“Bafômetro”, intervenções corporais e direitos fundamentais – Parte II
Tem-se, para tanto, invocado o aforismo nemo se detegere tenetur (isto é, ninguém é obrigado a revelar-se). Mas dito postulado só é agasalhado pela Constituição naquele mencionado aspecto de direito ao silêncio, que foi e é uma necessidade para coibir uma tendência de arrancar confissões, que se extorquiam até de inocentes. Prejudicar a obtenção de provas, porém, sem ferir direitos fundamentais, só servirá para favorecer a impunidade.
Não vale argumentar, também, com o previlege against self incrimination (direito de não se auto-incriminar), consagrado já em 1791 na 5ª Emenda da Constituição americana. Esse direito surgiu, aliás, exatamente com esse restrito objetivo.
É certo que exames periciais são previstos em lei. Sua efetivação, entretanto, pode ficar frustrada se não houver uma necessária aquiescência ou colaboração do paciente, à falta de meios legais aptos à sua concretização. Na Alemanha permite-se a coação para a coleta de sangue, isto é, pode ser feita na marra, desde que por médico, em hospital. Estou em que a legislação penal da Espanha tomou caminho melhor: definiu-se e penalizou-se severamente o crime de desobediência a ordem legal de fazer o exame. Portugal, com seu Código da Estrada, também adotou a punição por desobediência.
Aqui, tirante atos mais simples como a mera apresentação para reconhecimento e exame clínico, não se configura desobediência, porque ninguém é obrigado a fazer ou deixar alguma coisa senão em virtude de lei. O motorista não é nem pode ser obrigado, por falta de lei específica, à coleta de sangue nem muito menos a soprar no bafômetro. Nem a “fazer o quatro”. Se alguém o coagir, cometerá o crime de constrangimento ilegal.
O Código de Trânsito fala em perícia, mas não cuida de extração de sangue nem de crime de desobediência. Só multa e perda da licença. Caberá, entretanto, o exame clínico. Apresentado o motorista à delegacia em caso de crime, deverá ser feito o exame pericial.
Há, assim, necessidade de uma boa regulamentação legal, que deve incluir precauções diversas, entre as quais o uso de material descartável, direito à escolha de laboratório e indenização em caso de um exame indevido, por suspeita infundada.
Mas tudo com uma indispensável condição maior. Deverão ser respeitados os direitos à dignidade e à intimidade, o exame não poderá ter risco de dano à saúde e não deverá ser doloroso. De outro modo, a lei esbarraria em nossa Constituição cidadã.
É claro que não existe impedimento algum de que células corporais, como amostras de sangue e cabelos, sejam recolhidas – para, por exemplo, exame de DNA para uma investigação de autoria de crime – , quer através de apreensão onde encontradas, lata de lixo, chão, etc. –, ou de busca e apreensão, como de roupa, inclusive em domicílio.
A respeito da matéria, a Drª Margareth Vetis Zaganelli, professora em Vitória, defendeu a tese Intervenções corporais como meio de prova no processo penal: o difícil limite entre o jus puniendi e os direitos fundamentais do acusado, apresentada à Faculdade de Direito da UFMG. E o juiz federal Dr. Carlos Henrique Borlido Haddad, com a tese Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação, apresentada à mesma faculdade em 2003, fez um completo estudo sobre o princípio. Nessas teses de doutorado muito aprendi e me informei, como examinador de ambos os autores.
Eles serão convidados, juntamente com o advogado criminal Dr. Maurício Zanoide de Moraes, de São Paulo, para discutir a matéria no 3º Ciclo de Debates que o Instituto dos Advogados promoverá em setembro próximo, evento que será presidido pelo digno Secretário de Defesa Social do Estado, Desembargador Lúcio Urbano, antigo advogado criminal, ex-presidente de dois Tribunais e professor de Direito Processual Penal.
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*Artigo publicado no jornal O Tempo – edição de 29 de março de 2005
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*Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Diretor do Departamento de Direito Processual Penal do IAMG - Instituto dos Advogados de Minas Gerais
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