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Vulgarização da política internacional

A tutela das relações internacionais passa por uma construção doutrinária e de estabelecimento de tratados constante, com maior ênfase aos temas do Direito Humanitário e dos Direitos Humanos, destacadamente após a segunda guerra mundial.

21/7/2011


Vulgarização da política internacional

Patrícia Luciane de Carvalho*

A tutela das relações internacionais passa por uma construção doutrinária e de estabelecimento de tratados constante, com maior ênfase aos temas do Direito Humanitário e dos Direitos Humanos, destacadamente após a segunda guerra mundial. Isto porque o mundo acompanhou o que Hannah Arendt chamou de vulgarização dos Direitos Humanos, então, como resposta, ofereceu-se a reconstrução, representada pelos trabalhos da Organização das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos.

Reconstrução direcionada aos interesses da humanidade, qualquer que seja o país, a forma de regime político, a localização geográfica, mesmo porque o princípio é básico – protegem-se direitos que são inerentes à vida e à dignidade do ser humano, valores essenciais à própria existência e sobrevivência. Para tal, dentre todas as regras de convivência pacífica, tem-se que estas se direcionam a todos os envolvidos na ordem internacional. Frise-se a todos.

Todavia, a história sempre vislumbra exceções, especialmente em situação de guerra. Ocorre que em matéria de Direito Humanitário e de Direitos Humanos as exceções devem salvaguardar situações limites, caso contrário estabelece-se a permanente vulgarização desses direitos e da própria política internacional. E mais, a decisão pela exceção deve-se dar em nome destes mesmos direitos, ponderando-se coletivamente e visualizando-se em nome de qual objetivo que se arrematará o Direito Humanitário e ou os Direitos Humanos, a fim de se evitar a banalização da temática.

A tomada de decisão, conforme entendimentos entre os países signatários e de acordo com os principais tratados estabelecidos até o momento, deve ser feita no âmbito da ONU, especialmente quando a alegação que serviria de base a justificar a exceção ao Direito Humanitário e aos Direitos Humanos for a proteção de interesses mundiais ou comuns ou, ainda, situações que afetem a soberania de países politicamente constituídos. As operações de países em terceiros territórios, conforme orientação da ONU, balizam-se pelo Direito Internacional e não, portanto, por interesses particulares.

A partir de 11 de Setembro de 2001, o mundo recepcionou a nova política internacional promovida pelos Estados Unidos e em 2011 percebeu que ela fora reafirmada sobre os mesmos argumentos – a proteção dos interesses americanos e da ordem internacional -, em que o Governo americano apresenta-se como legítimo operador das execuções necessárias contra o terrorismo, inclusive, com o estabelecimento de bases militares em outros países. Uma década depois se observa que a nova política (adotada unilateralmente pelos Estados Unidos, sem a deliberação da ONU e sem consulta a este organismo, de modo antecipado, sobre os atos a serem praticados) teria um novo sujeito – a própria ordem internacional -, certo que o Governo americano colocou-se como operador dos interesses mundiais, ou seja, a partir de uma concepção internacionalista da política americana.

Os Estados Unidos não possuem legitimidade para representar os interesses mundiais, esta função cabe a ONU; não são donos da verdade, por exemplo, a morte de Osama bin Laden não encerra a prática de atos terroristas; Osama bin Laden comprovadamente era um terrorista, mas este adjetivo não o afastara de ser um sujeito de direitos, merecedor, portanto, do devido processo legal, inclusive a sociedade mundial também seria merecedora de tê-lo condenado pelos crimes praticados, seja através de um tribunal nacional ou internacional (como o foi com Saddan Hussein (Justiça Iraquiana) ou com Omar El-Bechir (Tribunal Penal Internacional)); não somente Osama bin Laden, mas também a sua família é sujeita de direitos (cerimônia de despedida, respeito ao culto religioso); e, o tratamento diferenciado a Osama bin Laden teria que se justificar, frente mesmo a outros que cometeram muito mais brutalmente crimes de genocídio.

É ilustrativo lembrar que Adolf Hitler, assim como seus pares, fez o que fez após a promulgação de uma nova Constituição alemã, que lhe ofereceu poderes suficientes para tal, inclusive para decretar que uma parcela da população (judeus, ciganos, deficientes e idosos) teriam a cidadania suspensa, passíveis, portanto, de serem afastados da tutela de direitos, o que possibilitou o devido encaminhamento aos campos de concentração. Necessário, portanto, que a humanidade mantenha o receio às exceções propostas unilateralmente.

A série de fatos ocorridos na captura de Osama bin Laden (o sistema investigativo, as trocas mútuas com o Paquistão, a declaração de que o objetivo era matar e não capturar e a ocultação do corpo) em nada superam a declaração e a repetição da declaração americana – "finalmente matamos Osama bin Laden". Mas não ficou nisto. O corpo, dizem os americanos, eis que somente eles testemunharam a ocorrência, foi jogado ao mar. Nestes termos, Osama bin Laden deixou, por determinação do Governo Americano, de ser sujeito de direitos, deixou de ser passível de um julgamento neutro, deixou de ser sujeito de manifestação religiosa ao seu final de vida e deixou, também, sua família (esposas e filhos) de "celebrar" seu falecimento. Alguns podem argumentar que a morte foi conseqüência da captura. Todavia, este argumento diante da bandeira americana – "finalmente matamos Osama bin Laden" – não é verídica.

Resta a reflexão à sociedade mundial no sentido de que a ordem internacional deve ser representada pela ONU, com o subsídio da construção do Direito Internacional, assim como o foi para a intervenção sobre a Líbia. Cabe, da mesma forma, a reflexão do porquê se admitir, ainda que seja por omissão (omitir-se é a pior forma de tortura aos Direitos Humanos), o tratamento diferenciado no caso Osama bin Laden, certo que esta atitude estabeleceu-se como precedente a "legitimar" outros atos da mesma natureza. Em nome da proteção do Direito Humanitário e dos Direitos Humanos, na realidade, da própria humanidade, citemos o Papa João Paulo II - "Confiança mútua, repúdio às armas e respeito pelas leis internacionais são os únicos meios capazes de dar vida ao processo de paz".

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*Professora de Direito Internacional em São Paulo





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