Migalhas de Peso

Um dia antes

A hora de darem uma parada a tanto trabalho parecia tão distante que elas e eles ate davam a impressão de serem uns desprotegidos numa faina forçada sem amparo algum das leis.

25/7/2011


Um dia antes

Edson Vidigal*

A hora de darem uma parada a tanto trabalho parecia tão distante que elas e eles até davam a impressão de serem uns desprotegidos numa faina forçada sem amparo algum das leis.

Daí que se impacientando acharam de nem esperar pelo dia seguinte. Ontem. Ou ante ontem. Tanto faz. Para quem se esbalda de trabalhar, ontem ou ante ontem não faz tanta diferença.

Em cada rosto a mesma expressão de fadiga. Só o trabalho dignifica, diziam os mais antigos. Haverás de comer o pão com o suor do teu rosto, está no Gênesis, a propósito da expulsão do primeiro casal a viver no paraíso.

Estavam os dois numa boa, tudo de graça, menos roupa lavada porque nem de roupa alguma precisavam para se encobrirem do sol ou do frio ou das vergonhas. Nem sabiam o que era isso.

Estariam ainda assim até hoje se não tivessem caído na conversa da serpente dissimulada entre os galhos da árvore do bem e do mal, a macieira, única no gênero a dar o fruto proibido.

Não teria havido, quem sabe, essa coisa de ter que trabalhar, de alguma maneira, e muito, se não tivesse acontecido aquela transgressão de comer maçã.

Afinal, que juízo esperar de quem tendo tudo ao tempo e à hora e se num estalar de dedos lhe surge à frente, como se fosse um diabinho, uma chave de cofre do contribuinte dizendo pronto senhora ou pronto senhor, às suas ordens?

Este às suas ordens não é por gentileza, não. É para valer mesmo. Um tanto a ver com aquela ordem da amada malvada ou irresponsável ao campônio maluco do Coração de Mãe, a canção do Vicente Celestino.

Estava tão apaixonado que exagerou na submissão – diga tua ordem e espero / por ti não importa / matar ou morrer... Foi quando a amada liberando instintos os mais primários deu a ordem – se é verdade tua louca paixão / parte já e prá mim vai buscar / de tua mãe inteiro o coração...

E a correr o campônio partiu. Há controvérsias. Ao exigir do campônio como prova de amor tão ensanguentado regalo a musa celestina estaria querendo mesmo era antemão se livrar da futura sogra.

A história, na verdade uma parrilhante opereta, só ficou bonita quando o maestro Duprat em esplendoroso arranjo e com tudo a que se tem direito numa sinfônica colocou o Caetano em voz tenra, mas como se fosse um tenor, para cantar.

Então, quando a doutora ou o doutor, a excelentíssima ou o excelentíssimo, ordena quero isso assim e assado ou não assado, ao ponto para mais ou ao ponto para menos, a boníssima chave do cofre público que nem um gênio daqueles que nos lances mais previsíveis da piada saem de uma garrafa, saltam à frente da pessoa e correm em disparada para providenciar o irrecusável pedido, assim também as chaves de cofres desajuizadas seguem ordens sem juízo.

Dissemina-se cada vez mais na República a crença de que o Senado é um pouco mais que o paraíso.

Não foi o estado de inocência do primeiro casal transmudando-se em poder e irresponsabilidade que resultou naquela irrefreável transgressão?

Dizem que o gomo que os homens à moda antiga que nem eu carregam até hoje no meio do pescoço é engasgo de um pedaço daquela maçã. Maldição antiga.

O haverás de ganhar o pão com o suor do teu rosto, enquanto sentença, parece não ter alcançado suas excelências, as senadoras e os senadores da nossa República, que de tão exaustos, de tão estafados, de tão cansados, nem esperaram pelo último dia de baterem o ponto.

Foram-se todas e todos ao recesso parlamentar um dia antes.

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*Ex-presidente do STJ e professor de Direito da UFMA.





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