Migalhas de Peso

A regulação como garantia da liberdade

A Anvisa tem entre suas atribuições controlar, fiscalizar e acompanhar, sob o prisma da legislação sanitária, a propaganda e a publicidade de produtos submetidos ao regime de vigilância sanitária, bem como regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública, dentre eles os derivados do tabaco.

24/3/2011

A regulação como garantia da liberdade

Clarissa Menezes Homsi*

Luís Renato Vedovato**

Há algumas questões que devem ficar claras no início dos textos: o objeto a ser discutido; a perspectiva da posição dos autores, que deve ser mais bem desenvolvida durante a escrita; e, especialmente, os motivos que levaram os signatários do texto a se debruçarem sobre o tema.

No Brasil, nem sempre essa última questão fica bem explicada. E, imaginando a construção democrática e o debate das ideias, ela é fundamental, por isso os autores, desde já, querem deixar claro que possuem ligação com uma organização que visa o controle do tabagismo, a Aliança de Controle do Tabagismo. Tal fato, no entanto, não implica desqualificar os argumentos que aqui serão expostos, mas representa demonstração de respeito àquele que busca informações sobre o tema.

Passa-se, então, ao que se quer ver debatido, a regulação feita pela ANVISA dos produtos derivados do tabaco. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, criada pela lei 9.782/99 (clique aqui), tem entre suas atribuições controlar, fiscalizar e acompanhar, sob o prisma da legislação sanitária, a propaganda e a publicidade de produtos submetidos ao regime de vigilância sanitária, bem como regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública, dentre eles os derivados do tabaco.

A tarefa não é fácil ou simples, já que tem por objetivo e obrigação legal garantir os direitos fundamentais à vida e à saúde por meio da regulamentação da atividade e/ou do produto de poderosas corporações nacionais e multinacionais. E, como se pode identificar empiricamente, controlar o capital é dos mais exaustivos desafios que a sociedade enfrenta, em todos os cantos do mundo. Robert Reich, em seu livro Supercapitalismo (Ed. Campus), bem demonstra a constante interferência das grandes empresas na construção das normas reguladoras, deixando claro que, por mais bem financiadas que sejam as organizações do chamado Terceiro Setor, elas nunca teriam o poder econômico detido pelas grandes corporações multinacionais, como as indústrias do tabaco.

Não é por outra razão que as resoluções editadas pela ANVISA ou as consultas públicas que lança são alvos constantes de determinados grupos cujo objetivo único é a manutenção de seus interesses econômicos e, porque não dizer, de seus lucros, independentemente das externalidades e ônus que tais atividades e produtos imponham à sociedade brasileira. O abuso do poder econômico que, segundo nossa Constituição, deve ser reprimido.

No caso dos produtos de tabaco, as empresas produtoras, principalmente as duas maiores que, em conjunto, detêm cerca de 90% do mercado nacional, têm trabalhado incessantemente para evitar que duas Consultas Públicas (CP) em andamento, a 112 e a 117, logrem êxito.

Ressalta-se que os esforços não são apenas contra o texto das propostas, mas contra o próprio instituto da consulta pública que, em verdade, trata-se de espaço democrático de participação, em que prós e contras podem ser livremente apresentados e debatidos. Espaço propício para o exercício da liberdade de escolha e de pensamento. Se houvesse argumentos, eles deveriam ser aí expostos.

A CP 112/2010 (clique aqui) tem por objetivo proibir o uso de aditivos, tais como aromatizantes, a exemplo dos sabores de chocolate, baunilha, morango, menta, entre outros. A medida é necessária, pois impede que os produtos de tabaco se tornem mais palatáveis e atrativos para crianças e adolescentes que, juntos, representam 90% dos iniciantes.

A CP 117/2010 (clique aqui), diferentemente do que se tem difundido, não proíbe a fabricação de cigarros nem abre caminho para o mercado ilegal. Esse argumento distorce a realidade. Trata-se, em verdade, da regulamentação da exposição de produtos de tabaco nos pontos de venda, e não de sua comercialização, bem como da ampliação das advertências sanitárias.

Entre os vários argumentos contrários às propostas, destaca-se aquele que defende ser a regulação uma violação à liberdade. Ora, se assim fosse, os automóveis fabricados no país poderiam sair de fábrica com qualquer tipo de regulagem em seus motores, mesmo que pudessem causar danos imensos ao meio ambiente. Está na Constituição brasileira o direito à liberdade, assim como está o direito à saúde e o dever do Estado de garanti-los.

De fato, a regulação não vem para violar a liberdade, mas para garantir que ela possa ser exercida, especialmente por aquele que sofre a opressão do poder econômico. Dando interpretação sistemática ao texto constitucional que não pode ser analisado em partes. A opressão pode ser também identificada sobre aquele que deseja parar de fumar, mas se vê envolto em publicidade incentivadora do consumo da substância danosa a sua saúde.

O Estado, por determinação constitucional, precisa agir para proteger a liberdade e a saúde do povo brasileiro, tendo esse significado a regulação. O discurso da liberdade versus o controle estatal não se 'adéqua' mais à época atual, na qual a complexidade social e a evolução dos direitos exigem posturas compatíveis com a proteção do indivíduo.

Quando os defensores desses setores econômicos falam em liberdade, estão, na verdade, defendendo a liberdade das corporações de agirem da forma como querem para alcançar seus objetivos, unicamente financeiros. Ao falar em liberdade individual, confundem a opinião pública, pois o consumidor só terá liberdade se tiver informação adequada e eficiente.

Há, também, o argumento de que o Brasil é um grande produtor de fumo e a regulação poderia trazer embaraços à balança de comércio brasileira. Como 87% da produção nacional de tabaco é exportada, qualquer medida que vise reduzir o consumo interno, em nada afetará a produção. Aliás, essa história é bastante absurda, tanto que só merece a lembrança de Amartia Sen sobre a drenagem de recursos. De fato, as marcas dos produtos derivados do tabaco pertencem a multinacionais e é pelo pagamento de royalties que são drenados os recursos citados, como conquistas brasileiras para o exterior, por isso esse argumento não merece outras análises.

Um produto que causa, anualmente, a morte de mais de 5,4 milhões de pessoas, sendo 200 mil no Brasil, além de incapacitar e adoecer outros milhões, não é um produto qualquer. Não há argumento econômico que justifique a ausência de sua regulamentação. A opinião pública sabe disso e apoia tais medidas.

A população brasileira não pode se esquecer que as empresas estão a serviço do bem-estar social, não se constituindo em um fim em si mesmas. A regulamentação da atividade econômica nada mais é do que um dos meios para que assim seja. A Constituição Federal Brasileira já anteviu essa complexidade e abriu espaços claros para atuação das agências reguladoras. Em suma, o que se deve deixar claro é que o tabaco é mais um entre os vários produtos que estão aptos a sofrerem regulação. Ele merece uma normatização mais atenta, pois, conforme a própria OMS percebeu, é causador de danos claros à saúde (art. 8º da CQCT - clique aqui). Além disso, causa dependência e mutila a possibilidade do indivíduo decidir de forma independente.

A regulação é necessária para tirar a nuvem de fumaça deixada pelo tabaco e descortinar a visão do indivíduo, que deve ser informado claramente sobre o que compra (sendo essencial que todos os detalhes sobre o produto e as consequências de seu uso sejam expostos claramente), que não deve ser induzido a comprar (sendo necessária a proibição total da publicidade) e, caso compre, utilize um produto menos prejudicial à saúde e com menos substâncias causadoras de adição.

Regular, portanto, não é violar, mas garantir a liberdade.

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*Coordenadora jurídica da Aliança de Controle do Tabagismo

**Professor da Faculdade de Direito da PUC-Campinas e advogado da Fundação do Câncer nas ADIns que discutem as leis antifumo estaduais

 



 

 

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