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Responsabilidade civil na área de saúde – o erro médico

O assunto está em voga, mas não é novo. Para se ter ideia do quão antigo ele é, basta dizer que nos idos de 1936 a Corte de Cassação, na França, já cuidava de casos que envolviam a prestação de serviços médicos onde o ponto central da discussão era a diferenciação das obrigações de meio e de resultado, matéria que teve como principal estudioso René Demogue.

7/12/2010


Responsabilidade civil na área de saúde – o erro médico

André Luís Coentro de Almeida*

Danilo Leme Crespo**

O assunto está em voga, mas não é novo. Para se ter ideia do quão antigo ele é, basta dizer que nos idos de 1936 a Corte de Cassação, na França, já cuidava de casos que envolviam a prestação de serviços médicos1 onde o ponto central da discussão era a diferenciação das obrigações de meio e de resultado, matéria que teve como principal estudioso René Demogue2.

Atuando há longos anos nesta área de responsabilidade civil do profissional de saúde, pudemos ver um aumento de ações judiciais em progressão geométrica, chegando a 200% de um ano para outro.

Na esfera administrativa a situação não é diferente, pois o Conselho Federal de Medicina, responsável pela fiscalização dos profissionais, recebe em média 75,8 reclamações por mês, índice considerado o maior dos últimos 4 anos3 .

No Estado de São Paulo, especificamente, foram registradas, nos últimos 4 anos, 4.500 denúncias (12 por dia), número em ascensão desde o ano 2000, quando os registros não passavam de 2.3004 .

Bem se vê que as reclamações são cada vez mais frequentes e, de acordo com estes índices, o número tende a aumentar.

Isto significaria dizer que o profissional de medicina está errando muito no trato de seu paciente? Não necessariamente.

Então, qual seria a causa desse aumento de ações indenizatórias contra os médicos? A resposta é complexa. Envolve vários fatores e, dentre eles, encontram-se questões legais e culturais.

Cremos que o primeiro fator a contribuir significativamente para o aumento de reclamações por erro médico foi a proteção que a CF/88 (clique aqui) deu à saúde. O art. 6º da CF coloca a saúde como direito fundamental social; portanto, não é difícil concluir que a população, hoje mais consciente das leis, vê nesse princípio o grande amparo para buscar a reparação de um dano decorrente de erro profissional, principalmente no que diz respeito ao médico.

Também não resta dúvida que a situação ganhou mais relevo a partir de 1990, com a entrada em vigor do CDC (clique aqui), já que a partir dali a relação médico-paciente passou a ser vista como um contrato de prestação de serviços. Ou seja, a antiga figura do médico da família, representada pelo profissional que por vezes chegava até mesmo a ser padrinho dos filhos de seus pacientes, desapareceu e deu lugar ao profissional que se limita a informar o paciente sobre o diagnóstico da sua doença, os possíveis tratamentos e riscos a eles inerentes.

Houve, portanto, um rompimento daquele laço sentimental que havia entre o médico e seu paciente, o que tornou impessoal a relação entre ambos. Restou apenas um encontro de vontades, onde, de um lado, há alguém precisando de assistência médica e, de outro, há um profissional apto a fornecê-la. Nada além disso!

Posta assim a questão, podemos afirmar, sem medo de errar, que a "despersonalização" do médico despertou no paciente, ainda que inconscientemente, uma conduta muito mais ativa e uma maior cobrança pelo resultado no tratamento. Afinal, o médico nada mais é do que um profissional de saúde vendendo o seu serviço, sem aquela relação pessoal que antigamente existia.

Daí porque, não raras vezes, um tratamento médico correto, mas com desdobramento infeliz, é rotulado como erro pelo paciente ou seus familiares. Um resultado ruim, muitas vezes decorrente de "fatalidade", pode ser tido como "imperícia profissional", o que origina uma avalanche de ações indenizatórias em que os pacientes confundem a eficiência do serviço médico com a cura.

Mas como distinguir um resultado infeliz de um erro médico?

Em primeiro lugar, partindo-se da premissa de que o paciente sempre procura o médico por conta da sua experiência profissional, é inarredável que a responsabilidade dele só possa ser aferida do ponto de vista subjetivo, nos termos do art. 14, §4º do CDC. Isto quer dizer que o médico só será responsabilizado por eventual dano quando demonstrada sua negligência, imperícia ou imprudência, bem como quando faltar com seu dever de informação.

Ocorre que a doença, em razão da idiossincrasia, se apresenta de forma particular em cada paciente. O tratamento que é bom para um pode não surtir o mesmo efeito para outro. Isso explica porque duas pessoas que sofrem de uma mesma patologia e recebem o mesmo tratamento podem ter destinos tão diferentes: uma é curada e a outra evolui para óbito.

Numa situação como essa, implicaria dizer que o paciente falecido foi vítima de erro médico? A resposta é negativa, ao menos nos casos em que o profissional utiliza, em ambos os tratamentos, as mais avançadas técnicas disponíveis na medicina.

Para compreender melhor esta questão, é necessário diferenciar a obrigação de meio da obrigação de resultado.

Como já dito, embora a patologia seja conhecida, os desdobramentos que ela gerará no portador podem ganhar contornos inesperados. O trabalho do médico, portanto, é o de se empenhar e colocar a serviço do paciente todos os meios de cura conhecidos, incluindo aí os recursos tecnológicos e medicamentos de última geração, sempre com a prudência e o cuidado que o caso requerer.

Ele não se compromete à cura, mas somente a prestar a assistência de modo adequado. Se comprovar que tinha a habilidade que se esperava, que utilizou todos os recursos disponíveis, envidou seus esforços para alcançar o fim desejado e cientificou o paciente quanto aos riscos do tratamento, nenhuma responsabilidade lhe poderá ser atribuída.

De se ver que o serviço do médico se esgota no empenho máximo para conseguir a cura (meio); ou, em outras palavras, a cura, propriamente dita (resultado), não é, salvo raras exceções, o objeto central do serviço. Quando muito, ela é uma consequência do tratamento dispensado ao doente. É o efeito, e não a causa.

Por aí se vê que a responsabilização do profissional depende da análise de seu comportamento, o que inclusive difere dos hospitais, que respondem objetivamente perante os pacientes, consoante dispõe o art. 14 do CDC.

Logo, dada a natureza subjetiva da responsabilidade do médico, caberia ao paciente fazer prova de que o médico agiu culposamente ou que incorreu em vício de informação. Todavia, não é assim que comumente se distribui o ônus probatório nas relações consumeristas.

É uníssono na Doutrina e na Jurisprudência que a relação médico-paciente é de consumo, consoante dispõe os arts. 2º e 3º do CDC. Por conta disso, aplica-se, na maioria das vezes, a inversão do ônus da prova prevista no art. 6º, VIII do CDC, que é dos pilares e uma das maiores inovações trazidas pela legislação consumerista.

Este benefício, várias vezes aplicado pelo Judiciário, transfere para o médico o ônus de mostrar que o defeito na prestação de serviço inexiste ou, se existir, que decorreu de culpa da vítima, culpa de terceiro, caso fortuito ou força maior.

Respeitadas as posições em contrário, comungamos do mesmo entendimento do Profº Humberto Theodoro Junior, para quem a inversão do ônus da prova em casos desse jaez representa, na verdade, a transmutação da obrigação de meio para a de resultado5.

De qualquer forma, isso mostra que, numa demanda judicial, terá mais chances de vitória o médico que for mais diligente na anamnese realizada, no preenchimento e arquivamento dos prontuários médicos (que devem conter, de forma legível, todos os procedimentos adotados6), na obtenção do "consentimento informado" do paciente, na filmagem de cirurgias, dentre outros.

Além disso, restará ao médico a necessidade de afastar qualquer ilação sobre iatrogenia, que é a alteração patológica provocada no paciente em decorrência do tratamento a que foi submetido, matéria esta que será profundamente abordada num próximo estudo.

Por ora, vale apontar, como conclusão deste breve estudo sobre erro médico, que está havendo uma banalização do instituto da responsabilidade civil com relação a este profissional da saúde, em grande parte pelo desconhecimento dos conceitos mais comezinhos que envolvem a profissão, que é quase um sacerdócio.

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1 "Rec. Dalloz", I, Pág. 88

2 "La Distinction dês Obligations de Résultat ET des Obligations de Diligence", "Juris-Classeur Périodique", 1945, I, n, 449

3 Denúncias contra Médicos em São Paulo crescem 75% em sete anos. Disponível em: <_https3a_ ult95u335231.shtml="" cotidiano="" folha="" www1.folha.uol.com.br="">. Acesso em 14.08.2010.

4 Idem.

5 THEODORO JUNIOR, Humberto. "A responsabilidade civil por erro médico" Direito & Medicina. Pág. 123

6 vide Artigo 39, do Código de Ética Médica

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*Advogado especializado em Responsabilidade Civil do escritório Penteado Mendonça Advocacia

**Advogado especializado em Relações de Consumo do escritório Penteado Mendonça Advocacia









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