A universalidade restrita do SUS
Rodrigo Bernardes Ribeiro*
Em resumo, a proposta hedionda prevê expressamente que aqueles cidadãos que contratarem planos de saúde não poderão ser atendidos pela rede pública, devendo ser removidos para a rede credenciada à sua operadora, olvidando, assim, que o acesso ao SUS é universal e o Estado é compelido a fornecer e prestar esses serviços de saúde.
De fato, essa obrigatoriedade é que justifica a cobrança de pesadas contribuições sociais, mormente a COFINS, e reduz drasticamente não só o faturamento das empresas, mas também os salários dos trabalhadores, diminuindo-lhes o poder de compra e, consequentemente, gerando empecilhos ao crescimento econômico.
Note-se que nada há na Constituição ou mesmo na lei que retire do cidadão o direito de ser atendido pelo SUS, porquanto essa representa a principal via de acesso à saúde, mostrando-se todas as demais (planos de saúde, médicos particulares, etc.) meramente suplementares e facultativas.
Não fosse o suficiente essa segunda via, além de subsidiária, não se confunde com a primeira. Em termos jurídicos, são relações autônomas e regidas por normas e princípios abismalmente diversos (por exemplo, o SUS deve cobrir todo tipo de atendimento e abranger toda a população e os planos de saúde devem cobrir apenas os serviços contratados ou obrigatórios e abranger apenas aqueles que os contrataram e, às vezes, seus dependentes).
A única possibilidade de validar o malfadado ressarcimento ao SUS seria juntar as duas obrigações por meio de uma "ponte jurídica", ou afastando a obrigação do Estado de prestar serviços de saúde quando o paciente for beneficiário de plano de saúde, ou impondo aos planos de saúde o credenciamento compulsório da rede pública de saúde.
Ambas as pontes, porém, inexistem e são inviáveis já que ferem flagrantemente a Constituição, que assegura o acesso universal ao SUS, e encontram obstáculos na lei de Planos de Saúde e na lei do SUS.
A primeira lei garante a plena liberdade de escolha da rede credenciada pela operadora, garantindo que o usuário conheça-a previamente e assegurando que sua modificação não resulte em prejuízos aos beneficiários. Somente autoriza o atendimento coberto fora da rede credenciada quando essa for insuficiente ou estiver indisponível, determinando que nessas situações o paciente (e somente ele) deverá ressarcido dos gastos efetuados.
E a segunda dispõe que essas verdadeiras parcerias público-privadas, embora possíveis (desde que, obviamente, haja interesses das duas partes envolvidas) são exceção e devem obedecer a regras rígidas.
É claro que tudo isso é jogado para baixo do tapete, pois é mais fácil endiabrar empresas e penalizar a população do que assumir a responsabilidade pela ineficiência histórica do Governo – somos brasileiros e estamos acostumados com isso.
Mas permitir e aplaudir que o Estado não cumpra seu dever e ainda receba por isso mostra-se, além de ilegal e inconstitucional, moralmente condenável. Em verdade, o silêncio dos cidadãos em relação a isso os coloca como cúmplices da má-gestão estatal e dos desvios das verbas do SUS, frequentemente anunciados pela imprensa.
De outro modo, admitir que os contratos de planos de saúde firmados sejam ampliados ao arrepio da lei para literalmente "colocar na conta" dos particulares os custos da ineficiência da máquina burocrática é esquecer que neste país pagam-se altos impostos e que muitos sofreram para por fim à ditadura e assegurar os direitos postulados na Constituição.
Observe-se que a Constituição dispõe que a seguridade social (saúde, assistência e previdência social) será financiada pelos recursos previstos no seu art. 195, não havendo outra previsão de contribuição impositiva aos particulares.
Na realidade, o que foi embrulhado como "justiça social" nada mais é que, no popular, furto institucionalizado, que antes, quando do ressarcimento ao SUS imposto pela ANS, era subliminar e agora se mostra explícito.
Para realmente haver Justiça, deve-se rechaçar esse absurdo ou, na pior das hipóteses, reduzir a carga tributária ou permitir que os contribuintes possam abater essas novas despesas no pagamento de tributos.
Porém, imaginar que isso irá ocorrer é utópico, revelando-se mais fácil acreditar que o Estado e seus representantes não são obrigados a cumprir o que nós, o povo brasileiro, determinamos. É o rabo abanando o cachorro.
Enfim, parece novamente que o assalto à democracia será concretizado e a universalidade do SUS será elevada à condição de letra morta na Constituição de 1988, tudo por conveniência política.
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*Advogado do escritório Fernando Corrêa da Silva Sociedade de Advogados
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