Denúncia Anônima
Eudes Quintino de Oliveira Júnior*
A notitia criminis levada ao conhecimento da autoridade competente pela vítima, testemunha ou qualquer pessoa do povo, apresenta-se como uma ferramenta de alto valor para orientar uma persecução criminal responsável. Afinal, se o próprio povo tem legitimidade para julgar nos crimes dolosos contra a vida, terá também igual competência para fazer a comunicação de um fato delituoso.
A delação inqualificada pode trazer informações interessantes a respeito de um determinado fato criminoso até então desconhecido, porém atinge proteção pétrea consagrada constitucionalmente, que é a vedação ao anonimato, incluindo neste rol o direito à personalidade, à honra, à intimidade e à dignidade da pessoa humana.
Cesare Bonesana, conhecido como Marquês de Beccaria, em seu livro "Dei Delitti e Delle Penne", que protestou contra julgamentos secretos, a tortura no interrogatório, interrogatório sugestivo contestou também a delação premiada, como uma modalidade de se lançar uma acusação contra determinada pessoa, com o objetivo de se obter algum benefício próprio de redução de pena, porém, com a obrigatoriedade de se identificar o delator. Com sua ênfase peculiar, ressaltou que "o tribunal que emprega a impunidade para conhecer um crime, mostra que se pode encobrir esse crime, pois que ele não o conhece; e a leis descobrem suas fraquezas, implorando o socorro do próprio celerado que as violou"1.
Mas a delação tratada pelo processo penal é aquela em que qualquer um do povo faz o relato de um fato com aparência de crime, pessoalmente ou por escrito, ao delegado de polícia, porém, em ambos os casos, irá se identificar para que o órgão policial possa ter um respaldo autorizativo em seu procedimento.
Diferente, no entanto, a denúncia feita sob o manto do anonimato, muitas vezes com o patrocínio do próprio poder público, que cria um canal direto de comunicação com a comunidade através do "disque-denúncia". Com a organização e especialização de quadrilhas voltadas para a prática de ilícitos, a notícia anônima carrega um arsenal importante de informações que deverão ser filtradas e analisadas criteriosamente para verificar sua procedência. O crivo de admissibilidade e idoneidade será feito pela autoridade policial ou MP, ambos como destinatários credenciados e legitimados.
Daí que a autoridade policial e o próprio órgão do MP não podem repudiar liminarmente a denúncia anônima e sim dar a ela o tratamento adequado de fonte de informação, com a realização da pesquisa necessária para rastrear sua idoneidade. Se o denunciante permanecer no anonimato e se suas informações forem consistentes, possibilitando uma correta linha de investigação, não há qualquer interesse em se descobrir a identidade do colaborador. Porém, se lançou mão do anonimato para prejudicar determinada pessoa, a conduta é reprovável penalmente. Tanto é verdade que o crime de denunciação caluniosa tem a pena aumentada de sexta parte se o agente se vale do anonimato ou de nome suposto para dar causa à instauração de investigação policial contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente.
Desta forma, sem qualquer dúvida, a denúncia anônima carrega farto material para se realizar investigação policial preliminar visando nortear os caminhos de uma futura persecução criminal. Porém, não se presta para o embasamento da instauração do inquérito policial. Os tribunais superiores vêm recomendando extremada cautela com a denúncia apócrifa, que, se não for bem conduzida, poderá acarretar sérios danos contra a segurança jurídica e gerar um terrorismo social desnecessário.
Se, por acaso, a denúncia anônima servir de base para o inquérito policial ou até mesmo para a ação penal, por se tratar de prova ilícita, contaminará todos os atos praticados fulminando-os de ilegalidade, tais como a interceptação telefônica, quebra se sigilo bancário, prisões cautelares decretadas, sequestros de bens e outras medidas restritivas.
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1 Beccaria, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Fávio de Angelis. Bauru: Edipro, 1999, p.33
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*Promotor de Justiça aposentado/SP. Advogado e reitor do Centro Universitário do Norte Paulista
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