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Equívocos e tropeços na escolha da Linguagem: O Regime Internacional de Acesso e Distribuição de Benefícios

O uso preciso da linguagem importa e muito. O naturalista E. O. Wilson, da Universidade de Harvard, por exemplo, frisa que "o primeiro passo rumo à sabedoria, como dizem os chineses, é atribuir às coisas o seu devido nome". O fato de nomeá-las de modo equívoco pode servir a outros propósitos.

22/12/2010


Equívocos e tropeços na escolha da Linguagem: O Regime Internacional de Acesso e Distribuição de Benefícios*

Joseph Henry Vogel**

Manuel Ruiz***

Tradução de Camilo Gomides****

O uso preciso da linguagem importa e muito. O naturalista E. O. Wilson da Universidade de Harvard, por exemplo, frisa que "o primeiro passo rumo à sabedoria, como dizem os chineses, é atribuir às coisas o seu devido nome"1. O fato de nomeá-las de modo equívoco pode servir a outros propósitos. Em Alice através do espelho, Humpty Dumpty diz à protagonista que os nomes significam o que ele quiser que signifiquem. Para a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), os "recursos genéticos" são "material genético de valor real ou potencial"; "material genético", por sua vez, é definido como "todo material de origem vegetal, animal ou microbiana, ou outra, que contenha unidades funcionais de hereditariedade". Material é sinônimo de "tangível", e sendo assim, o "material genético" é todo [tangível] de origem vegetal, animal ou microbiana, ou outra, que contenha unidades funcionais de hereditariedade"2. No entanto, o objeto da pesquisa biológica é intangível como se evidencia na expressão de "informação genética", conceito ubíquo na literatura científica. Existe uma economia da informação e suas recomendações não são nada ambíguas. As políticas que promovem a eficiência e equidade para os tangíveis, agravam a ineficiência e iniquidade para os intangíveis. A CDB enganou-se tanto na linguagem "recursos genéticos" como no conteúdo "todo material de origem vegetal, [etc.] " o que resulta fatal para o Regime Internacional de Acesso e Distribuição de Benefícios. Por outras palavras, a Conferência das Partes se enveredou por um caminho errado e deve agora retroceder.

As civilizações antigas frequentemente matavam os mensageiros portadores de más notícias; hoje em dia, mediante uma ignorância deliberada, as civilizações atuais conseguem o mesmo efeito. O político que cometeu erros dirá ao seu eleitorado confundido: ninguém podia ter previsto isso (preencher o espaço com a crise do momento). A realidade é que quase toda má notícia era previsível ou poderia ter sido prevista por peritos. Podemos encontrar exemplos atuais: o da ausência de armas de destruição em massa e Hans Blix ou o do colapso financeiro devido às dívidas alavancadas massivamente e Nouriel Roubini. A inabilidade da CDB em atingir o objetivo de distribuição justa e equitativa dos benefícios não é uma exceção. Em 1996, a USAID encarregou o primeiro autor deste artigo de compilar uma série de estudos de caso para a Cúpula das Américas para o Desenvolvimento Sustentável. O sexto caso se intitulava: 'A impossibilidade de um caso de êxito de bioprospecção sem um cartel'3. Inclusive, nesta época, o argumento não era novo, pois este já tinha sido apresentado em um livro lançado em 1992, ano em que a CDB foi adotada4. Durante os dezoito anos seguintes, apareceram na literatura científica várias obras relacionando os recursos genéticos à informação, sendo que as últimas delas apareceram na antologia Museum of Bioprospecting, Intellectual Property, and the Public Domain: a Place, a Process, a Philosophy. Uma simples busca no Google dará conta de vários resultados.

Brevemente, a justificação para direitos de oligopólio sobre informação genética será a mesma dada aos direitos de propriedade intelectual de monopólios. No entanto, até julho de 2010, os peritos sobre a CDB continuavam escrevendo sobre a política econômica e o Regime Internacional sem dizer absolutamente nada de substancial que justificasse a implementação de um cartel, inclusive não se preocuparam em discutir os requisitos mínimos para este5. Assim, podemos concluir que as civilizações antigas ficariam enrubescidas de orgulho!

Neste ponto surge então uma pergunta: como pode o Regime Internacional voltar atrás? Ao longo de uma carreira ilustre, John Kenneth Galbraith (1908-2006) considerou a vida acadêmica um contrapeso para os interesses criados. No capítulo final de Collapse, Jared Diamond escreve algo similar em relação às ONGs6. Como acadêmico e como diretor de programa de uma ONG, somos menos otimistas. Os delegados das COPs parecem insensíveis às críticas, seja esta vinda de um acadêmico ou de uma ONG e, por isso, procuramos pelas fissuras na atual estrutura do poder.

Uma analogia entre as emissões de carbono e o ABS pode ser útil. Do mesmo modo que a indústria de seguros enfrenta os grandes interesses da Grande Indústria Petroleira e do Carvão, certos elementos da biotecnologia não se encontram alienados dos interesses da Grande Indústria Farmacêutica e Agroindustrial. Especialmente promissor é o Barcode of Life Initiative (Projeto Internacional do Código de Barras da Vida, conhecido por sua sigla em inglês: iBOL). Até o momento, a estratégia do iBOL tem sido propor distinções entre a pesquisa comercial e não-comercial para integrar-se na longa lista de exceções da CDB e de qualquer Regime Internacional7. Acreditamos que esse caminho está errado e urgimos que o iBOL transforme o Plano B em Plano A, quer dizer, adote o cartel da biodiversidade. Sendo o cartel aceito como regime internacional, a linguagem tornar-se-á mais precisa e fará o que é correto pelas partes interessadas.

O mecanismo para a efetivação do cartel como regime internacional é simples. Os recursos genéticos passariam a fluir livremente com a divulgação da espécie bioprospectada na solicitação da patente. Os royalties resultantes se distribuiriam proporcionalmente entre os países de origem. Para espécies amplamente difundidas por diferentes países, cujos custos de determinação do habitat de origem superariam os royalties arrecadados, o montante seria usado para "baixar os custos fixos de uma base de dados gigantesca"8. O primeiro autor redigiu estas palavras no livro Genes for Sale (1994), muito antes de qualquer pessoa imaginar que o iBOL se tornaria essa base de dados gigantesca.

As críticas iniciais feitas a Genes for Sale se concentraram obsessivamente sobre a base de dados, ressaltando que esta não existia e nem chegaria a existir por muitos anos9. Sendo assim, os delegados da COPX, que concebiam ou concebem de forma equívoca os "recursos genéticos" como tangíveis, podem recuperar agora suas reputações afirmando que somente mediante a ativação do iBOL (outubro de 2010), será possível o cartel. Portanto: Vida longa ao Google!

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1 Wilson, E.O. Consilience (New York: Alfred A. Knopf, 1998), 4 [tradução nossa].

2
Convenção sobre Diversidad Biológica, Art. 2º - clique aqui.

3
Vogel, Joseph Henry. "El uso exitoso de instrumentos económicos para fomentar el uso sustentable de la biodiversidad: seis estudios de caso de América Latina y el Caribe".
Biopolicy Journal, volumen 2, paper 5 (PY97005), 1997.

4
Vogel, Joseph Henry. Privatisation as a Conservation Policy. Melbourne, Australia: Centre for International Research on Communication and Information Technologies, 1992).

5
Cabrera Medaglia, Jorge.
The Political Economy of the International ABS Regime Negotiations: Options and Synergies with Relevant IPR Instruments and Processes (Geneva, Switzerland: International Centre for Trade and Sustainable Development, 2010).

6
Diamond, Jared. Collapse: How Societies Choose to Fail or Succeed (New York, NY: Penguin, 2005).

7
Tvedt, Morten Walløe and Olivier Rukundo. "Functionality of an ABS Protocol" (Lysaker, Norway: Fridtjof Nansen Institute, 2010).

8
Vogel, Joseph Henry. Genes for Sale (New York: Oxford University Press, 1994), 87 [tradução
nossa].

9
Rolston III, Holmes. "Genes for Sale; Gargantuan Computer System Wanted" Conservation Biology 9 (1995): 1657-1658.

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*Os comentários originais em inglês podem ser encontrados online em: "Wronged by the Wrong Language: The International Regime on Access and Benefit-Sharing", Joseph Henry Vogel and Manuel Ruiz. Commentary: BRIDGES ICTSD, October 2010. (clique aqui)

**Professor da Universidade de Porto Rico - Campus de Rio Piedras

***Diretor do Programa da Sociedade Peruana de Direito Ambiental

****Professor associado da Universidade de Porto Rico - Campus de Rio Piedras

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