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O início da vida digna e racional

A bioética e o biodireito são ramos da ciência que propiciam os mais diferentes pontos de vista a respeito dos temas sob sua égide. Os argumentos que trazem à tona são sempre conflituosos, mostrando visões antinômicas entre as partes que os apresentam e dando vazão ao subjetivismo e aos valores das pessoas que os sustentam.

6/6/2005

O início da vida digna e racional


Márcia Regina Machado Melaré*

A bioética e o biodireito são ramos da ciência que propiciam os mais diferentes pontos de vista a respeito dos temas sob sua égide. Os argumentos que trazem à tona são sempre conflituosos, mostrando visões antinômicas entre as partes que os apresentam e dando vazão ao subjetivismo e aos valores das pessoas que os sustentam. Um posicionamento sobre qualquer assunto relativo à bioética envolve, de um lado, uma pluralidade de argumentos embasados em princípios filosóficos, éticos e morais e, de outro, em fatores de natureza científica.

A partir desta compreensão, pode-se entender a bioética como um espaço a mais no amplo espectro dos direitos humanos, na medida em que seu foco é a conduta do ser humano no uso da biotecnologia com relação à vida e à dignidade do indivíduo. O estudo da bioética não aceita posições fechadas, preconceitos e crenças imutáveis, até porque o desenvolvimento das ciências biomédicas é tão dinâmico que impõe desafios éticos difíceis de serem padronizados pela moral comum. Aceita ou pelo menos compreendida esta questão de fundo, podemos analisar a equação do “início da vida”, sem preconceitos e dogmas.

A quase unanimidade dos biólogos garante não existir definição científica formal para o começo da vida. Cientistas sustentam não haver vida fora do útero. Portanto, embriões congelados, fertilizados “in vitro” não seriam caracterizados como seres vivos. Há outros que aplicam o critério para definir o momento da morte como o adequado para definir o início da vida. A constatação da existência de atividade cerebral no feto seria , assim, o critério para o início da vida. Para um terceiro grupo, o momento do início da vida se dá na fecundação, enquanto um quatro grupo defende a tese de que a vida se inicia somente quando o feto pode viver independente da mãe.

Há, ainda, critérios religiosos que vêm sendo alterados conforme os rumos filosóficos da história. Nos primeiros séculos, o abortamento até era aceito antes do momento da “hominização”, ou seja, da aquisição da alma. Nessa concepção, a infusão da alma não ocorria em fetos, mas tão somente quando a matéria estivesse suficientemente organizada para dar suporte à alma. Durante o período medieval, prevaleceu a teoria de São Tomás de Aquino, também no sentido da falta da alma em seres em formação. A alma racional, que daria ao homem o dom da inteligência, tornando-o “substância individual de natureza racional”, não existiria na fase embrionária. Em 1869, o Papa Pio IX, ao adotar a encíclica “Apostólica Sedia”, interrompeu a discussão do feto inanimado, ao declarar pecado o aborto em qualquer situação e em qualquer momento.

Não se pode esquecer a posição dos filósofos. Grande parte da escola aristotélica sustenta que a humanidade está presente desde a concepção, porque somente uma causa essencialmente humana explicaria o crescimento ordenado e contínuo dos conceptos para um ser completamente desenvolvido, que o faz um ser individual diferente, com identidade pessoal , antes do nascimento.

O tema, como se percebe, é amplo e instigante e a discussão se torna absolutamente necessária já que há assuntos polêmicos que dependem da caracterização do momento do início da vida , tais como o da manipulação de células embrionárias para pesquisas científicas, agora em evidência.

Entendo, particularmente, que a vida no ser humano somente existe se as funções cardíacas e cerebrais funcionam de maneira simultânea e regular. Sob esta ótica, não basta a pessoa ter o coração batendo para se garantir estar viva. Ao contrário, a Lei de Transplante de órgãos declara morta a pessoa que, mesmo com atividade cardíaca, tem constatada a sua morte encefálica. Esse critério, absolutamente pragmático, que define o momento da morte, para fins de doação de órgãos, deve servir de orientação para a definição do início da vida, em termos legais.

O momento do início da vida deve ser caracterizado pelo início da atividade cerebral, base da vida humana racional. A vida somente pode ser entendida iniciada com o início das atividades cerebrais do feto (critério encefálico), após o início dos batimentos cardíacos, ou seja, a partir da 8ª. semana da fecundação, perdendo-se quando constatada a morte encefálica ou a ausência de atividade encefálica do ser. E deve-se incorporar ao sentido de VIDA o substantivo DIGNIDADE para podermos aceitar a eutanásia. Somente com a definição legal do que é o início da vida, e vida digna, condutas poderão ser aplicadas de maneira segura, tais como a utilização para pesquisas terapêuticas dos embriões congelados, a antecipação de fetos anencefálicos, o aborto e a eutanásia.

Esta é uma conceituação precipuamente utilitária da definição do momento do “início da vida”. É uma concepção não científica, mas válida para a definição jurídica de quando a vida - digna e racional -começa a ter significado moral e merece ser tutelada pelo Direito.
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*Advogada, Vice-Presidente da OAB/SP e integrante da Advocacia Approbato Machado











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