O Poder Judiciário Chinês
Nostálgico, segui tomado pela melancolia, triste pela insaciada saudade de um abnegado ex-colega. Em meio à rua, quase fui colhido por uma reluzente limusine preta. Refeito do susto, vejo os vidros escuros serem abaixados. Preparei-me para receber uma reprimenda pela distração. Uma voz familiar e esfuziante chegou-me aos ouvidos: “Olá Loni!”. Era o meu amigo chinês, com sua indefectível dislalia, a chamar-me pelo nome.
Surpreso, fui convidado a entrar no veículo. O chinês envergava um elegante smoking, fumava charutos cubanos e era servido por motorista particular. Curioso, perguntei-lhe se a vertiginosa ascensão financeira decorria do recebimento de alguma herança ou se era fruto de sorte no jogo. Rindo, o pequinês bradou naquele português sofrível: “voltei a advogar!”. A assertiva causou-me impacto seguramente maior do que se o atropelamento tivesse se consumado.
Pensei em alta voz: advogar como, se mal sabe falar o português!? Com um jeito maroto, o chinês disse que sua advocacia dispensava qualquer tipo de conhecimento, seja ele jurídico ou mesmo do léxico nacional. Ele era um advogado-lobista!
O lobista, segundo ele, precisa de contatos. Basta ser visto na companhia de figuras ilustres do Judiciário, como forma de dar credibilidade às suas promessas. Segundo o neolobista chinês, tudo não passa de um dado estatístico: dentro de um universo das questões nas quais atua, um determinado percentual será favorável aos interesses do respectivo cliente. A parte, desesperada por um desfecho rápido e exitoso da causa, torna-se excessivamente crédula, sempre inclinada a acreditar em falsas promessas.
É tudo elementar: os advogados inicialmente contratados trabalham e ele, o lobista, chega como redentor, apropriando-se de uma vultosa remuneração. Geralmente sem nada fazer, sem responsabilidade, sem qualquer esforço intelectual. Parcela noviciária dos advogados, segundo o chinês, já foi seduzida pela possibilidade de auferir um troco à custa do trombetear das amizades. Desde a faculdade, conhecimentos pessoais são difundidos, dando consecução à estratégia de marketing do futuro lobista.
Abati-me. O amigo que julgava idealista fora seduzido pela possibilidade do ganho fácil. Tornou-se um abutre da advocacia, um mercador da honra alheia, um enganador provecto, sempre disposto a iludir clientes e vender amigos, a intermediar negócios escusos. Os magistrados portugueses, bom dizer, eram meras vítimas da fremência delitiva do chinês. Devotou-se ele à anti-advocacia.
Curioso que a nobre profissão seja provavelmente a única onde sujeitos, apesar de desprovidos de conhecimento técnico elementar, sejam tidos como exemplos de sucesso, exerçam posição de liderança e atraiam a convergência da admiração de muitos dos seus pares. Contatos pessoais, laços de parentesco e amizade, aliados à divulgação de resultados supostamente conseguidos, findam por se sobrepujar à qualificação do profissional, desvalorizando o esforço daqueles que optam por seguir caminho mais árduo e ortodoxo na advocatura: a consagração ao estudo do Direito.
Estômago revirado com as novidades, roguei ao motorista que parasse o veículo. Precisava descer. Antes disso, curioso que sou, indaguei do chinês se não teria ele andado às voltas com a Ordem dos Advogados, de quem se espera a coibição dos desvios por ele confessados e que, pelo visto, deviam ser de conhecimento público. Ouvi dele, às gargalhadas, que não poderia ser punido: era amigo do presidente da Ordem, de quem era parceiro em processos que tramitavam no Tribunal da Relação de Faro, situado na região algarvia. Acometeu-me um sentimento de saudades do Brasil, onde coisas assim não acontecem!
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*Advogado
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