Migalhas de Peso

Die Gewohnheit

É no mínimo justificante considerar os cálculos políticos como mais importantes do que a simples força, no período anterior à guerra. Àquela altura1, todas as potências, e não apenas Hitler, começaram a levar seriamente em conta a guerra e os preparativos para ela.

6/6/2005

Die Gewohnheit

Nuremberg: Gewissen allgemein?

Tathiana Lessa*

O escritor não pode se colocar a serviço daqueles que fazem a História; ele está a serviço daqueles que a sofrem” (Albert Camus)

Os judeus não são amantes de banhos, tem a aparência acovardada, estão envolvidos em toda sujidade e impudência da vida cultural da nação e isso é tão fatal como a existência de vermes nos corpos putrefatos (...) essa peste espiritual é responsável por nove décimos da sordidez e dos disparates da literatura, da arte e do teatro (...) Agora que me tinha assegurado de que os judeus eram os líderes da social-democrata, comecei a ver tudo claro. Os líderes do Partido Social – Democrata eram quase todos pertencentes a uma raça estrangeira, pois, para minha satisfação íntima, convenci-me de que eram os corruptores do povo (...) Gradualmente comecei a odiá-los”. - Tradução (em parte) de Mein KampfAdolf Hitler.

É no mínimo justificante considerar os cálculos políticos como mais importantes do que a simples força, no período anterior à guerra. Àquela altura1, todas as potências, e não apenas Hitler, começaram a levar seriamente em conta a guerra e os preparativos para ela. Assim acontece ao lembrarmos do memorando de Hossbach2, pois é mesmo complicado livrar-se das lendas, mesmo quando o tentamos.

Qualquer registro oficial exige três coisas: em primeiro lugar, um secretário deve estar presente para tomar notas, que posteriormente redige em forma ordenada; depois esse rascunho é submetido aos participantes, para correção e aprovação e, finalmente, o registro deve ser colocado nos arquivos oficiais.

Hossbach não tomou notas, e cinco dias depois redigiu um sumário de próprio punho da reunião de novembro de 1937. Ofereceu estas anotações duas vezes ao Hitler, para que as aprovasse, e este respondeu que estava demasiado ocupado para ler o documento3. Foi um tratamento curiosamente ligeiro do que deveria ser sua “última vontade e testamento”. Blomberg talvez tenha visto o manuscrito. Os outros não sabiam de sua existência. A única certidão de autenticidade era a própria assinatura de Hossbach. Outra pessoa viu o manuscrito: Bech, chefe do Estado – Maior, o mais cético entre os generais alemães em relação às idéias de Hitler.

Hossbach deixou o Estado – Maior pouco depois. Seu manuscrito foi arquivado com outros papéis diversos, e esquecido. Em 1943, um oficial alemão, o conde Kirchbach, examinou o arquivo e copiou o manuscrito para o Departamento de História Militar. Depois disso, os americanos encontraram a cópia de Kirchbach, e por sua vez a reproduziram para ser usada pela acusação, no julgamento de Nuremberg.

Tanto Hossbach como Kirchbach acharam que a cópia americana era menor que a original. Em particular, segundo Kirchbach, o original encerrava críticas de Neurath, Blomberg e Fritsch ao argumento de Hitler – críticas que haviam desaparecido4.

Talvez os americanos tivessem “condensado” o documento; talvez Kirchbach, como outros alemães, estivesse tentando lançar toda a culpa sobre Hitler. Não há como saber. O original de Hossbach e a cópia de Kirchbach desapareceram. Sobrevive apenas uma cópia, talvez resumida, talvez organizada, de um esboço não autenticado.

Encerra temas que Hitler também usou em seus discursos públicos, como a necessidade de Lebensraum, e sua convicção de que outros países se opunham ao restabelecimento da Alemanha como grande potência independente. Não encerra instruções de ação, além do desejo de mais armamentos.

Mesmo em Nuremberg, o memorando de Hossbach não foi apresentado para provar a culpa de Hitler, pois quanto a esta ninguém tinha dúvidas. O que o documento provava, em sua forma final era que os acusados em Nuremberg – Goering, Raeder e Neurath – haviam ouvido e aprovado os planos agressivos de Hitler5.

Assim em todas as acusações (e não somente destes) era necessário SUPOR que os planos eram agressivos para provar a culpa dos acusados. Aqueles que acreditam nas provas em julgamentos políticos podem continuar a citar o memorando de Hossbach6.

Esses documentos que permearam Nuremberg, longe de serem um “registro oficial” eram altamente controversos!

No tocante à consciência dos acusados, cabe dizer que o memorando de Hossbach não é a única exposição que se acredita existir das intenções de Hitler.

Hitler produziu muito dessas exposições, produzia um plano quase toda vez que fazia um discurso. Evidentemente, não havia segredo algum sobre esses planos, seja no Mein Kampf, que foi vendido aos milhões depois de sua subida ao poder, ou nos discursos feitos perante públicos gigantescos. É, igualmente, óbvio que o Lebensraum sempre foi um dos elementos dessas exposições de planos. Não era idéia original de Hitler, mas um lugar comum à época.

Hitler apenas repetiu as frases habituais dos círculos da direita. Como todos os demagogos, ele recorreu às massas, mas, ao contrário de outros, que buscaram o poder para colocar em prática políticas de esquerda, ele dominou as massas por métodos esquerdistas para entregá-las à direita. Foi por isto que a direita o tolerou.

A julgar por Mein Kampf, Hitler estava obcecado pelo anti-semitismo. No Lebensraum, não houve estudo dos recursos dos territórios que deviam ser conquistados; não houve o recrutamento de um quadro capaz de realizar tais planos; nenhum levantamento dos alemães que poderiam ser transferidos7. Logo, Mein Kampf acompanhou os ideais dos alemães naquela época8.

Poderia uma pessoa em perfeito estado de sanidade mental SUPOR, por exemplo, que outros países poderiam ter intervindo pelas armas em 1933 para derrubar Hitler, quando ele havia subido ao poder por meios constitucionais e era apoiado pela grande maioria do povo alemão?

Os alemães colocaram Hitler no poder; eram os únicos que podiam afastá-lo. Ele nada teria representado sem o apoio e cooperação do povo alemão. Hoje, parece-se acreditar (principalmente os internacionalistas) que Hitler fez tudo sozinho, que até mesmo dirigiu os trens e encheu as câmaras de gás sem ajuda (?) Hitler foi um eco da nação alemã. Milhares de alemães cumpriram suas ordens perversas sem discussão ou remorso.

É óbvio que como governante supremo da Alemanha, Hitler parece ter a maior responsabilidade por atos de extrema crueldade, pela destruição da democracia alemã, pelos campos de concentração e, o que é pior pelo extermínio dos povos.

Ele deu ordens, que os alemães executaram, de uma crueldade sem paralelo na história civilizada. Sua política externa, porém, era outro assunto. Hitler queria fazer da Alemanha uma potência dominante na Europa e talvez, mais remontamente, no mundo. Já pensaram na proporção disto?

Outras potências adotaram objetivos semelhantes, e ainda adotam. Outras ameaçam países menores e seus satélites; outras buscam defender seus interesses vitais pela força das armas. Os acusados serão julgados com base na exigibilidade de conduta diversa?

Sem dúvida, a diretriz mais sensível quanto a este assunto é a ditada pelos costumes germânicos. Extensa e muito valiosa, a literatura jurídica germânica não só remonta a Savigny, como a Crome, Koehler, Von Tuhr, Shütze, entre outros.

No sistema germânico detinha-se o direito costumeiro pela seguinte ordem: autonomia, fase do direito costumeiro não escrito, que se substituiu às leis bárbaras; o escrito, reunido em coletânea, onde se inspiraram outras regiões como Rechtbuch, Breslauer, Landrecht, entre outros; do direito romano, introduzido como direito escrito pelos imperadores (Landrecht de Wurtembetg); da reação e volta dos costumes germânicos e total unificação política, a partir da criação, em 1871, do Império da Alemanha.

É cediço que os costumes, uma vez consolidados, reconhecidos e declarados pela lei ou pela jurisprudência, assumem a forma escrita e nem por isso perdem a natureza própria, ou seja, costumeira.

Forçoso lembrar que no direito há e sempre haverá a idéia de coerção, de origem coletiva, ou o temor religioso, que forçam os membros do grupo a observar essas regras assim tomadas por obrigatórias9.

Consoante Ihering o direito sem força é uma palavra sem sentido10. Mas esta força não é a do Estado, mas sim aquela que advém de uma coletividade, ou de um indivíduo mais forte que outro.

Já beirando o arcaico promíscuo, bem sabemos que o direito positivo surge aos poucos das tradições e dos costumes dos povos; é, afinal, o produto de sua organização social, cujas variações acompanha.

Sendo assim, Geny nos aclara que a força ou poder do costume reside na própria natureza das coisas, na necessidade social; a segurança necessária aos direitos individuais, tanto quanto a igualdade (que é o fundamento da toda a justiça), reclamam que uma regra, consagrada por um logo uso, com caráter de coercibilidade, se imponha, como lei, de modo a conduzir, sem hesitação, a atividade de todos11.

Mas quando de trata de Direito Consuetudinário e Direito Internacional, a situação nos remete ao “Durcheinender”, haja vista a uniformidade e a constância do uso não poder se verificar sem um período razoavelmente longo de exercício, bastante para autorizar a convicção da existência de um preceito normativo estável (diuturnitas temporis).

Claro que se deve repelir todo costume formalmente oposto à lei escrita, e é límpido também que nem tudo se afigura suficiente para resolver questões que dependem, antes e acima de tudo, de condições históricas e sociais absurdamente variáveis. Há que se propor que o costume se revelou (e ainda se revela) incoerente e desorganizado12.

No Direito Internacional, (e para tentar suturar a questão) o costume só tem eficácia quando se trata de consentimento dos Estados, considerado assim o problema do ponto de vista formal e, substancialmente, onde a legitimidade (e conseqüentemente a eficácia) dos costumes internacionais encontra apoio na CONSCIÊNCIA UNIVERSAL13.

De Ruggiero explicita que o costume nos lindes promocionais que se lhe reconhece eficácia, é um direito verdadeiro e próprio e todo direito constituído deve o juiz conhecer e aplicar, sem poder reclamar das partes que o documentem. Sendo assim, esse princípio não sofre derrogação a não ser no caso do costume alegado por uma das partes ser contestado pela outra, seja quanto à sua existência, seja pelas modalidades. Se o juiz não encontrar elementos suficientes para se convencer de sua existência, ou correspondência com a prática invocada, poderá impor, a quem o invoca, o ônus da prova, que se poderá produzir por testemunhas ou documentos14.

Isso se dá pela própria natureza da norma, que não sendo uma regra consagrada por escrito, pode, perfeitamente, escapar do conhecimento dos que forem estranhos ao lugar onde a mesma vigora e, ademais, apresenta, com muita freqüência, incerteza quanto às suas modalidades.

Os acusados de Nuremberg tinham algo em comum: particularmente os da esquerda, descreviam o nacional-socialismo em termos marxistas, como “a última fase do imperalismo agressivo” e acreditavam que Hitler teria de adotar uma atitude agressiva para agradar os capitalistas alemães. A repulsa ao anti-semitismo era razão de muitos outros; a amizade pelos tchecos e poloneses influiu em poucos. Alguns desejavam “libertar” a Alemanha, outros derrotá-la.

Os remédios, por sua vez, também eram variados: segurança coletiva, sanções econômicas, maiores armamentos para a Grã-Bretanha...

Todos os profetas haviam afirmado que Hitler jamais se satisfaria, marchando de uma conquista para outra, e só poderia ser detido pela força ou pela ameaça da força.

Como a água batendo na pedra, suas vozes romperam subitamente a crosta da incredulidade!


“Por otra parte, es perfectamente posible imaginar un poder que descanse exclusivamente en el consentimiento (...) todo poder reposa un poco en la fuerza y otro poco en el consentimiento (...) pero este poder coercitivo muy bien puede adquirirse por consenso general. Los titulares del poder son aquellos que tienen la fuerza necesaria para hacer respetar la norma que han prescrito. En este sentido la fuerza es un fundamento. La fuerza es necesaria para ejercer el poder mas no para justificarlo”.
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1No verão de 1936.
2
Espécie de registro oficial da época.
3
A.J. P Taylor. The origins of the Second World War. The Listener: Londres, 1979, p. 19.
4
Meinck, G. Hitler un die deutsche Aufrustung, p. 236.
5
Op. cit. p. 238.
6
Em Nuremberg, Blomberg, Goering e Neurath testemunharam contra a autenticidade do memorando. Seus depoimentos são geralmente considerados de pouco valor, ou antes, só seriam válidos na medida em que eram contra Hitler.
7
Op. cit. p. 33.
8
Ditado por Hitler em 1924, durante nove meses em que estivera preso devido a uma tentativa de um golpe de Estado no final de 1923, esse livro tem a forma de narrativa autobiográfica e sistematiza as idéias do movimento nacional-socialista (nazista) que o mesmo chefiava desde 1919. À parte, há uma incontida admiração do autor por si mesmo (narcisismo) – comum ao se considerar que é uma autobiografia.
9
Henri Decugis. Les étapes do Droit de ses origines a nos jour, p. 65.
10
Rudolf Von Ihering. A Luta pelo Direito. Riode Janeiro: Forense, 1999, p. 15.
11
Geny. Méthode d’Interpretation et Sources em Droit Prive Positifs, p. 428.
12
Op. cit. p. 432.
13
Custom is the older and the original source of International law in general. In Oppenhaim’s International Law, 7 ed. v. I, p. 23.
14
De Ruggiero. Storia del Liberalismo Europeu, p. 395.
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*Advogada criminalista e judia





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