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A desestatização brasileira

Acredito que todo problema em política tem raiz na rigidez das palavras, no nosso vício de criar dogmas exatos para abstrações humanas. Privatização é uma palavra que costumeiramente é entendida como "venda de ativos públicos a particulares". A semântica sempre deve ser flexível, especialmente se há histórico possível.

3/6/2011

A desestatização brasileira

Renato Lúcio de Toledo Lima*

Acredito que todo problema em política tem raiz na rigidez das palavras, no nosso vício de criar dogmas exatos para abstrações humanas.

Privatização é uma palavra que costumeiramente é entendida como "venda de ativos públicos a particulares". A semântica sempre deve ser flexível, especialmente se há histórico possível.

Assim, antes de formular qualquer juízo de valor, é bom lembrar que o Brasil começou sua vida econômica com uma concessão: a exploração do pau-brasil, concedida a D. Fernão de Noronha pela Coroa.

E as capitanias hereditárias? Extensões de terras enormes entregues a uma pessoa, o capitão donatário, que distribuía as sesmarias a quem quisesse. Nessa época não havia aqui a administração direta, o chamado Setor Público.

Os governadores gerais aqui chegaram, mas não havia aparato algum para que fossem exercidas as atividades públicas. Quando a família real portuguesa aqui aportou, em 1808, trouxe consigo toda a máquina administrativa lusa. Como governar nos trópicos já era penoso, a troca de favores foi imprescindível e criaram-se cargos até para amantes!

Há incontáveis exemplos do que o historiador Sérgio Buarque de Holanda chamou de herança rural, que consiste na apropriação do público pelo privado, como sempre ocorreu nas capitanias, nas sesmarias, e em todo trabalho no campo – em que as famílias se confundiam com os empreendimentos. O êxodo rural apenas trouxe tal cultura à vida urbana (especialmente nestes tempos republicanos, como a República Velha, em que os cafeicultores decidiam os destinos políticos).

A corrupção arraigou-se na administração pública e isso é muito coerente. Os homens públicos tratam os entes federados como se fossem propriedade familiar. E temos verdadeiros fidalgos, que obtêm vantagens, como a aceleração de um pedido burocrático numa repartição, mediante as célebres frases como: "sabe com quem você está falando?".

A mim, a gestão privada é uma tradição brasileira. Deve ser respeitada, como parte fundamental de nossa cultura. A venda das estatais é só retórica – talvez o ocaso dessa hipocrisia, já que o cidadão finge que há estatais de fato enquanto o governo arrecada tributos e finge prestar serviços aos cidadãos –, porque os particulares as dominaram desde sempre. Talvez por isso Nelson Rodrigues observou: "Subdesenvolvimento não se improvisa. É trabalho de séculos." (Flor de Obsessão, Companhia das Letras, São Paulo, 1997).

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*Advogado e sócio do escritório Fernando Corrêa da Silva Sociedade de Advogados

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