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Cultura conta. Cultura jurídica, em primeiro lugar

A educação jurídica é um grave problema brasileiro, mas, ao mesmo tempo, importante parte da solução de todos os problemas sobre os quais vivemos discutindo, tais como efetividade das normas; respeito aos direitos – às leis e aos contratos; aperfeiçoamento e estruturação de instituições, legitimidade dos tribunais e dos profissionais do Direito; respeito ao outro, a seu direito e a seu modo de vida e assim por diante.

9/2/2011

Cultura conta. Cultura jurídica, em primeiro lugar

Alfredo Attié Jr.*

No cotidiano forense, costumamos falar e ouvir dizer de problemas jurídicos.

Na vida acadêmica, nossa busca é pela melhor teoria do Direito, a doutrina que nos permita desafiar e solucionar os problemas jurídicos que vislumbramos na prática.

Nós, profissionais do Direito, estamos em geral focados na vida do Direito.

Mas não há vida do Direito. O Direito está sempre inserido em determinado contexto. O Direito é apenas um instrumento. O mais importante, acredito, ao lado da educação.

Neste breve artigo, gostaria de chamar a atenção para a educação jurídica. Trata-se de um grave problema brasileiro, mas, ao mesmo tempo, importante parte da solução de todos os problemas sobre os quais vivemos discutindo, tais como efetividade das normas; respeito aos direitos – às leis e aos contratos; aperfeiçoamento e estruturação de instituições, invenção de tantas outras; legitimidade dos tribunais e dos profissionais do Direito; respeito ao outro, a seu direito e a seu modo de vida; a construção de liames entre as pessoas e relações de confiança, por meio de uma comunicação de bens e valores profícua; respeito ao bem público; seriedade dos discursos e sua firme adesão à verdade e à Justiça; respeito ao meio ambiente e a sua restauração; modos mais eficazes de solucionar conflitos; maneiras de permitir a participação social na construção das normas e de sua prática e assim por diante.

A educação jurídica é um instrumento e um meio de solucionar tais problemas de modo perene e seguro.

Assim se a considerarmos um sério modo de:

- alcançar os importantes valores e objetivos dos seres humanos, o bem estar dos povos;

- proteger suas vidas e seus interesses;

- proteger seu direito de obter coisas que desejem, pelo seu trabalho e indústria, o cuidado de cada um;

- encaminhar uma ética, ou seja, ações construtivas de cada um em relação a todos os demais.

O solo e as florestas são formas de riqueza. Assim como fábricas, casas e rodovias.

Mas, de acordo com recentes estudos de organizações internacionais, tais bens materiais respondem por apenas vinte por cento da riqueza das nações mais ricas do mundo e por quarenta por cento nas nações mais pobres.

O capital humano e o valor das instituições - assim medido pelo império do, ou respeito ao direito (rule of law) respondem pela maior parte da riqueza. Eles constituem o mais alto e relevante fator de riqueza em virtualmente todos os países.

A maioria da riqueza humana não é feita de coisas físicas. É intangível.

Capital natural (assim a soma das terras cultiváveis e utilizáveis para a criação de animais, áreas de floresta, áreas protegidas, recursos não renováveis) e capital produzido (maquinaria, equipamentos, estruturas, inclusive infra-estrutura, e território urbano) podem ser relevantes, mas o capital intangível vem em primeiro lugar.

O capital intangível reúne a soma do conhecimento da população e suas habilidades; e o nível de confiança na sociedade e a qualidade de suas instituições formais e informais. Uma economia com um sistema judicial eficiente, um governo que não seja corrupto, produzirá riqueza em um grau muito maior.

Essas afirmações, penso, mostram de modo convincente o que os países precisam fazer para criar riqueza e elevar bilhões de pessoas da mais abjeta pobreza: implantar o respeito do direito no seio do povo, em suas inter-relações e no seio dos povos, em suas relações externas.

Acredito que nossos problemas jurídicos sejam problemas culturais.

Mas que podemos confiar nos meios certos para alterar nossos indesejáveis erros do passado: a educação e educação jurídica, em especial.

Todos os dias, falamos em problemas de nosso país e de nosso sistema jurídico.

Sabemos que ao tomar consciência da existência de um problema, a sua solução esta em via de ser descoberta.

Quando ouço profissionais do Direito falando sobre problemas jurídicos de seus países, eu prevejo soluções e esperança.

Elas estão na capacidade de tais profissionais de escrutinar problemas, mas, sobretudo, em sua vontade de mudar o estado das coisas.

Se o império do Direito, a supremacia das leis (oposta ao poder arbitrário) e a igualdade perante as leis de todas as pessoas e classes, incluindo os funcionários públicos e os governantes (que nada mais são do que funcionários públicos, que nos devem prestar serviços, liderar os demais e nos prestar contas) e a supremacia dos direitos humanos representam valores e bens que queremos ter e preservar, então, há um importante papel a ser desempenhado pelos advogados e profissionais do Direito no futuro, de modo perene.

Isto, é claro, se cuidarmos da educação de tais profissionais.

Mas quais seriam os modos de aperfeiçoar e corrigir a educação jurídica em nosso país? Por que a educação jurídica é ruim?

Há, em minha opinião, muitas razões para nos preocuparmos: a falta de seriedade de nossas escolas está ligada à ausência absoluta de noção da função social do Direito, portanto do trabalho dos profissionais que lidam com tal objeto. Este objeto são as leis e os contratos que delineiam a sociedade e estabelecem as ligações entre as pessoas e entre elas e os bens que satisfazem suas necessidades e desejos.

O Direito é sempre ensinado como se fosse algo externo e imune às relações sociais. Sem partido, as escolhas jurídicas são tidas como neutras ou, mais frequentemente, superiores às escolhas dos indivíduos. Para os conflitos sociais, a educação jurídica oferece o todo-poderoso processo, em nosso país tido como fim e não meio de efetivar direitos. O processo, em nossa formação, é tido erroneamente como produtor de direitos. A esterilidade processual, contudo, aliada à falta de desenvolvimento cientifico de disciplinas de direito material, acabou por gerar a concepção do exercício das garantias (e não direitos, como se costuma dizer) de ação e de defesa mais como atividades lúdicas do que responsáveis. Perde a sociedade, perdem os direitos. A vocação jurídica de muitos se dirige a meios sem fim (talvez por isso se fale tanto de acesso à Justiça, esquecendo-se que processos não são feitos para permanecer, mas para gerar resultados válidos, eficazes, no curto espaço de tempo que durem: que resultados têm gerado nossa Justiça e em qual tempo?).

O método de educação jurídica também conta a nosso desfavor. Prossegue a passividade de nossos estudantes, empurrados à leitura dos livros de doutrina de seus professores, sem opção, sem atitude. Aulas enfadonhas, voltadas e reproduzir os textos de doutrina ou ao comentário da jurisprudência. Nossos livros de doutrina são frágeis de ciência e, imunes à reflexão, dispensam a experiência (quantos comentários a leis, códigos, etc., não são publicados no próprio dia em que a norma é publicada?... Os comentários substituiriam a leitura direta do texto normativo? Por quê?). Nossa jurisprudência, como saltaria aos olhos de leitores atentos (onde se encontram?) não passa de um amesquinhamento da doutrina (às vezes nacional, outras tantas estrangeira), em geral mal digerida e apertada aos moldes de uma prática que parece desprezar os textos... É difícil explicar como nossa teoria jurídica fecha os olhos a nossa prática e parece se desejar como remédio moral a um objeto tido como degradado...

Nossa teoria jurídica ainda desvirtua os institutos e conceitos que toma emprestado da doutrina e da experiência internacionais. A par disto, a tradução preguiçosa e imprecisa de conceitos e termos cria dificuldades ao pensamento e à imaginação.

A ausência de debate jurídico sério fora dos Tribunais gera ainda outro problema (a par da indolência científica e da falsa cordialidade): não temos revistas jurídicas de qualidade. Nosso capital (material e de ideias) é desperdiçado em publicações descuidadas, em geral sem arbitragem, voltadas para si mesmas ou para justificar avaliações bastante imprecisas ou adulatórias.

Admitimos, sem razão senão o ganho fácil de dinheiro, a proliferação de cursos jurídicos passim. Precisamos de tantos profissionais do Direito? Precisamos de uma formação massificada, rasa, acrítica?

A prática jurídica reflete a educação: reclama-se da ética, mas alguém estaria disposto a enfrentar o domínio dos cursinhos de preparação para concursos? Tais escolas servem como reprodutoras dos vícios da educação jurídica, ao se fixarem na decoração dos textos e ao gerarem uma concepção hierárquica das profissões do Direito. Passar num concurso passa a ser o fim e não o meio do desempenho sério de uma atividade pública. A vocação para lidar com conflitos e os resolver pouco importa. Ensinam-se e aprendem-se fórmulas de equações desencarnadas.

Alguém se pergunta, como seria de se esperar para aqueles que cuidam do Direito, o que significa o conflito, qual sua natureza, por qual razão resolvê-lo de modo adequado serviria para aperfeiçoar as relações sociais? Não, basta propor uma demanda e dar uma sentença... E um contrato, como instrumento de construção e gerenciamento da convivência de interesses e de pessoas? Não, basta copiar um formulário...

Os próprios profissionais aprendem a descrer de seu mister. Por que a população deveria crer neles, quem sabe nas leis, nos contratos que firma?

Concluo aqui minhas considerações, muito embora pudesse e devesse tecer outras tantas. Deixo espaço para a reflexão do leitor, com quem espero poder estabelecer um diálogo e um debate. Tenho guardado sempre essa esperança. Se ao menos pudesse despertar meus vizinhos, como pretendia Thoreau...

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*Juiz de Direito

 





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