A glamourização da Máfia
Gilberto de Mello Kujawski*
Está na hora de indagar a sério qual a razão de ser da glamourização da Máfia italiana no cinema, na literatura e na imprensa, afinal, uma organização violenta e sanguinária, dedicada a crimes horripilantes praticados com requintes de crueldade dos quais se orgulham seus participantes? Qual o mistério desta sedução tão generalizada e tão rendosa no mercado do espetáculo, que atrai cada vez mais público? Existirá a fascinação do Mal?
A Máfia floresceu no extremo sul da Itália, onde o Estado, a lei não chegavam, senão remotamente. A autoridade máxima era disputada pelas grandes famílias, que faziam suas leis, consagravam seus valores, com total desdém pelo direito e a ordem civil. A Cosa Nostra reina na Sicília. A Ndrangheta, na Calábria, e a Camorra domina Nápoles. Em Estados mais centralizados, como a França e a Inglaterra, seria difícil aparecer algo semelhante.
O totem da Máfia é a família, a Famiglia, uma palavra antiga, um tanto pesada nos dias de hoje (como disse Renan da palavra "Deus"). A Máfia se organiza em torno da Família, da autoridade indiscutível do Boss, com direito de vida e morte sobre todos os membros. O pai de família é a instância suprema de uma organização autoritária e visceralmente hierárquica. Hierárquica, portanto ritual, profundamente respeitosa e exageradamente formal no trato com os superiores, sempre repassado do temor pela represália a uma falta de compostura, ainda que involuntária. Todos os que eram admitidos à presença do chefe de família, serviçais, comerciantes, advogados, padres, políticos, eram obrigados a manter o mesmo respeito que os familiares mais próximos. A Máfia reproduz em seu dia-a-dia o ritual de vassalagem medieval.
A Máfia está na contramão do processo de totalização que responde pela constituição da sociedade e do país. O país se forma pela incorporação dos grupos sociais anteriores. Estes eram um todo à parte, desunidos e inimigos entre si. O processo histórico acabou integrando-os, finalmente, como partes de um todo, numa unidade superior de convivência, o país, a nação, a comunidade. Para isso é preciso compartilhar dos sentimentos, das opiniões e dos valores dos demais, de modo a viver em uníssono com eles. O particularismo – na definitiva lição de Ortega – consiste na recusa em ser parte de um todo, para ser (novamente) um todo à parte. Toda versão radical do regionalismo, o separatismo, ou o corporativismo, são exemplos flagrantes de particularismo. A Máfia seria a forma de particularismo mais extremista e degenerada da história.
GLAMOURIZAÇÃO – A Máfia, organização visceralmente violenta, paradoxalmente, não conquista terreno na sociedade com o uso da força bruta. Aqui entra em ação a insuspeitada reserva de sutileza das grandes lideranças da Cosa Nostra. A estratégia da Máfia está em manter sua invisibilidade. Como lembra a jornalista alemã Petra Reski, em seu momentoso livro Máfia, padrinhos, pizzarias e falsos padres, Ed. Tinta Negra, 2010), "a máfia quer ser invisível, quer fazer parte da sociedade" (p.90). E como ela faz para manter-se invisível? Muito simples, integrando-se na comunidade, dissolvendo-se nela sem chamar atenção. Ao início dos melhores filmes sobre a Máfia, ouve-se nas primeiras cenas aquela música nostálgica, emanada de uma paisagem mediterrânea típica e ancestral, sugerindo que ali repousam as raízes da comunidade entre as famílias. Nada de violência espetacular, nem de rompantes autoritários. Apenas a pintura de um clima repousado, ameno, o cenário do dia-a-dia de uma cultura milenar, do qual os impulsos sanguinários extravasados com requintes de crueldade parecem totalmente excluídos.
Assim começa o processo de sedução e engano protagonizado por uma sociedade secreta dedicada, exclusivamente, à criminalidade sob todas as formas. Para manter a invisibilidade, a Máfia procura seu assento no subsolo daqueles usos coletivos, das crenças e valores comuns que servem de cimento para a convivência social, que alimentam a vontade das pessoas viverem juntas. Este subsolo de usos e crenças comuns atende pelo nome de cotidiano comunal: a conversa na praça, a missa de domingo, a comida da Mama, o jogo de cartas, a sagrada sesta, procissões, enterros, casamentos, bailes, o culto fervoroso da Madonna, murmurações e segredos, eleições, cartas de amor... A família mafiosa submerge nesse caldo de cultura da vida cotidiana, para confundir-se com a comunidade local, manter a invisibilidade e ser aceita com naturalidade, legitimando-se no contexto da sociedade local.
SACRALIZAÇÃO – Não basta para a Máfia a pretensa legitimação social, a convicção de ser aceita socialmente e a consequente absolvição que espera de sua conduta vingativa, facinorosa e sanguinária. A Famiglia mafiosa quer mais, quer ser reconhecida perante Deus e no seio da Igreja. "Não há um mafioso que não seja religioso", declara um dos padres ouvidos pela jornalista Petra Reski no seu livro (p.94).
O mafioso não acredita na Justiça humana, dos procuradores e juízes, só acredita na justiça divina e por ela quer ser inocentado. O mafioso, em sua longa e histórica convivência com a Igreja Católica, procura nela sua visão de mundo completa, e seu fundamento ideológico, "utilizando as peças da fé católica" (Petra Reski) e construindo Deus à sua imagem e semelhança. "O Deus da ira pela ira. O Deus do povo eleito. O Deus que arrasou Sodoma e Gomorra. Um Deus sanguinário" (ob. cit., p. 93).
O sonho obsessivo da Máfia é sua aliança com a Igreja Católica. Adota os mandamentos da Igreja, interpretando-os à sua maneira: "Amarás a Deus sobre todas as coisas". Sem dúvida, e o representante de Deus na Terra, é o boss, o Grande Chefão, infalível, e Senhor de todos sobre a vida e a morte. "Honrarás pai e mãe" – o mafioso leva esse mandamento ao extremismo mais alucinado, pautando sua conduta pela exaltação da Família acima do bem e do mal, como já sabemos. "Não levantarás falso testemunho". Qualquer deslize na sinceridade do trato entre os membros da Máfia será anotado e vingado a seu tempo.
Em suma, o mafioso é um crente, mas sua fé cobra de Deus, dos santos e da Igreja que se coloquem a serviço dos planos de poder das Grandes Famílias. A legitimação não basta para a Máfia. Ela quer mais: ser a paródia macabra dos santos poderes, submissos ao seu compromisso de vida sanguinário e sacrílego, numa inversão de valores que passa de geração em geração, sem sinais de mudança, tão empedernida é a herança genética mafiosa.
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*Ex-promotor de Justiça. Filósofo e ensaísta
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