A sociedade limitada e o lado negro da força
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa*
Um dos pontos mais significativos da sociedade por quotas de responsabilidade limitada estava no seu caráter contratual, o que permitia a construção de modelos particularizados aos interesses dos seus sócios, o qual podia ser modificado ao longo da existência daquela por meio de sucessivas alterações contratuais. Era então, como se poderia dizer, uma feita roupa sob medida.
Mas o obscurantismo do Império (aqui representado pelo legislador desavisado, tomado pelo lado negro da Força), ao promulgar o novo Código Civil, desestabilizou essa sociedade, havendo criado um modelo extremamente rígido e fechado, representado por uma grande quantidade de normas cogentes que tiraram todo o caráter contratual do instituto, jogando-o dentro de um recorte prêt-à-porter, de margens tão estreitas que não permitem sequer a um alfaiate jurídico exímio aproveitá-lo para vestir mais adequadamente o seu cliente.
Já se disse, talvez com um pouco de exagero, que a sociedade limitada estava morta. Mas se não era verdade, o novel legislado do Império agora contra ataca com mais um petardo aquela já combalida vítima de sua sanha centralizadora medieval. O míssil foi disparado traiçoeiramente por um artigo escondido na lei 12.375, de 30 de dezembro último (clique aqui), ali malevolamente introduzido por um agente duplo do Império que será difícil identificar.
Vejam que gracinha, como diria alguém, a ementa da lei em questão diz enganosamente que trata da transformação de funções comissionadas técnicas em cargos de comissão criadas pela MP 2.229-43/2001 (clique aqui) e, depois de se referir a uma grande série de outras normas, declara que altera outras leis, inclusive uma tal de 10.406 de 10/01/2002 (clique aqui) que, ora viva, é precisamente o nosso novo Código Civil.
Mais traiçoeiro do que isto nem punhalada nas costas. O caro senador do Império que controlava o vilão Darth Vader era fichinha perto do autor desta proeza.
Alguns problemas com o andor, dileto pai desta criança.
Inicialmente, a maneira pela qual foi feita a alteração não só no Código Civil, mas também em todas as outras normas mencionadas nessa lei 12.375/2011 (que não tenham a ver com a transformação daquelas tais funções comissionadas) quebrou ostensivamente norma legal expressa sobre técnica legislativa, precisamente porque escondeu debaixo de tal desculpa outras finalidades desejadas por quem introduziu matérias estranhas, na calada da noite.
Esta leizinha ordinária (o sentido duplo é proposital) feriu o art. 7º, inciso II da LC 95/98 (clique aqui), como seja:
“ Art. 7o O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios:
I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto”.
Como vimos, a lei em questão primeiramente misturou o público com o privado e depois tratou do que não devia.
Tem mais. Um código em geral (e o nosso Código Civil em particular, que foi gestado durante décadas) é o resultado de um amplo consenso da sociedade, para tanto devidamente representada nas duas casas do Congresso. Assim sendo, não se pode aceitar que uma lei qualquer venha secretamente mexer no seu texto, mesmo que este já não seja particularmente uma verdadeira preciosidade, especialmente no que toca ao Direito Societário.
É o relatório, agora vamos ao mérito.
O legislador do Código Civil de 2002, exercendo o lado negro da Força, passou para os comerciantes um recado no sentido de que estes são incapazes de cuidar de seus próprios interesses e que os sócios minoritários e os terceiros que se relacionam com as sociedades limitadas precisam de um sistema de proteção especial, pois foram considerados relativamente incapazes para tal finalidade, pois seria altamente prejudicial para eles o seu regime, originalmente construído sobre a base do contrato. Assim sendo, montou as limitadas dentro de fronteiras rígidas e praticamente insuperáveis em muitos casos, mercê do estabelecimento de quóruns de deliberação frequentemente inalcançáveis.
Se não fosse bastante, o legislador jogou as limitadas no colo das sociedades simples, tornado modelo geral para a solução de omissões no tratamento do capítulo próprio. Esta última sociedade que de simples não tem nada, não é própria para o exercício da atividade mercantil, pois sua concepção está voltada para o atendimento da atividade de profissionais liberais. Desta maneira, a limitada de vez em quando é forçada a vestir uma armadura inapropriada para o combate do dia a dia nas suas atividades, seja no plano interno dos sócios, seja no esterno, diante de terceiros, credores, fornecedores, etc.
Mas para que liberdade? Esta seria um grande mal. O Império precisa controlar tudo dentro de sua concepção retrógrada e intervencionista.
E o caso concreto desta nova intervenção feita sob o manto do disfarce? Ela se voltou para uma proteção julgada essencial, relativa à designação de administradores não sócios. A mudança em questão foi no sentido de que o recurso à chamada administração profissional não mais precisará ser feita somente quando houver previsão no contrato social, mas passará a depender da vontade dos sócios em duas situações diversas: (i) voto unânime destes quando o capital não estiver integralizado; e (ii) aprovação por no mínimo de dois terços dos sócios, em caso de capital integralizado.
Veja-se que não se trata de votação segundo o capital social, mas por cabeça. Ora, basta no primeiro caso o voto de um único sócio cabeça de bagre para vetar a adoção da administração profissional, enquanto que na outra situação dois terços deles (e se foram quatro sócios, como será feita a conta, serra-se literalmente um em três para somar seis?) terão que ser arregimentados para a mesma finalidade. E isto independe de quanto capital os sócios arriscam-se a perder na sua empreitada. Pode ser uma quota de um real, ou três quotas de um real cada uma.
Ora, dirão os imperialistas, houve um progresso nesta mudança, pois não se torna mais exigível que o contrato tenha previsão para a nomeação de administradores não sócios ou que seja necessário primeiro alterar-se aquele (com todas as impossibilidades fáticas possíveis) para depois se recorrer à administração profissional. É mesmo, não? Acho que aqui devemos pedir desculpas ao Imperador, seja ele quem for. A Força aqui não estava no lado negro, tão somente cinza escuro.
E sabem os diletos leitores a razão de tudo isto? Muito simples: o capital integralizado é a garantia dos credores, segundo um dogma do sábio legislador imperial, e quando se recorre à administração profissional, o risco dos credores aumenta <_st13a_personname w:st="on" productid="em demasia. Daí">em demasia. Daí o cuidado especial em partir para este mecanismo perigoso para os pobres terceiros e para os sócios minoritários.
Ora, o capital social na verdade, não passa de uma cifra de referência. O que vale é o patrimônio líquido, ou seja, a diferença entre tudo o que a sociedade tem e tudo o que ela deve. O capital pode aparecer bonitinho no balanço, devidamente integralizado, mas com tudo isto já ter sido inteiramente comido por prejuízos da atividade social ou desviados por quem tem a chave do cofre. O balanço pode inclusive ter sido auditado e reauditado. E daí? Que o digam os credores do Banco PanAmericano...
Outra conclusão que se tira da visão do legislador notívago é que a administração profissional sempre será mais perigosa do que a interna. Por isto os cuidados especiais a serem tomados. Ora, se é assim, por que não generalizar? Vamos adotar a mesma regra para as sociedades anônimas, que, por serem de maior porte financeiro, poderão causar estrago pior ainda aos seus credores. Veja-se como o legislador é na verdade incoerente. Mas e daí? Nós não o deciframos e ele sempre nos devora.
No mundo da atividade mercantil, quem contrata com uma sociedade comercial, qualquer que seja o seu tipo, tomará os devidos cuidados para cercar-se de segurança e certeza do receber o que lhe seja devido. Não será uma exigência como a de que se trata que irá melhorar o direito e a garantia de ninguém.
Mais se poderia falar, mas o sofrimento já é o bastante.
E se a coisa anda por esse caminho tão tortuoso em relação à limitada, mais valerá sempre que possível, utilizar o modelo das companhias, que ainda dá maior liberdade aos seus usurários. Mas vamos falar baixo porque o lado negro da força vê e escuta tudo.
Finalmente, não se poderia mesmo esperar que em meio aos festejos de mudança do governo, o ilustre promulgador imperialista da lei em questão e seus companheiros na assinatura do texto (e/ou sua assessoria jurídica), docemente embriagados por uma apoteose nunca dantes vista na história deste país tivessem prestado atenção no contrabando que foi colocado na lei comentada, correspondente a esse famigerado artigo 14. Já seria pedir demais.
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*Consultor do escritório Mattos Muriel Kestener Advogados e professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP
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