pela iniciativa privada, vem mobilizando as pessoas e permitindo, assim, o surgimento e a consolidação de organizações da sociedade civil. O Terceiro Setor é, em sua essência, composto por organizações que não têm como objetivo final o lucro, que têm suas atividades ligadas ao atendimento de necessidades públicas e são mantidas, basicamente, com recursos de terceiros (pessoas, famílias, empresas privadas e governo).
A expansão do Terceiro Setor é um fenômeno que movimenta cerca de US$ 1 trilhão no mundo, o que correspondente à média de 3,5% do Produto Interno Bruto em 22 países pesquisados1, e no Brasil, evidentemente, também tem mostrado um crescimento muito acelerado. A verdade é que trata-se de um segmento em acelerada expansão no País, que apresenta taxas de crescimento muito superiores àquelas apresentadas por qualquer outro setor econômico. A título ilustrativo, segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos da Religião ("ISER"), o Terceiro Setor já participava, em 1995, com aproximadamente 1,5% do Produto Interno Bruto brasileiro, o que correspondia a quase R$ 11 bilhões.
E o acelerado crescimento desse setor é facilmente verificado no estudo comparativo realizado pelo mesmo ISER e o "Institute for Policy Studies" da Universidade John Hopkins (EUA), indicando que, enquanto o crescimento da população "ocupada" na economia brasileira foi de 20% entre 1991 e 1995, no terceiro setor o crescimento foi de cerca de 44%, ou seja, mais que o dobro.
Mesmo assim, a participação do Terceiro Setor no Brasil ainda é reduzida, se comparada com outros países. Contudo, é inegável seu potencial de crescimento e de geração de empregos, sem dizer, é claro, que sua promoção e expansão contribui direta e efetivamente na melhoria das condições de vida da população nas camadas mais carentes da sociedade.
E é exatamente no intuito de fomentar o interesse da iniciativa privada, seja no desenvolvimento direto de projetos sociais com a criação de novas entidades, seja mediante o apoio a projetos já existentes, que o Poder Público vem, ao longo dos anos, proporcionando benefícios e outros atrativos de ordem fiscal ao Terceiro Setor. Nesse sentido, vale lembrar que tais benefícios, no que se refere ao desenvolvimento de novas entidades sem fins lucrativos, se revestem, basicamente, na forma de imunidade e isenções tributárias.
Convém ressaltar que não vamos abordar, em detalhes, as condições e/ou requisitos que são ou vêm sendo impostos pelo Poder Público para efeitos de aproveitamento, seja da imunidade como das isenções tributárias, mas sim trazer um apanhado geral das atividades desenvolvidas pelas instituições do Terceiro Setor que estariam, nos termos da Constituição Federal e da legislação ordinária, fora do alcance das incidências tributárias.
Imunidade
No que diz respeito à imunidade tributária, nos interessa abordar aquela que é atribuída às instituições de assistência social e de educação, sem fins lucrativos, conforme prevista no artigo 150, inciso VI, alínea "c" da Constituição Federal, e que consiste na exclusão de competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, para cobrar impostos sobre o patrimônio, renda ou serviços diretamente relacionados com as atividades desenvolvidas por tais instituições, desde que observados os requisitos de lei2. A imunidade concedida pela Constituição Federal às instituições de assistência social e de educação se justifica na medida em que tais instituições, especificamente, atuam com o propósito de auxiliar, e até mesmo, substituir, o Estado no desenvolvimento de atividades específicas (i.e., educação e assistência social) que lhe são atribuídas pela própria Constituição Federal3.
Ao estabelecer referida imunidade, a Constituição Federal nada mais fez do que possibilitar a essas instituições o aproveitamento integral dos recursos que são obtidos por meio de suas atividades operacionais e que devem ser utilizados, exclusivamente, no desenvolvimento das finalidades essenciais previstas em seus Estatutos, quais sejam, aqueles serviços que são claramente revestidos de caráter público e que, por essa razão, se encontram constitucionalmente protegidos de incidências tributárias.
Não obstante as discussões judiciais que norteiam o alcance da imunidade tributária atribuída às instituições de assistência social e de educação, bem como os requisitos para o seu aproveitamento, em tese, referidas entidades estariam imunes ao pagamento dos seguintes tributos:
(i) sobre o patrimônio: o Imposto Predial e Territorial Urbano ("IPTU"), o Imposto Territorial Rural ("ITR"), o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis ou Doação de Bens e Direitos ("ITCMD"), o Imposto sobre Transmissão Inter Vivos de Bens Imóveis ("ITBI") e o Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores ("IPVA");
(ii) sobre a renda: o Imposto sobre a Renda ("IR"); e
(iii) sobre os serviços: o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços ("ICMS") e o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza ("ISSQN").
Cumpre ressaltar, ainda, que a Constituição Federal, em seu artigo 195, § 7°, tratou de estabelecer, da mesma forma, imunidade às instituições de assistência social no que diz respeito às contribuições previdenciárias.
No rol das contribuições previdenciárias abrangidas pela imunidade prevista no artigo 195, § 7° da Constituição Federal, podem ser destacadas as seguintes: (i) Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social ("COFINS")4; (ii) Contribuição ao Programa de Integração Social ("PIS") (devido à alíquota de 1 % sobre a folha de salários); (iii) PIS e COFINS - Importação; (iv) Contribuição Social sobre o Lucro Líquido ("CSLL"); (v) Contribuição Previdenciário devida ao Instituto Nacional da Seguridade Social ("INSS") (quota patronal); e (vi) Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira ("CPMF").
Isenção
Excluídas as hipóteses elencadas pela Constituição Federal, em seus artigos 150, inciso VI, alínea "c" e 195, § 7°, em que se operam a imunidade tributária, passamos a destacar as hipóteses de isenção que estão previstas em nosso ordenamento jurídico por meio de leis ordinárias que visam, da mesma forma, incentivar atividades que são desenvolvidas por instituições do Terceiro Setor, de caráter filantrópico, recreativo, cultural e científico, bem como pelas associações civis, sem fins lucrativos.
A despeito das interpretações doutrinárias que dizem respeito às figuras jurídicas da imunidade e isenção, é possível dizer que a diferença básica entre as duas reside no fato de que a primeira se traduz em verdadeira limitação ao poder de tributar imposta pela própria Constituição Federal, razão pela qual não pode ser revogada a qualquer tempo, enquanto que a segunda pode ser entendida como uma simples hipótese de renúncia fiscal ou exclusão do crédito tributário feita pelo próprio Estado, por meio de lei ordinária.
No âmbito federal, existem determinadas isenções tributárias que são especificamente atribuídas somente às instituições de caráter filantrópico, recreativo, cultural e científico, bem como às associações civis, sem fins lucrativos, que prestem os serviços para os quais tiverem sido instituídas e os coloquem à disposição do grupo de pessoas a que se destinam. Tais isenções estão expressamente previstas no artigo 15 da Lei n° 9.532, de 10.12.1997 ("Lei n° 9.532/97"), e nos artigos 13 e 14 da Medida Provisória n° 2.158-35, de 24.8.2001 ("MP n° 2.158-35") conforme a seguir destacadas: (i) Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas - IRPJ; (ii) CSLL; (iii) PIS (devido à alíquota de 1 % sobre a folha de salários); e (iv) COFINS (sobre as receitas derivadas das atividades próprias).
As isenções tributárias nos âmbitos estaduais e municipais às referidas instituições devem ser analisadas de acordo com a legislação do Estado e/ou do Município onde se encontram tais instituições, bem como com o tipo de atividade por elas desenvolvidas.
Conclusão
Não é preciso dizer que tanto a imunidade como as isenções tributárias que são especificamente atribuídas, respectivamente, pela Constituição Federal e legislação ordinária, representam, inegavelmente um expressivo estímulo à promoção e desenvolvimento das entidades do Terceiro Setor no Brasil.
Entretanto, parece muito claro que ainda existem entraves, principalmente burocráticos, que vêm sendo gradativamente impostos pelo próprio Estado no intuito de restringir, na medida do possível, o aproveitamento desses benefícios fiscais, inclusive da própria imunidade tributária, por parte das instituições ligadas ao Terceiro Setor, que, notadamente, extrapolam as esferas de competência e desrespeitam os preceitos constitucionais.
Os referidos entraves burocráticos, aliados, principalmente, à falta de informações a respeito da própria estrutura, finalidade e benefícios atribuídos às instituições ligadas ao Terceiro Setor acabam, por vezes, intimidando novas iniciativas de investimento nesse segmento.
É preciso consolidar definitivamente a idéia de que o desenvolvimento amplo do Terceiro Setor no Brasil pode e deve ser encarado como um desafio imediato a ser enfrentado, uma vez que suas atividades apresentam um potencial de crescimento incomparável, principalmente como setor gerador de emprego. Trata-se de uma forma eficiente para complementar a ação do Estado, capaz de aglutinar aspirações que extrapolam o simples interesse econômico, enfim, uma forma de atuação constante que, sem dúvida, contribui diretamente para a redução do imenso desnível social existente em nosso País.
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1 Fonte: Institute of Policy Studies - The John Hopkins University - 1995.
2 Estes requisitos estão elencados no artigo 14 do Código Tributário Nacional ("CTN"), com as alterações introduzidas pela Lei n° 9.532, de 10.12.1997, os quais destacamos a seguir: (a) não distribuir qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título; (b) aplicar integralmente seus recursos na manutenção e desenvolvimento dos seus objetivos sociais; (c) manter escrituração completa de suas receitas e despesas em livros revestidos das formalidades que assegurem a respectiva exatidão; (d) conservar em boa ordem, pelo prazo de cinco anos, contado da data da emissão, os documentos que comprovem a origem de suas receitas e a efetivação de suas despesas, bem assim a realização de quaisquer outros atos ou operações que venham a modificar sua situação patrimonial; (e) apresentar, anualmente, Declaração de Rendimentos, em conformidade com o disposto em ato da Secretaria da Receita Federal; (f) não apresentar superávit em suas contas ou, caso apresente em determinado exercício, que destine referido resultado, integralmente, à manutenção e ao desenvolvimento dos seus objetivos sociais.
3 Proteção à família, ao menor, ao idoso, a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiências, o acesso à educação, à saúde, entre outras garantias.
4 A isenção da COFINS se aplica, da mesma forma, às instituições de educação, somente para as receitas derivadas de suas atividades próprias. Nesse sentido, nos termos do artigo 47, § 2° da Instrução Normativa n° 247, de 21.11.2002, somente são consideradas receitas derivadas das atividades próprias da entidade, para efeitos de isenção da COFINS, somente aquelas decorrentes de contribuições, doações, anuidades ou mensalidades fixadas por lei, assembléia ou estatuto, recebidas de associados ou mantenedores, sem caráter contraprestacional direto, destinadas ao seu custeio e ao desenvolvimento de seus objetivos sociais.
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*Advogados do escritório Pinheiro Neto Advogados
* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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