Um trabalho meritório sobre Saramago
Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues*
No artigo, ressaltei não haver dúvida quanto ao valor moral do autor português, sua independência, coragem, solidariedade com os mais fracos, originalidade e uma honestidade mental raramente vista, mesmo entre escritores de vida pessoal exemplar. Especulando, cheguei a lamentar que sua família, ou a herdeira de seus direitos autorais, certamente não teria a audácia de solicitar a algum intelectual mais, digamos, "graficamente formalista", para que fizesse alterações na obra, no que se refere à pontuação, abertura de parágrafos, etc., para não afastar aqueles leitores "visualmente comodistas".
Não muitos dias depois de redigir o artigo, encontrei, por acaso, em uma livraria, um livro — "As palavras de Saramago" — que, depois de lido, me obriga a retificar ligeiramente meu julgamento pessoal sobre a obra de José Saramago. Trata-se de uma compilação, sintética e muito bem feita, de opiniões do referido Nobel sobre os mais variados assuntos. Essa compilação — realizada por Fernando Gómez Aguilera, um espanhol nascido em 1962, escritor e ensaísta — certamente exigiu muito tempo, rigor e trabalho porque o autor menciona a fonte de cada pensamento de Saramago. E, pela internet, é possível ler o contexto da citação. Em suma, se a família de Saramago, ou suas editoras, não pretendem "pontuar" alguns de seus livros, o referido Fernando Aguilera fez melhor: em 478 páginas resumiu, com as suas palavras — e, principalmente, as do próprio Saramago —, o que este pensava sobre o mundo e seus discutivelmente racionais habitantes.
Quem quiser conhecer a "espinha dorsal" de Saramago, mas — como eu — é avesso a certas novidades um tanto anárquicas na expressão gráfica, e não dispõe de tempo suficiente para ler, ou "decifrar", milhares de páginas — em livros, revistas, jornais e palestras — precisa ler esse livro do referido Fernando G. Aguilera, da Companhia das Letras. Trata-se de uma obra necessária à cultura literária e ao prestígio da própria Fundação Nobel, comprovando que ela acertou ao conceder a láurea ao escritor português.
Se a Fundação Nobel decidisse, eventualmente, criar novas categorias de premiação, além das já existentes — Literatura, Física, etc. — e instituísse o Prêmio Nobel de "Pensador Original", ou "Coragem Moral", Saramago mereceria ser premiado como tal, considerando a lucidez e coragem que revela em dizer o que realmente sente e pensa, e pensa com aguda visão. Se me fosse dado, como jurado do Comitê Nobel, escolher em qual categoria — "Literatura" ou "Pensador Original"? — eu classificaria o escritor português, eu o colocaria nesta nova categoria. Para mim, ele vale mais como um corajoso cientista do pensamento e da moral — principalmente na visão política —, do que como "mero" literato, isto é, aquele preocupado em "escrever bonito".
Considerando, porém, que no "Nobel de Literatura" estão incluídos também filósofos (Bérgson, Sartre), cientistas políticos (Bertrand Russel) e historiadores (Mommsen e Wiston Churchill), está justificada a Academia Nobel no título que concedeu. Não havia outra "classificação" onde enquadrar o escritor português. Ele não é químico, nem físico, nem médico. O fato é que mereceu o Nobel.
O leitor deve estar se perguntando por que valorizo tanto a sinceridade e a coragem moral de um escritor. É que também escrevo, embora com pouco brilho. E antes de colocar no texto as palavras, estas passam — e eu com elas — por uma espécie de ameaçador "corredor polonês", composto de pequenos diabos e gnomos de olhos maus que, à minha esquerda e direita, munidos de espetos e alicates, estão ansiosos para me cutucar e beliscar pesado. A tragédia da maioria dos escritores está na dependência, consciente ou meio inconsciente, da aprovação dos leitores sem rosto. Ou, às vezes, com rosto bem conhecido. Charles Darwin, por exemplo, cientista e autor, teve que reunir muita coragem antes de autorizar a publicação da sua grande teoria da evolução. Isso porque amava sua esposa, que era muito religiosa. Não queria melindrá-la apresentando a sua opinião — imensa heresia, à época — de que a Bíblia, em muitas coisas, não estava certa, pelo menos literalmente.
Como ex-magistrado, não me atrevo a revelar totalmente o que realmente penso sobre alguns assuntos muito delicados e polêmicos. "Não fica bem em um magistrado, mesmo depois de aposentado, dizer tal coisa". Médicos, jornalistas, advogados, contadores e membros das demais profissões, ao escrever não dizem realmente tudo o que pensam, principalmente sobre a própria profissão. A "liberdade de imprensa", quando existe, refere-se apenas ao que ocorre depois de publicado o texto. Antes disso, quando o assunto está ainda no forno quente, digo, na cabeça do redator, os tais diabinhos fazem o seu trabalho mesquinho, ameaçando com a perda do emprego no jornal, a recusa dos originais da possível editora do livro, a cara feia ou decepção de alguns amigos e o desagradável aplauso dos inimigos, eufóricos com a má-reputação que advirá de tanta sinceridade. A sinceridade absoluta é ingênua e desastrosa. Nunca elogie demais, por exemplo, um cidadão que é visto, por seu amigo, como um inimigo dele. Você passa a ser classificado como um possível inimigo, ou amigo não muito confiável. É por tudo isso que Saramago está sendo elogiado aqui. Friso: como pensador e crítico sagaz de seu tempo. E o elogio se estende ao seu "tradutor", o também escritor Fernando G. Aguilera, dando-nos um retrato fiel e resumido de um Nobel que não tinha medo de assumir ousadas verdades.
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*Desembargador aposentado
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