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Por que se arquivar uma boa informação se não for para partilhá-la?

Inquietante é o fato que a circulação e a publicação livre tornaram-se uma farsa, diante do que a imprensa tradicional, vinculada a interesses publicitários, porquanto econômicos, subjuga-se a qualquer tipo de governo que a remunere: é o espelho da economia de mercado. Pior: é a submissão histórica e cultural de um país.

18/3/2011

Por que se arquivar uma boa informação se não for para partilhá-la?

– Incursão no mundo do WikiLeaks –

Jayme Vita Roso*

"Definição de jornalista: o que levanta o véu"

Françoise Giroud1

A língua inglesa tem prodigalizado o surgimento de neologismos que são "estranhas e maravilhosas palavras", como Paul Hellweg, há um quarto de século, discorrera num livro que porta as palavras em relevo (Weird and Wonderful Words, David & Charles, Londres, 1986). Nessa obra, o autor – notívago e insone – conseguiu a proeza de reunir três mil palavras estranhas quão intrigantes.

Os logo maníacos, de pronto, compulsando o escrito de Hellweg, já se deparam com a forte influência do significado dessa valiosa obra, dentre muitos, que a palavra de origem grega (logos) proporciona às modernas palavras. Mesmo assim, ampliando a geratriz de neologismos, muitos deles dão nascimento a palavras de interesse geral e, secundariamente, outros tantos abarcam termos mais especializados (medicina, psicologia, esoterismo).

Da mesma maneira como declinou mais de cem tipos de palavras, cada uma com significado singular, por exemplo, tipo de governo (por número; pelo bem, mal e ridículo; pelos tipos de religiões; pelos que levam em conta a riqueza ou a classe; pelo sexo; pela idade e por formas de governo com os sufixos "arqui" e "ocracia", a saber, etnarquia e teatrocracia), ele garimpou um número apreciável de palavras compostas para tipos de atividade, profissão, conhecimento, etc..

Anterior à Internet, o livro focado não pressagiou que a omnisciência dela é uma das mais significativas e transformadoras ferramentas do mundo atual. Se o Google é um veículo de pesquisa relevante, a Wikipédia, enciclopédia online, passou a ser, neste decênio de seu surgimento a amálgama da pesquisa (Google) com a apresentação, em formato próprio, a sua razão de ser: enciclopédia que se renova tanto quanto a Hidra da mitologia grega. Seu sucesso é garantido por quatrocentos milhões de visitantes cada mês. Trabalho voluntário e solidário de cada interessado leva a espanto saber-se que a Wikipédia tem milhões de voluntários que buscam trabalhar online para produzir um bem de valor agregado, sem mesmo conhecer as suas técnicas operacionais: ao conhecer como se empregam as crowdsourcing, tudo leva a nela operar, e basta.

Se a Wikipédia, como apontou "The Economist" (13/1/11, p. 14), transpira preocupações e releva cuidados, por divulgar notícias imprecisas, por não ser financeiramente autossustentável e por ter perdido seu "último toque" mágico de estar aberta ao público sem pêias, precisando se redescobrir ou se autopurgar, como cotejá-la com o WikiLeaks?

O mundo tecnológico está sacudindo o real com a Internet e seus variáveis aplicativos, repetimos, provocando o incitamento de vários povos de língua árabe a repensarem, a se mostrarem insatisfeitos com seus governos autocráticos, pentárquicos, oligárquicos, snobscráticos, estratoscráticos, corruptos até a medula. Mas isso é o início, porque faltam as reações dos africanos e dos asiáticos.

Por que não a China também?

Concordo com a aguda observação de Slavoj Žižek, o extrovertido pensador marxista, ao apreciar o livro de Richard McGregor, "O Partido: O mundo secreto dos dirigentes Comunistas Chineses" (London Review of Books, vol. 32, nº 20-21, outubro de 2010), quando opinou:

"Mas a China não é Cingapura (nem, aliás, é Cingapura): não é um país estável, com um regime autoritário que garanta a harmonia e mantenha o capitalismo sob controle. A cada ano, milhares de rebeliões por parte dos trabalhadores, agricultores e as minorias têm de ser contidas pela polícia e o exército. Não é de se admirar que a propaganda oficial insista obsessivamente sobre a noção de sociedade harmoniosa (...). A China mal está sob controle. Ela ameaça explodir."

O povo mudou. Esse processo é irreversível.

A "rebelião" é heterogênea e, para ser preservada, deve manter as diferenças dos seus participantes.

A "revolução" é, antes de tudo, política e não se trata de um jogo de vídeo game, como na guerra do Iraque. E, nas recentes "revoluções" árabes, a Internet teve o seu papel equivalente a uma ferramenta de apoio e participou na difusão das ideias e das palavras de ordem, mas os seus apoiadores e seus líderes devem permanecer realistas, se quiserem um dia ser politicamente eficazes.

Então, na época em que imperam palavras compostas, a maior parte de origem inglesa, podemos ficar tranquilos porque o "termo" WikiLeaks vai integrá-la, através dos critérios de alcance, profundidade e abrangência, logo, o "termo" passa a ser "palavra" (idem, como xerox, maisena, Gilette, Google, etc.). E isso é parte do mainstream.

Lamentável que Jacques Attali, notável homem público francês, condicione a sujeição e acolhimento da democracia ao desenvolvimento da economia do mercado. Para os países árabes, os sucessos da Tunísia e do Egito, ainda dependem de cinco condições:

1) burguesia existente e robusta;

2) exército laico;

3) juventude que nada tenha a perder;

4) ausência de líder populista e carismático;

5) ambiente internacional favorável.

A proposta é salutar se todas as condições foram alinhadas, melhor do que a apelativa "democracia/economia de mercado" (La Tunisie et après, L’Express, 19/1/11, p.82).

Juridicamente, se é que isso despertará interesse no mercado, o WikiLeaks é uma enciclopédia livre, fundada como sociedade sem fins lucrativos, baseada na Suécia. Seu fim social, ou como se dizia "objeto social", é a publicação, em seu site, de "informações de fontes anônimas, documentos, fotos e informações confidenciais, vazadas de governos ou empresas, sobre assuntos sensíveis", nada mais nem menos do que segredos. Aí reside e repousa o drama: segredos. E, para situá-los no contexto, iremos, adiante, tentar esboçar algumas ideias.

A organização empresarial WikiLeaks teria sido fundada por dissidentes chineses, jornalistas, matemáticos, europeus, asiáticos e de outros cantos. Usa, com expressa recomendação, o software Tor, visando preservar a privacidade dos usuários.

A partir de 2006, quando o site publicou um vídeo, exibindo um helicóptero dos Estados Unidos, no Iraque, que matou 12 pessoas, dentre elas 2 jornalistas, começou a ser observado com atenção, preocupando os governos, sobretudo o norte-americano. E acirrou mais ao levar a público um manual de instruções para tratamento de prisioneiros na prisão militar de Guantánamo.

Todos os eventos denunciados mostram – sem ressalva – que as democracias são frágeis nas suas sustentações, pois onde predomina o fantoche Estado de Direito a burla é idêntica. Só a roupagem da farsa diferencia-se.

Mas inquietante é o fato que a circulação e a publicação livre tornaram-se uma farsa, diante do que a imprensa tradicional, vinculada a interesses publicitários, porquanto econômicos, subjuga-se a qualquer tipo de governo que a remunere: é o espelho da economia de mercado. Pior: é a submissão histórica e cultural de um país.

A autocensura das notícias, o patrulhamento ideológico e do livre profissionalismo, a censura pelo manual do jornalista, geram e vêm causando graves danos à existência e à formação do caráter e da personalidade das gerações mais jovens das diferentes áreas do saber, em seus diferentes segmentos.

Não temos mais a verdade; não sabemos onde está a razão; não distinguimos o que é ser ético do não ser; desconhecemos o significado de pátria e de ser patriota; recusamos ser homens políticos desinteressados. Quando o WikiLeaks, após denunciar e publicar mais de 1000 bandalheiras espalhadas pelo mundo, aparecem os pândegos Vargas Llosa e Fernando Savater a dar lições sobre "o privado e o público" e "os abusos transparentes" (Noblyos, 17/1/11). É demais!

A aparente ingenuidade desses "intelectuais" que profligam ser a transparência imprescindível à democracia e que divulgar os "segredos públicos" passam a ser uma agressão totalitária, ressalta sua falta de comprometimento com a verdade. A democracia, dizem, desapareceria sem a confidencialidade entre funcionários e autoridades, porque o exibicionismo provocaria danos irreparáveis ao governo, com o incomodar e com o ruído resultantes da divulgação ex orbi.

Não há, no WikiLeaks, nem "libertinagem informativa", nem "agressão totalitária". Francamente, além de pueris e irresponsáveis, respeitando as cãs de ambos, eles não leram nas suas páginas, nem procuraram se inteirar dos fatos e das notícias que o WikiLeaks levou a público sobre corrupção, suborno, ausência de segurança, lavagem de dinheiro, off shores e seus amaldiçoados negócios, estupros, desvios de fundos de instituições beneficentes, censuras internas em países como a China, torturas, consumidores abandonados, defeitos de automóveis comercializados sem recall, "batalhas" sujas no Afeganistão, Iraque e Paquistão, bancos e suas fraudes, permeio de trocas de informações por dinheiro e por sexo em serviços secretos, censura na Internet, espionagem patrocinada por órgãos de inteligência para obtenção de documentos relativos à fabricação de produtos, exposição de militares no Iraque a risco de contraírem câncer, etc.. Escondem-se através do tênue biombo das palavras bem construídas gramaticalmente, mas que se ressentem de conteúdo e de autenticidade: não abriram as páginas do WikiLeaks nem mergulharam nos fatos denunciados. Falta de probidade intelectual, em suma.

O WikiLeaks não é um negócio de fermentar a civilização do espetáculo, nem seu criador é um libertino. Será que, quando o WikiLeaks levou a público as contas de americanos em banco suíço e este concordou em pagar indenização de quase um bilhão de dólares, estaria sendo libertino?

A questão nodal é que o "sistema" arrumou uma maneira engenhosa de prender Assange (por crime de estupro) e, com a vigência na Inglaterra de uma cópia do Patriotic Act, bem provável que, após ser remetido à Suécia, seja deportado aos Estados Unidos e condenado à prisão perpétua, porque teria "divulgado documentos secretos de interesse exclusivo do governo". Possível que um desequilibrado o leve à morte, com aparência de homicídio. E não será surpresa que o "Caso Assange", como tantos outros, não venha a ser "closed/not classified", mas "classified". Afinal, a justiça inglesa mostrou que é submissa à ordem estatal comprometida com "o" mercado/sistema. E este momento não é de democracia em nenhum lugar do planeta.

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1 GIROUD, Françoise. "Définition du journaliste: "Celui qui lève le voile." Nascida Françoise Gourdji, mito do jornalismo francês contemporâneo. L’Express, 12/1/11, p. 66-69.

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*Advogado e fundador do site Auditoria Jurídica

 

 

 

 

 

 

 

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